Duelo ao almoço ou o bom, o mau e o salmão

por Leonardo Cruz,    13 Março, 2022
Duelo ao almoço ou o bom, o mau e o salmão

Os duelos costumam acontecer noutras alturas. 
O pôr do sol é um bom exemplo. Anoitecendo, melhor. Ou ao crepúsculo. À hora de almoço, talvez seja este o primeiro da história. 
Um clássico de Hollywood coloca-o, apenas, “ao Sol”. Aqui, estamos na cave cinzenta e fria de um prédio que deve ter a minha idade. Bem composta, ainda assim, para os tempos que vivemos. 

Dizem as regras da pandemia que as mesas ficam afastadas: a lotação do restaurante está reduzida a metade. Ocupo a única mesa individual disponível. A três metros está sentado um indivíduo com cara de assassino mexicano de filmes americanos.

(Se preferirem, que não quero ferir suscetibilidades, troquem-lhe as nacionalidades, uma por outra, que vai dar ao mesmo).

De frente para mim, observa-me com ar ameaçador. Uns olhos redondos, intimidantes, como ponta de garrucha de dois canos, pendurados em sobrancelhas curtas e grossas — perdoem a básica adjetivação, mas um cowboy não foi feito para grandes poesias. 

Um olhar que aponta.

Apercebo-me que o silêncio toma conta da sala; os pássaros na rua deixam de cantar, o canhão da Nazaré engole em seco, as calotas polares perdem mais um pedaço e a frescura do peixe da cozinha descongela num segundo. No vislumbre estreito das janelas da cave, um céu espesso enegrece, refletindo a cor do cabelo do meu oponente e alguma da sua oleosidade.

A primeira quebra da estagnação do fluxo espácio-temporal veio do seu bigode, triangular como todos os sinais de perigo. Oscilou, subtil, no sentido ascendente, assim que um jarrinho de tinto lhe aterrou na mesa.

Recebo, segundos depois, uma garrafa de água mineral. Encho o copo até meio, como faço com quase tudo na vida, na qual penso por momentos, e na dieta a que me obrigou o médico — razão desta tristeza incolor, inodora e insípida que me preenche as refeições e os dias.

Subo o olhar: continuam… apontados… a mim. Abertos, muito abertos, um bacamarte hipnótico de sniper de província obcecado no filho da minha mãe. Tivesse aquele olhar um laser encarnado acoplado e eu pareceria agora um doente de sarampo em discoteca dos anos 80. 

Parece-me ouvir o som de um violino e perscruto a sala, vem da televisão. Ao seu lado está um tipo que reconheço e parece observar toda esta tensão com atenção. Recordo o seu nome, Sérgio Leão (“faço uns filmes” versus “e eu umas rimas”), já fomos apresentados. Sou puxado novamente para o meu opositor, ofuscado pelo êxtase do ouro do seu dente canino que se crava numa isca de fígado — frita, com todos, e mais alguns. Eu defendo-me como posso: um salmão grelhado que até um urso panda não vegetariano desdenharia, que prometi a mim mesmo fazer cinco refeições de peixe por semana, para ver se como menos, valha-me nossa senhora minha avó que me ensinou a comer bem mas bem, e que desde bebé me voltava a encher o bucho de papa se eu, de entupimento, minha alma bolsasse, ai se ela me visse agora.

O rival mastiga devagar, a bochecha a rodar lentamente, despreza o tic-tac do relógio. Não tem pressa, ao contrário de mim, que sugo o peixe em apneia como quem toma um remédio amargo. A luta é desigual: batatas fritas versus brócolos; pão e azeitonas contra cenoura cozida. Só em barriga nos equivalemos, porém a dele mais solta, mais livre, sem camisa e gravata a restringir-lhe a liberdade, sem dificuldade em caber nos fatos, os fatos é que têm de lhe caber a ele, são assim os homens maiores do que a vida, perdão, que a camisola. 

Assusto-me, confesso, quando vejo uma costa de mão. 
Suspiro.
Usa-a para limpar o beiço de vinho. 
“Sobremesa?” 
Mousse, com cheirinho, que não há cá manias de frutinha como a desse gringo engravatado, passe a aliteração e o engasganço da frase. Já eu, peço um café, sem açúcar, e pago com cartão multibanco ditando o número de contribuinte para a “faturinha”. Observo o meu oponente a aniquilar um bagaço enquanto bate em cima da mesa um punhado de euros, que chega e sobra para a conta. 

Retiro-me vencido e, pior, com fome, resignado a enfrentar a rua. Aconchego o casaco ao levante do vento e aperto o cachecol. Um rolo de erva seca rebola, roçando-me os sapatos. 

(Ou isso ou era um bocado de cartão)

Acelero o passo em direção ao horizonte curto de edifícios feios, porcos e maus.
Está fresquinho no oeste português e tenho que dar à sola, não posso chegar atrasado. 
Para o meu chefe isso seria “imperdoável”.

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