Em Mafamude, dança-se tango e canta-se Marante com David Bruno

por Comunidade Cultura e Arte,    24 Julho, 2018
Em Mafamude, dança-se tango e canta-se Marante com David Bruno
PUB

Para David Bruno, não são os censos que quantificam a imensidão da freguesia onde vive. No seu senso, Mafamude, freguesia central de Vila Nova de Gaia, com 5,39 km2 de área e composta por 38 544 habitantes, personifica-se na ninfa que é objecto de adoração do sujeito poético – qual Camões dos tempos modernos que exalta as Tágides. N’O Último Tango em Mafamude, David Bruno canta uma ode à portugalidade, aos seus vícios e costumes. É uma carta de amor (não correspondido) à cidade que o viu crescer e agora o rejeita.

Num tom teatral e num romantismo levado ao limite, não é, apesar de tudo, inédito este sentimento de vinculação/afectividade à cidade onde vive. Já os Red Hot Chilli Peppers cantavam em Under the bridge “Sometimes I feel / Like my only friend / Is the city I live in”. Mas a semelhança entre os dois projetos ficar-se-á por aqui, visto que as ambiências notoriamente kitsch e nostálgicas remetem-nos para um revivalismo dos anos 80 e 90 e as influências musicais do artista situam-se mais entre o “romântico com’ó Marante” e o “apaixonado tipo Toy” do que propriamente em referências fora da cultura popular portuguesa. Acompanhada pela expressividade da guitarra tocada por Marco Duarte – que é tal que nos leva a crer que afinal há instrumentos que falam – a voz ocasional de dB é introduzida num flow próprio do hip-hop.

A musicalidade do disco é criada com base na arte de samplar que David Bruno aperfeiçoou ao longo dos anos através da procura incessante de sonoridades nas mais diversas plataformas físicas e digitais. Consumidor ávido de música, desenterra, com perícia do aterro de informação que é a internet, algumas raridades, que, num jogo de “corta e cose”, mescla num conceito único e coeso, com influências do old school boom bap beat que teve os seus tempos áureos nos anos 90. Marco Duarte junta conteúdo melódico com riffs à la Santana, que dão corpo aos temas, não os deixando, porém, claustrofobicamente pejados de informação, mas – pelo contrário – deixando-os respirar.

A tacada humorística e sarcástica, transversal aos vários alter-egos do criador do sample de ‘Cara de Chewbacca’ de PZ, acompanha-nos ao longo de todo o álbum e tem o seu ponto alto no tema “O Fim”, que encerra o disco que culmina na tentativa de suicídio do sujeito musical. A narrativa desenrola-se numa série de diálogos com tanto de surreal quanto de cómico entre o recém-acidentado, o funcionário do INEM e o médico que o atende já no hospital. O videoclip do álbum, realizado e produzido pelo autor, não merece ser descurado e é parte integrante e indissociável da obra. Neste, David Bruno é-nos apresentado como o galã romântico versão suburbana, envergando figurinos que vão desde o fato-de-treino com um palete de cores de combinação duvidosa ao robe com padrão arrojado, passando pelo “calção tipo boxer” num guarda-roupa ousado e desatualizado dos standards do comum dos mortais.

A montagem do vídeo consiste numa sucessão de filmagens de arquivo da zona de Gaia nos anos 80, cujo encadeamento de acontecimentos, emparelhado com os temas musicais, conta uma história. As imagens são alusivas a Gaia e ao Portugal rústico afastado dos centros cosmopolitas: a zona balnear, o coreto, as caricatas entrevistas, a típica lavagem do carro ao ar-livre no fim-de-semana pelo gajo que mede a masculinidade pela dedicação ao chaço, o chinelo calçado com meia branca, o cordão de ouro ao pescoço, as santas de altar, as imagens eróticas de anúncios do século passado, a torre de comunicação, excertos do videoclip do “Dunas” dos GNR, lavadeiras de rio, a Ponte Dom Luís, a justaposição da paisagem urbana das duas margens do Douro, contentores do lixo, procissões. Pormenores que parecem aleatórios, mas que foram plantados com muito cuidado para nos envolver no imaginário do álbum. O snack-bar Carpa e David Bruno sentado ao balcão a comer frango à mão, uma versão do tema do filme O Padrinho – numa faixa ironicamente batizada O Pedrinho – sobreposta a filmagens de políticos proeminentes da região, como Valentim Loureiro. Não é inocente.

O Último Tango em Mafamude é uma crítica social muito mais séria e mordaz do que a roupagem do álbum faz parecer. David Bruno não tem medo de ser foleiro, não tem medo do exagero. E este álbum é, desta forma tão vincada e arrojada, um abuso.

Crítica de: Beatriz Fonseca

 

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados