Elegia para um homem livre

por Nuno Miguel Guedes,    14 Fevereiro, 2019
Elegia para um homem livre
Rui Caeiro

Já que aqui estamos para nos conhecermos melhor, permitam que vos confesse, outra vez: é-me difícil levar alguém a sério, a começar por mim – levar a vida a sério. Não é um defeito nem será uma qualidade: é apenas uma característica condicionada pelo conhecimento do desfecho que todos iremos ter e que portanto é passível de tudo relativizar.

Não me interpretem mal, por favor. Não se trata nem de leviandade nem de morbidez senão de um esforço titânico de manter alguma lucidez perante a injustiça que será sempre viver. Reconheço e admiro atributos como a bondade, o talento ou a honra, entre outros. Levo a sério os que amo porque os meus afectos serão, se tiver sorte, o meu parco legado. Cumpro as responsabilidades que me exigem da maneira que posso. Gosto da vida, sobretudo quando considero a alternativa. “It’s a hell of a ride”, canta o meu ídolo Paddy McAloon dos Prefab Sprout, para logo a seguir concluir “but a journey to dust”.

Isto para vos dizer que, apesar do seu sorriso e da sábia e impenitente desfaçatez, a morte levou há algumas semanas um poeta. Mais, bastante mais: um homem livre, sabedor do preço e do valor que custa manter essa liberdade e sobretudo da diferença entre estes dois substantivos. Rui Caeiro – é este o seu nome – deixou entrar finalmente quem sempre conheceu e com quem sempre dialogou num misto de troça e de reconhecimento. Não vou mentir e dizer que o conhecia; mas dizendo-o não minto, porque o li. Porque os versos que escreveu eram palavras-espelho para tanta gente, para mim. Tratou por tu a sua mortalidade e de caminho ofereceu-lhe versos como estes:

“Porque a verdade é esta: se tu levas a vida
a sério a morte vence-te com a maior das limpezas
Se a levas a brincar ela vence-te à mesma
porém sem glória: o que é vencer um brincalhão?”

Bastariam estas palavras que ecoam como uma gargalhada de condenado para fazer de Rui Caeiro um exemplo – coisa que o próprio, suspeito, desdenharia. Caeiro combateu a morte da única maneira possível: vivendo. Era homem de amizade fácil, de saber enciclopédico mas nunca ostensivo; assim disseram os que com quem ele privaram e beneficiaram da sua generosidade e acutilância. Nós, os leitores, conseguíamos pressentir isso mesmo nas notáveis traduções que fez – lembro uma de Cesare Pavese, outro que andou às voltas com a morte até se apaixonar por ela – e sobretudo na sua poesia. O excelente (e auto-explicativo) Sobre a nossa morte bem muito obrigado é um conjunto magnífico de ensinamentos que não ficariam mal a um moderno Séneca que estivesse armado de ternura e de ironia: «A morte, provavelmente.», escreve Rui Caeiro. «O tempo que falta até lá. O que ainda resta.

Sentir, degustar o tempo esse como um percurso: de aprendizagem. de exaltação, de sabedoria.
Diante da morte o importante é estar.»

Custa-me muito ver partir homens livres por ser a condição a que mais aspiro e o valor que mais defendo. Mas talvez a morte seja a derradeira liberdade; não sei. Até lá, e seguindo o que aprendi, diante dela estarei.

Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.

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