Editores e filha de José Cardoso Pires assinalam centenário do escritor no Fólio

por Lusa,    11 Outubro, 2025
Editores e filha de José Cardoso Pires assinalam centenário do escritor no Fólio
José Cardoso Pires / DR
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Um perseguidor da exatidão nos seus livros e um “pedagogo difícil” em casa, José Cardoso Pires foi hoje evocado no Folio, numa conversa entre os editores e a filha do “escritor de Lisboa”.

Ana Cardoso Pires recuou hoje à infância, ao tempo em que vivia num bairro dominado por defensores da ditadura Estado Novo e era apelidada de “a filha do comunista”, para “tentar trazer o escritor um pouco à vida”, numa altura em que “há uma grande dificuldade com a leitura de escritores mortos, porque não são mediáticos”.

A verdade, porém, sublinhou, “é que eles tiveram impacto na nossa história” e, no caso de José Cardoso Pires, cujo centenário se comemora este ano, esse impacto marcou também o percurso de Ana, que lembrou hoje o pai como “um pedagogo difícil”, com hábitos de vida “diferentes da época”, e que educou as filhas sem discriminação “entre o que as meninas e os meninos podiam fazer”.

O escritor, que “não gostava particularmente de crianças, porque elas o interrompiam”, viu associada uma certa ideia de “agressividade” que, afinal, segundo a filha, “não correspondia à verdade”. Ele, “espingardava, crescia nas discussões”, mas, como lembra Ana Cardoso Pires, a família “teve sempre nele um grande defensor”, ao contrário de “outros, [cujos] miúdos apanhavam pancada, nessa época em que muitos intelectuais até batiam nas mulheres”.

Com “o Zé”, como a filha lhe chama, “nunca houve uma relação patriarcal”, mas em casa do escritor “de hábitos desregrados”, imperavam os silêncios. “Não se podia fazer barulho, mesmo de dia, por ele estava a dormir ou a escrever”.

O resultado foram 18 livros editados entre 1949 e 1997, a sustentar a opinião da escritora Ana Margarida de Carvalho de que “todos os escritores portugueses vieram debaixo do sobretudo de José Cardoso Pires”.

Para a estudiosa da obra do autor de “O Delfim” e “A Balada da Praia dos Cães”, a quem foram atribuídos os epítetos de “escritor de Lisboa”, Cardoso Pires era “um perseguidor da exatidão”, um adepto da “escrita no osso”, sem adjetivação a mais ou a menos, e que “revia até à exaustão” as provas dos seus livros.

Cem anos depois do seu nascimento, a Relógio d’Água está a reeditar toda a obra de Cardoso Pires, que “consegue ainda ser muito interessante para as novas gerações”, disse no Folio o editor Carlos Vasconcelos, presente na sessão com Francisco Vale, fundador da editora.

Para ambos, o autor de “Lisboa – Livro de Bordo” e “A Cavalo no Diabo” tem uma escrita “muito imagética”, o que justifica a adaptação ao cinema de “Lavagante”, por Mário Barroso e António-Pedro Vasconcelos (argumento), filme em exibição nas salas, à semelhança do que já antes tinha acontecido com “O Delfim”, dirigido por Fernando Lopes, e “A Balada da Praia dos Cães”, por José Fonseca e Costa.

José Cardoso Pires publicou o seu primeiro livro, “Os Caminheiros e Outros Contos”, em 1949. Nos anos de 1950 foi preso pela PIDE, a polícia política da ditadura, depois da apreensão do seu livro de contos “Histórias de Amor”.

Em 1963 publicou “Hóspede de Job”, que lhe valeu o Prémio Camilo Castelo Branco, em 1964. Em 1968, foi a vez de “O Delfim”, considerado a sua obra-prima, a que se juntaram outros títulos como “Dinossauro Excelentíssimo”, crítica feroz ao salazarismo, “A Balada da Praia dos Cães”, Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, e “Alexandra Alpha”, Prémio Especial da Associação de Críticos, de São Paulo, no Brasil, entre outros.

Em 1995 sofreu um acidente vascular cerebral que o levou a ficar algum tempo em estado de coma, facto que retratou na obra “De Profundis, Valsa Lenta”, pela qual recebeu dois prémios: Prémio D. Dinis, da Casa de Mateus, e Prémio da Crítica, atribuído pela Associação Internacional de Críticos Literários.

Três anos mais tarde, novo acidente vascular cerebral, que viria a ser a causa da sua morte, em 26 de outubro, em Lisboa.

O centenário do nascimento do escritor tem sido evocado em algumas iniciativas pelo país, e foi hoje assinalado no Folio com uma conversa que “para o Zé, teria mais valor do que comemorações oficiais”, disse à agência Lusa Ana Cardoso Pires. “É assim que ele gostava se ser recordado, nas conversas”.

Esta foi a primeira conversa do Folio Mais, no segundo dia do Folio, que até ao 19 de outubro cumpre a sua 10.ª edição, em Óbidos,

O Festival conta com três laureados com o prémio Nobel da Literatura: a bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, o sul-africano J. M. Coetzee e o húngaro László Krasznahorkai, recém-galardoado.

Organizado pelo município de Óbidos, em parceria com a empresa municipal Óbidos Criativa, a Ler Devagar e a Fundação Inatel, o Fólio realiza-se desde 2015 na vila classificada como Cidade Criativa da Literatura pela UNESCO.

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