Elegia para um homem livre
Já que aqui estamos para nos conhecermos melhor, permitam que vos confesse, outra vez: é-me difícil levar alguém a sério, a começar por mim – levar a vida a sério. Não é um defeito nem será uma qualidade: é apenas uma característica condicionada pelo conhecimento do desfecho que todos iremos ter e que portanto é passível de tudo relativizar.
Não me interpretem mal, por favor. Não se trata nem de leviandade nem de morbidez senão de um esforço titânico de manter alguma lucidez perante a injustiça que será sempre viver. Reconheço e admiro atributos como a bondade, o talento ou a honra, entre outros. Levo a sério os que amo porque os meus afectos serão, se tiver sorte, o meu parco legado. Cumpro as responsabilidades que me exigem da maneira que posso. Gosto da vida, sobretudo quando considero a alternativa. “It’s a hell of a ride”, canta o meu ídolo Paddy McAloon dos Prefab Sprout, para logo a seguir concluir “but a journey to dust”.
Isto para vos dizer que, apesar do seu sorriso e da sábia e impenitente desfaçatez, a morte levou há algumas semanas um poeta. Mais, bastante mais: um homem livre, sabedor do preço e do valor que custa manter essa liberdade e sobretudo da diferença entre estes dois substantivos. Rui Caeiro – é este o seu nome – deixou entrar finalmente quem sempre conheceu e com quem sempre dialogou num misto de troça e de reconhecimento. Não vou mentir e dizer que o conhecia; mas dizendo-o não minto, porque o li. Porque os versos que escreveu eram palavras-espelho para tanta gente, para mim. Tratou por tu a sua mortalidade e de caminho ofereceu-lhe versos como estes:
“Porque a verdade é esta: se tu levas a vida
a sério a morte vence-te com a maior das limpezas
Se a levas a brincar ela vence-te à mesma
porém sem glória: o que é vencer um brincalhão?”
Bastariam estas palavras que ecoam como uma gargalhada de condenado para fazer de Rui Caeiro um exemplo – coisa que o próprio, suspeito, desdenharia. Caeiro combateu a morte da única maneira possível: vivendo. Era homem de amizade fácil, de saber enciclopédico mas nunca ostensivo; assim disseram os que com quem ele privaram e beneficiaram da sua generosidade e acutilância. Nós, os leitores, conseguíamos pressentir isso mesmo nas notáveis traduções que fez – lembro uma de Cesare Pavese, outro que andou às voltas com a morte até se apaixonar por ela – e sobretudo na sua poesia. O excelente (e auto-explicativo) Sobre a nossa morte bem muito obrigado é um conjunto magnífico de ensinamentos que não ficariam mal a um moderno Séneca que estivesse armado de ternura e de ironia: «A morte, provavelmente.», escreve Rui Caeiro. «O tempo que falta até lá. O que ainda resta.
Sentir, degustar o tempo esse como um percurso: de aprendizagem. de exaltação, de sabedoria.
Diante da morte o importante é estar.»
Custa-me muito ver partir homens livres por ser a condição a que mais aspiro e o valor que mais defendo. Mas talvez a morte seja a derradeira liberdade; não sei. Até lá, e seguindo o que aprendi, diante dela estarei.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.