E talvez no dia a seguir, o novo normal seja também que a mulher prove e beba o vinho
À mesa lá em casa, dou por mim a sentar-me, inconscientemente, à cabeceira da mesa enquanto a minha mulher fica num dos lados. Sei bem porque é que acontece: são décadas, séculos herdados da cultura do pai, do homem enquanto figura central à mesa e em casa, algo que vem da era medieval, da soberania dos reis. Tenho cortado com este (mau) hábito enraizado, mas basta um jantar fora para me aperceber de outras práticas que têm de mudar.
O sistema social que é o patriarcado não deve ser apenas visto como uma luta feminista, mas também como um alerta a todos para os perigos que a dita “tradição” arrasta como justificação. Como tem sido tantas vezes debatida aqui ou noutras plataformas, não nos devemos apoiar num sentimento de que “sempre foi assim” porque nada é estanque e, o que ontem era correto, no contexto social de hoje já não faz sentido. Só assim é que podemos evoluir para, esperemos, uma sociedade digna e coerente. Antes de avançar para a cena no restaurante, um alerta prévio para o facto de não considerar estes exemplos como prática universal. Não são generalizações, mas sim uma partilha de algumas experiências que vivi, pese embora a probabilidade de acontecerem em qualquer sítio seja de 80%. Outro alerta é que a perspetiva desta crónica assenta num casal heterossexual, ou seja, todas as outras dinâmicas podem ser diferentes. Fico curioso para saber se estes exemplos se replicam, mas passemos ao aperitivo.
Pedimos, sem distinção, uma cerveja e uma caipirinha. Quando nos são servidas, a assunção é que a cerveja é para o homem e a caipirinha para a mulher. Entremos na definição do que é ser homem, dos seus gostos, bem como os da mulher. Como se os homens só gostassem de bebidas ásperas e as mulheres de doces. Como se houvesse uma divisão de género no álcool, alusão aos supermercados que ainda o fazem em relação aos brinquedos cor de rosa e azul. Já tive inúmeros discussões com amigos pelo facto de pedir bebidas que consideram não serem fortes ou de homem. Esta pode parecer um aspeto secundário, mas a pressão social para se beber de acordo com certos padrões estabelecidos há séculos, leva a um apontar de dedo, de que devíamos ter vergonha perante os nossos pares pelos nossos gostos. Neste ponto, embora também acredite que exista esta pressão entre mulheres, acho mais gritante na classe masculina. Certo é que esta ideia se propaga e está longe de se dissipar.
Já perto da refeição, pede-se o vinho e a inclinação é mais para o homem provar do que a mulher. Continuamos ao mesmo nível do exemplo anterior, como se ser homem nos concedesse automaticamente um poder genético apurado para a enologia. O que é curioso é, se nos basearmos nos estereótipos generalizados que a sociedade faz, deveria ser a mulher a provar, já que a sua sensibilidade e os seus sentidos seriam bem mais adequados e apurados para a tarefa. Mas neste sistema social, a figura, o pai, o marido, continua a ter soberania. Abre-se a exceção quando convém.
Finalmente, depois de um repasto certamente delicioso, vem aquela a que o português gosta de chamar “a dolorosa”. E neste capítulo final, também muitas vezes o staff assume que é o homem que paga. Façamos uma pausa breve: não defendo que, em nome da igualdade, se proponha o extremo oposto de ser a companheira a pagar sempre. Como em tudo (e até porque decerto já vos aconteceu) há vezes que apetece a um pagar e vice-versa. Ou dividir. Ou seja, o que for. Neste caso específico, se é a mulher que estende o cartão, a pergunta que surge é se paga tudo (olhando para o homem) ou se é para dividir. Continuamos no mesmo sistema, num loop aparentemente infinito. E decerto que nesta situação o empregado não está a pensar na (ainda) desigualdade de salários entre homens e mulheres e por isso, preocupado, vira-se para o homem. Qual é a solução? É descomplicar e aproveitar estas oportunidades para desconstruir estes preconceitos. Para mudarmos a perceção do outro, que se calhar vai para casa pensar sobre o assunto. E talvez no dia a seguir, o novo normal seja também que a mulher prove e beba o vinho.
Texto de Miguel Peres
Miguel Peres é um rapaz baixinho e criativo com várias vidas: trabalha em comunicação, é copywriter freelancer e argumentista de banda desenhada. É um apaixonado pela sua mulher, por cinema, comida e BD. Tem 2 livros publicados, diversas curtas publicadas em antologias internacionais, um selo editorial chamado Bicho.