Em Portugal a videovigilância com inteligência artificial é aceitável?
Quando na reta final de 2019 foi noticiado que a China obrigaria daí em diante os seus cidadãos ao reconhecimento facial antes de poderem utilizar novos telemóveis, muitos estariam longe de conceber que em Portugal já existia um plano em execução para que a inteligência artificial pudesse imperar visando o controlo do espaço público em dois municípios do nosso país.
Como cidadão daquele que há bem pouco tempo foi considerado como o terceiro país mais seguro do mundo pelo Índice Global da Paz, mas também enquanto idealista das liberdades individuais, fiquei concomitantemente incrédulo e melindrado assim que tomei conhecimento das intenções das autarquias de Portimão e de Leiria em controlarem determinadas áreas do seu espaço público com recurso à inteligência artificial. Ainda que segundo os mais diversos órgãos de comunicação social, o plano tenha sido concebido originalmente pela PSP dos respetivos concelhos – e que possamos reconhecer a sua utilidade para efeitos de prevenção e de controlo da criminalidade – esta é uma questão que extravasa claramente o plano político e policial.
O que está em causa é algo que caso seja aplicado a nível global contribuirá indelevelmente para a mutação de algumas estruturas da condição humana. Falamos, portanto, de uma matéria sensível, tão ou mais estruturante quanto a questão do aborto ou da eutanásia, que não deve ser executada simplesmente a partir da vontade de agentes policiais ou políticos. Aceitar se queremos viver o nosso dia a dia com dezenas de câmaras posicionadas no espaço público que nos reconhecem a tempo inteiro pelas nossas características físicas e que se encontram interligadas a uma base de dados em rede é algo que quanto a mim deve ser referendado depois de analisado com o devido aprofundamento e isenção na agenda pública. Deste modo, considero que a reação do autarca de Leiria ao chumbo destas propostas por parte Comissão Nacional de Proteção de Dados refletiu uma demarcada temeridade e egoísmo. O autarca criticou a decisão do organismo, defendendo que “os modelos de videovigilância evoluem” e que por isso “não podem continuar obsoletos”. Ora, se a afirmação do presidente da autarquia vai ao encontro da verdade na constatação da evolução tecnológica, tão prontamente se derruba a si mesma quando ignora os pressupostos filosófico-constitucionais que a mesma levanta: o dos limites ideais da tecnologia, mas também a questão dos direitos individuais dos cidadãos.
O próprio ministro da administração interna, Eduardo Cabrita acabou por não reagir à decisão da CNPD com o devido distanciamento que esta polémica matéria requeria. Ao invés, posicionou-se favoravelmente às propostas ao referir esta terça-feira que “o nosso compromisso, já reafirmado pelos presidentes da Câmara de Portimão e de Leiria, é que estes projetos são importantes para a segurança das populações e para a perceção da segurança.”
O Big Brother de George Orwell parece ter chegado bem mais cedo do que o previsto às cogitações das estruturas de poder nacional. Daqui em diante pede-se, no mínimo, que a sua hipotética materialização seja debatida e refletida pela sociedade civil – em detrimento de um autoritário espraiamento no quotidiano de milhões de pessoas por parte de um Olimpo de poder político-policial. Sei que muitos cidadãos não verão com bons olhos estas propostas.
Eu escolho a liberdade existencial.
Texto de Augusto Cabrita
Augusto Cabrita é licenciado em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL e um amante das estruturas culturais e reflexivas que divergem do grande dispositivo de massas.