“E Agora Como É Que É”, de Chico da Tina: igual a si mesmo, tempestuoso e arisco

por Lucas Brandão,    3 Novembro, 2021
“E Agora Como É Que É”, de Chico da Tina: igual a si mesmo, tempestuoso e arisco
Capa do disco
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Chico da Tina está de regresso aos seus trabalhos discográficos a solo, depois do estatuto de culto que granjeou com as suas “Trapalhadas” (EP de 2019) e “Minho Trapstar” (do mesmo ano, embora tratando-se de um álbum digno desse nome), sem esquecer o EP com tripsyhell, “love tape”, de 2020. Com videoclips arrojados, mesclando o trap, o hip-hop e a portugalidade — nomeadamente as origens de Francisco da Concertina, nascido em Viana do Castelo em 1996 —, o artista conseguiu criar uma legião de fãs entre os quinze e os trinta anos que poucos outros conseguiram. É essa mesma legião que, tanto nas caixas de comentários das suas redes sociais, como nos eventos em que surge como quase divindade da música nacional, o reverencia e enaltece as suas rimas e todo o seu semblante. Sempre devidamente ornado, com o seu triangle chest, a sua concertina (esta mais no início da sua carreira), o relógio da Rolex, o adereço com a pintura do barroco Pedro Alexandrino (1729-1810) ao pescoço e a ourivesaria típica de Viana, é um artista que, embora provocador e polémico nas suas letras, não deixa de ser uma referência já definida na sua geração.

“E Agora Como É Que É” é a compilação de grande parte do trabalho desenvolvido por Chico nestes dois últimos anos, nomeadamente dos vários singles da sua autoria. Entre eles, os singles de platina “Resort” e “Ronaldo”, mas também “Viana Vice City”, “F#ck Forex”, “Todo o Dia” e o mais recente, uma alusão ao músico Emanuel, “Nós Pimba”. “Agora como é que é?” é uma amálgama de perceções e de sensações musicais, que busca um alcance cada vez mais nacional. Já não só se trata dos regionalismos e de referências artísticas em diálogo com o trap, mas também algo bem mais ambiciosos, carregado de elementos presentes e futuros, muito pela força produtiva dos seus companheiros da Supernova Society: são eles Tripsyhell, VirginGod e Eddy0. No entanto, também outros tantos, como Sisi Biyas, Guire, XBS, JNX, Keslley, Sahbeats & Palma, Bejaflor e Costanza, Owen Rich, XBS, Lincoln, Hempp e Canha, juntam-se a Chico da Tina nas suas sonoridades no papel de produtores.

Para elaborar sobre este álbum — o qual assenta sobre um relicário, peça tão mencionada e na qual tanto da sua música orbita —, não dá para evitar as viagens alucinantes e vibrantes dos seus videoclips. A primeira música, “E Agora Como É Que É”, é um dos inúmeros exemplos deste discurso tão visual que Chico da Tina imprime na sua arte. Trata-se de um statement da independência, mas também da sensibilidade, do músico, na sua mood mais urbana, recheado dos glitches e dos pululantes figurinos que o hyperpop traz ao som e à imagem. Mais uma música que segue como statement, embora agora já bem mais carnal, é “Resort”, cujo videoclip embala bem mais com o skate e com um Sol resplendoroso. É um autêntico resort, o mesmo que também serve para não alimentar ladrões — “Não desconto lambões, não alimento ladrões // Salgado, Valentim, muitos deviam estar na prisa e não ‘tão”. O ambiente de curtição arrasta, como sempre, Chico e a sua crew, embalados pela extravagância.

“Shopping”, a primeira sem videoclip, é a onde se canta mais a ostentação e a riqueza de Chico da Tina, frutos do seu sucesso musical e da sua personalidade artística. Todos querem ser o Chico e este não se deixa estar calado, fazendo o melhor possível, levando a sua carreira para fora e aos cinco dígitos de euros. Afinal de contas, nasceu para ter guita e clout (peso, poder). Com versos de tripsyhell em inglês, “Chico Uzi Vert” é mais uma valente “descasca” nos haters por parte do artista que, conforme menciona o título da música, empunha a arma e dispara sobre todos aqueles que atentam ao seu sucesso e à sua coroação como rei. Em modo expert, coroa-se rei do trap, do plugg (uma derivação do trap) e do pimba e governa com vários fucks.

Em “VianaViceCity”, assiste-se a uma das mais velocistas faixas, sendo devidamente acompanhada por um videoclip que sugere aspetos retro, que também fazem recuar aos jogos do Grand Theft Auto, desde Vice City e ao protagonista de San Andreas, “CJ, CJ” que tanto é entoado no refrão. Viana do Castelo é, assim, associada e comparada a Vice City, onde o “trapstar” do Minho deslumbra e mete prego a fundo, mas onde também faz várias referências às nuances especiais da sua terra-natal: o Rio Lima, o caldo verde, a proximidade a Espanha. “F#CK FOREX” conta com um videoclip bem mais simplificado, em que o célebre relicário recebe todas as atenções do início ao fim. Musicalmente, o storytelling de Chico permanece em força, contando mais peripécias da vida desenfreada do artista, desde a casa alugada até à ida ao Chiado que Eddy0 sugere.

“Ronaldo” é outra das músicas que foi impulsionada pela produção de um videoclip, com Chico e a sua crew em plena cidade de Lisboa a rimar e a dançar. Não é por acaso que é a faixa n.º 7, precisamente por causa do craque Cristiano, o rei da bola, com quem estabelece paralelismo enquanto é rei do trap. É uma viagem pela vida pré-música de Chico, que, também, conta aquilo que vê como o seu futuro, de divinização nas suas origens. O ser milionário e o ser rei cedem na segunda parte da música, quando exulta a sua bitch e os cenários vão alternando, entre a piscina privada do milionário Chico e o ambiente urbano da noite lisboeta. Com “Dior Freestyle”, é tempo de saborear uma miscelânea de saberes linguísticos, que passam pelo domínio do alemão, do italiano e do francês, cantados à boa maneira macarrónica, quase com onomatopeias, mas sempre com aquele glow tão costumeiro. Dior é sinónimo de classe e requinte e não é menos do que Chico canta e encanta.

O “Nós Pimba” é levado ao literal da subtileza de Emanuel e Chico não se faz de rogado. À sua boa maneira, o trap desdobra-se em referências e em rimas no videoclip mais do género que poderia existir. Aqui, é só o artista que é visado, indo em busca por uma cidade futurista e labiríntica, de encontro ao fabuloso e tão visado relicário. Muito mais mellow — se é que se pode falar de mellow com Chico — é “Todo o Dia”, filmado e entoado num ambiente íntimo, devidamente preparado para um momento romântico. Não se pode deixar de mencionar que se trata de uma verdadeira canção de amor e com as devidas referências portuguesas, desde o vinho da região de Lafões até à música do Variações.

As últimas duas faixas deste disco são “Supernova” e “Canção do Adeus”, sucessos inéditos até agora. O primeiro, com versos iniciais de VirginGod, é novo despoletar de Chico rumo ao topo, catapultado pela sua opulência e pelo seu prestígio. É Chico consolidado nas lides da fama e da vitória, lidando com as adversidades e com as falsidades a seu respeito. Leva consigo VirginGod, que virou astronauta e que o acompanha nesse subir aos céus e à atmosfera. Curiosamente, “Canção do Adeus” é um hit bem distinto de todos os demais, não só ao nível instrumental (tem bateria, baixo e teclado como fundo). É um adeus que Chico profere em relação a tudo, desde família, amigos, babies e à tal legião de fãs que criou com todos os devidos méritos. Os versos finais — “agora é tarde (é tarde) // ficai em paz boa sorte e que Deus vos guarde” — levam a questionar o que será do futuro de Chico da Tina — apesar dos méritos da sua autopromoção e respetiva loja online, que remetem para o seu balcão digital.

Não obstante o futuro e as interrogações que pairam, o presente afirma e assegura o trono de Chico da Tina, agora numa amplitude mais diversa e mais estendida pelo país. É, talvez, o instinto conquistador do artista, que arrebatou o Minho e segue para sul, envolvendo Porto e Lisboa pelo caminho. A sua música, sempre tempestuosa e arisca, faz estremecer quem a encara com pruridos e preconceitos. Talvez por isso seja a juventude, mais dada à irreverência e ao choque, que estende a carpete vermelha a que Chico possa triunfar e assegurar a coroa. Pelo meio, há espaço para variedade de sonoridades, desde o desenfreio que se saboreou já em certos momentos de “Minho Trapstar”, mas também lugar a uma introspeção e a um adeus que são surpreendentes. O que será de Chico? Esta pergunta nunca se pensou pôr, pois sempre se achou que ele era imortal, entre passado, presente e futuro. Porém, por entre dúvidas, as certezas de que este relicário eternizará “E Agora Como É Que É?” como um dos momentos da regência trap de Chico da Tina.

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