Em “Dogman”, de Matteo Garrone, é o homem que morde o cão

por Paulo Portugal,    30 Dezembro, 2018
Em “Dogman”, de Matteo Garrone, é o homem que morde o cão
“Dogman”, de Matteo Garrone
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Cuidado com o Cão! O aviso até faria sentido para nos prevenir do mastim que parece morder o ecrã no início de Dogman, o novo filme do italiano Matteo Garrone que esta semana estreia em Portugal. Só que à ferocidade do bicho responde a voz carinhosa do tratador Marcello que vamos conhecer como o verdadeiro ‘dogman’, na personagem acanhada de Marcello Fonte. Ele que entretanto foi convertido em estrela maior ao receber o prémio de interpretação masculina em Cannes, em maio passado, com a consagração de melhor ator europeu segundo a Academia de Cinema Europeu, na cerimónia ocorrida em Sevilha a 15 deste mês. Comecemos então por Marcello. Até porque Dogman é também tudo sobre Marcello Fonte.

“Dogman”, de Matteo Garrone

Logo na entrevista que tivemos oportunidade de fazer com Garrone em Cannes, onde Dogman concorreu para a Palma de Ouro, percebemos que a descoberta de Marcello fora obra de um acaso maldito. Explicou-nos Matteo que descobriu o seu actor num centro social. É lá que dorme e trabalha como jardineiro até agora. Possivelmente, acreditamos, a sua realidade será já diversa. Garrone revelou também que esse centro tinha uma companhia de teatro com ex-prisioneiros. Aí começou o inesperado destino de Marcello. É que ele foi escolhido porque um dos actores foi à casa de banho e acabou por morrer com um aneurisma. E o Marcello tomou o seu lugar. Assim, sem mais. Quando o conheci percebi que era um Buster Keaton moderno. Como se percebe ao ver o filme, este homem franzino logo conquistou Cannes, seguramente por aquela singeleza e um carisma que logo nos pareceu ser uma versão (bem) mais modesta de Roberto Benigni, um actor que também deslumbrara o mesmo festival em diversas ocasiões.

“Dogman”, de Matteo Garrone

Na verdade, Fonte regressará de novo com Garrone. E acompanhado por Benigni, no próximo projecto de Garrone em que finalmente concretizará o seu Pinocchio, num filme actualmente em pré-produção. Aliás, como frisou, todos os meus filmes têm algo de Pinóquio. O que nos parece até evidente em Dogman bem como no conflito vincado entre o bem e o mal, a realidade e a necessidade de fantasia.

De resto, Marcello revelaria também em Sevilha que escreveu um livro chamado Sotto le Stelle, onde defende que as estrelas brilham num céu que é para todos; seja num grande quarto de hotel, numa barraca ou num jardim.

Seja como for, percebemos que Garrone regressa à sua máxima força com Dogman. Isto depois do ‘soluço’ que foi o ultra calórico e desnecessário, Conto dos Contos, de 2015, quando se deixou tentar pelos ‘pastelões’ de época e um cast de estrelas de Hollywood como fórmula para um mercado global. Mas percebe-se também que o cinema e as personagens de Matteo Garrone se dão melhor num certo realismo popular, talvez até próximo de uma herança neorrealista, embora actualizada por algumas sementes de violência tatuadas no quotidiano que prefere captar nos seus filmes.

“Dogman”, de Matteo Garrone

E isso fica tanto mais consistente na medida em que Dogman retoma o caminho do seu cinema e das personagens que foi acarinhando ao longo da sua filmografia, mesmo antes do seu percurso internacional iniciado com Gomorra, em 2008. Até porque este filme, cuja primeira versão do guião foi escrita há doze anos, vive em grande parte da personagem de Marcello, e ainda de Edoardo Pesce, no filme o brutamontes Simone, numa dupla mais do que improvável, alimentada à força de bullying e abusos, a par de negócios de tráfico de cocaína. Isto a partir de uma história verídica, que o realizador revela ser bem mais violenta que esta. Por isso assume que quis desviar-me desse rumo, pois não me interessa a tortura no estilo filme de terror; interessa-me mais a violência psicológica.

É aí que reside a coesão da relação entre os dois. E que culmina até na assunção de culpa no lugar de Simone pelo assalto a uma loja, acabando por cumprir uma pena de prisão de um ano e a perda da sua respeitabilidade local. Uma dupla que colhe mais afinidades de L’Imbalsamatore, de 2002, em que o anão Peppino (Ernesto Mahieux), um taxidermista de meia idade, ridicularizado por todos, segue um percurso com o jovem belo e alto Valerio (Valerio Foglia Manzillo). Talvez por isso, Garrone sublinhe que quando recebes violência queres devolver violência também. Só que quando Marcello regressa da prisão à procura uma redenção e recuperar a sua dignidade como ser humanos. Algo que fica marcado quando diz a Simone que “se pedires desculpa, essa será a minha vingança!”

“Dogman”, de Matteo Garrone

De certa forma, uma brandura que se reconhece em Marcello, que encarna a aproximação simples e humanista, desejada por Garrone e que lhe permitiu desenvolver a personagem, seguir a sua psicologia, as suas contradições, a luta para sobreviver, e ser amado. É por aqui que o realizador assume a metáfora do lado feminino de Marcello na sua relação com Simone. Isto porque também gosta de trabalhar em arquétipos, permitindo a que cada um possa ter a sua interpretação. Mas é tudo muito simples, um tipo fraco e um tipo forte e uma pequena cidade feita de pessoas. Essa cidade, esclarece-nos ainda, foi uma pequena cidade construída para os soldados americanos, mas mudaram-nos nos anos 90 a 30 kms dali e construíram outra, a 40 kms de Nápoles, onde foi filmada parte de Gomorra. 

Dogman aí está, um filme que morde e não larga.Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt

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