Entrevista. Mariana Cabral: “Em Portugal, dizemos que temos e que gostamos muito do desporto no feminino mas não é propriamente um investimento sério”
Quem acompanha o futebol português de forma assídua, incluindo o feminino, deve conhecer a figura de Mariana Cabral. Treinadora titulada no Sporting Clube de Portugal com a Taça de Portugal e a Supertaça, seguiu a sua carreira para os Estados Unidos da América (EUA), onde é treinadora-adjunta do Utah Royals FC, equipa que milita na National Women’s Soccer League (NWSL), uma das ligas mais competitivas no mundo e uma das poucas que é plenamente profissional no feminino. Porém, e antes de assumir o caminho de treinadora, teve também uma carreira positiva como defesa no futebol feminino português, percurso que uniu ao do jornalismo, seguindo as pisadas do pai, Osvaldo Cabral, ex-jornalista no Açoriano Oriental, o mais antigo periódico em circulação no país. Açoriana de origem, foi lá que se encantou com o Mundial feminino de 1999 e que começou a aspirar a uma carreira nos Estados Unidos. Apesar de inúmeras entrevistas já dadas, subsistem ingredientes suficientes para querermos saber mais sobre como tudo começou e a sua relação com o país onde está, para além de, de forma inevitável, abordar o impacto social do futebol feminino.
Cresceste nos Açores, onde nasceste. Como se desenrolou a tua partida de lá para Lisboa, para prolongares a tua carreira no futebol, e como se dá essa adaptação?
Isso é uma história muito longa, não é? Mas tentando mais ou menos resumir, uma pessoa que nasce numa ilha, seja em qualquer uma das ilhas dos Açores ou na Madeira, tem uma perspectiva bastante diferente do mundo e do dia-a-dia. Isto porque tens um mundo muito mais pequeno do que o normal. Eu tenho muita família nos Estados Unidos, porque as irmãs do meu avô tinham emigrado para os Estados Unidos, faziam parte de muitos açorianos que emigraram para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor. Eu tive essa “sorte” de ir passar o verão nos Estados Unidos, em Bristol [no estado de Rhode Island], ver outras coisas muito diferentes daquilo que eu via na minha ilha, que era muito pequena e muito fechada, com uma sociedade e uma mentalidade muito diferentes E, depois, obviamente, também cresci numa altura em que a Internet estava a aparecer. Lembro-me perfeitamente de ter aquele computador gigante e ter de carregar no modem, que fazia aqueles barulhos horrorosos para poder ligar e depois a minha mãe queria falar ao telefone e não podia, porque eu estava na Internet e isso também abria um bocadinho a perspectiva de outras coisas.
Guardas algum aspeto da cultura açoriana na qual cresceste para a tua vida?
Trago sempre, eu sou uma açoriana muito orgulhosa, eu adoro os Açores. Quero voltar para lá um dia destes e volto regularmente para visitar a minha família. Acho que há sempre uma sensação de, quando voltas à ilha, eventualmente, vais sair novamente, mas, quando estás fora, também tens a sensação de querer voltar. Andas sempre nesta coisa em que o ilhéu nunca está satisfeito. Acho que foi o Vitorino Nemésio que disse que “o ilhéu pode sair da ilha, mas a ilha nunca sai de ti”. Isso é totalmente verdade e a outra coisa é que tu, quando vais para a ilha, a primeira pergunta que fazem é: “então, estás cá, mas ficas até quando?” Sempre. O viver numa ilha ou estar numa ilha, crescer numa ilha, é sempre ter na cabeça a perspectiva de que, eventualmente, te vais embora, mas depois, quando vais e falas novamente com essas as pessoas, a pergunta já é “quando é que voltas”?
Portanto, há sempre esta coisa de seres, de certa forma, imigrante dentro do teu próprio país. Quando agora me mudei para os Estados Unidos, as minhas amigas perguntaram-me se não foi difícil e tudo isso e eu disse, sem querer desvalorizar a experiência de ninguém, porque ser imigrante, obviamente, é difícil, que já tinha um bocadinho essa experiência, porque eu já era uma espécie de imigrante quando saí de São Miguel para ir para Lisboa. É um bocadinho diferente de tu seres de Lisboa e ires para o Porto ou o que for, porque pegas no carro e vais, do que ter a experiência de teres de marcar uma viagem de avião, pagar 300 euros para ir, e fazer todo um dia de viagem; é diferente de estares próximo. Portanto, acho que a experiência da ilha é um bocadinho isso e, para mim, quando era mais nova, era um bocadinho redutor ter sempre as mesmas pessoas à minha volta. Não poder ver coisas novas em termos musicais, em termos de teatro, de leitura, embora, por lá, em termos de leitura, haja muita coisa necessária e haja muitas galerias boas e editoras também. Ainda assim, tinha sempre essa ideia de querer ir buscar mais coisas para mim e aprender mais e ver mais do mundo.
“A primeira coisa que devíamos ter [em Portugal] era um desporto escolar que fosse suficientemente apelativo, organizado e interessante para que as crianças e os jovens pudessem começar a jogar aí, com os pais também a se interessarem por isso.”
Desde os teus tempos de jogadora, que maior evolução foste notando do “teu” futebol, de quando deixaste de jogar, para o futebol das jogadoras que treinaste, não só do investimento feito na evolução do jogo, mas também do caminho ainda incipiente para uma espécie de semi-profissionalização?
É óbvio que há uma evolução e que há uma diferença grande. Quando eu jogava no 1.º de Dezembro, nós jogávamos um bocadinho para estarmos com as amigas e para passarmos tempo, porque recebias para aí uns cinquenta euros para a gasolina, uma cerveja e uma sandes e pronto. Era um bocado o ambiente de distrital, de “Liga dos Últimos”, não era nada sério, apesar de nós estarmos a falar na altura do 1.º de Dezembro, que era campeã e que ia disputar as eliminatórias da Liga dos Campeões. É totalmente diferente daquilo que há hoje e dessa semi-profissionalização que mencionas, que existe hoje, só que depois há um gap muito grande entre o SL Benfica primeiro, porque o Benfica, de facto, é um clube que eu acho que investe, faz um investimento grande no futebol feminino. Não estive lá dentro, porque, quando estive no Benfica, foi só nas escolas de futebol e na formação, não foi no futebol feminino, mas acho que é diferente daquilo que os outros clubes, neste caso o Sporting Clube de Portugal, o Sporting Clube de Braga, o Racing Power FC, o Valadares Gaia. Estes também têm futebol feminino com algum investimento, mas é um investimento que não é propriamente projetado nas suas equipas ou nas suas secções como algo que querem que seja muito bom e que querem que seja muito vencedor e que querem que seja lucrativo e que seja um negócio.
Acho que a perspectiva é mais do género de se ter de ter isto, de obrigação. Há interesse, mas não é assim tanto. Então quando cheguei aqui aos Estados Unidos, a diferença é da noite para o dia, o investimento é brutal, tudo é levado muito a sério, os jogos aqui são de Liga dos Campeões. Não é só no futebol, falamos no desporto, no feminino mesmo. Ainda ontem nós estávamos aqui em São Francisco, onde temos um jogo hoje, a ver as meias-finais da WNBA [Women’s National Basketball League] e estamos a falar de arenas que estão cheias. Para além disso, a ESPN está há não sei quantas horas a fazer o pré-jogo daquela meia-final e a meia-final acaba e está há não sei quantas horas a fazer o pós-jogo. Isto é impensável em Portugal, acho que nem sequer no futebol feminino, quanto mais no basquetebol feminino ou noutro qualquer desporto feminino. Isto para dizer que eu acho que, muitas vezes em Portugal, o desporto no feminino é quase visto como um mal ou um bem necessário. Dizemos que temos e que gostamos muito, mas não é propriamente um investimento sério de querer ter para investir a sério.
Mesmo assim, agora há uma diferença muito grande em Portugal [em relação a antes], porque tu agora já podes, sendo criança ou jovem, pensar em ser profissional de futebol, seja jogadora, seja treinadora, diretora, árbitra. Isso é, obviamente, uma diferença grande. No meu tempo, eu não sabia que podia ser isso, até porque, na altura, eu gostava muito de desporto, mas eu, ao seguir desporto, ou era professora de Educação Física ou não sei, não havia mais nenhuma saída que eu pudesse ver e eu não queria ser professora de Educação Física. Portanto, acabei por ir para Ciências da Comunicação, que não tem nada a ver. Há diferenças, há evolução, só que é uma evolução lenta, é uma evolução que está a demorar bastante, é uma evolução que, às vezes, é mais empurrada pelo contexto europeu e mundial do que propriamente pela vontade das pessoas em Portugal. E é pena porque eu já achava isto antes, e agora tenho a certeza absoluta, pelo que vejo aqui, que, se nós tivéssemos um bocadinho mais de condições e de investimento em Portugal, claramente éramos as melhores do mundo, porque o trabalho que se faz em Portugal é muito bom, as jogadoras são muito boas; só que depois é difícil, porque, não tendo as condições ideais, é difícil de crescer. Vêm aquelas pessoas a chatear-me a cabeça, a meter os comentários, especificamente no Instagram, a chatear-me a cabeça e dizer que “tu queres é milhões” e não é nada disso. Só quero o mínimo de condições de trabalho para que as jogadoras sejam profissionais, que possam ser profissionais, que não tenham de ter outro trabalho, que não tenham de pensar: “para o ano, o que é que eu vou fazer depois de sair deste contrato?”.

Achas que a entrada do Futebol Clube do Porto vai ajudar nesse sentido?
Acho que já está a ajudar muitíssimo, porque vejo o interesse grande das pessoas no Norte, que é muito importante, que sempre houve, para dizer a verdade, apesar de não haver o FC Porto antes. Eu lembro-me, quando eu era jogadora, de irmos jogar ao norte e era sempre um suplício, porque os estádios e os campos estavam cheios. Parece-me que o FC Porto está a levar o seu investimento muito a sério. A forma como abriu o jogo no Estádio do Dragão, a forma como as pessoas também quiseram ir, foi muito bonita. Acho que isso é importante também, porque só assim é que se pode crescer, e ainda bem.
“Os homens, embora a seleção feminina lucrasse muito mais e ganhasse muito mais, em termos de troféus, do que os homens, acabavam por ganhar muito mais dinheiro do que elas. Isso depois mudou e passou a haver o equal pay, mas essa vontade de quererem sempre lutar por algo melhor, por condições melhores, por serem melhores, isso foi algo que, para mim, sempre foi muito importante.”
Nesse teu caminho no futebol, ainda como jogadora, de que forma a cultura marcou a tua evolução pessoal? Vias que a cultura também influenciava as tuas companheiras? Há sempre uma visão que o jogador de futebol é meio rudimentar…
Sim, acho que essa visão dos jogadores e das jogadoras é um bocado redutora. Lembro-me de falar muitas vezes que a Joana Marchão ouvia música clássica e isso era visto como um fenómeno ela. São jogadores e jogadoras, são pessoas como as outras, não é? Eu acho que as pessoas também não entendem que, em cada área, seja de desporto, seja do que for, as pessoas têm uma inteligência específica para aquilo que estão a fazer. Para ser jogador de futebol ou jogador do que for, tu tens de ser muito inteligente a executar o teu trabalho, as tuas funções. Agora, é uma inteligência diferente, não é? Uma inteligência prática daquilo que é o teu desporto. Não tem a ver, às vezes, com outras coisas, como Matemática ou como Literatura ou com o que for. Para mim, especificamente, a cultura foi sempre muito importante, porque eu adoro ler, adoro ver outras coisas, aprender coisas diferentes e ver sítios novos e tudo mais. Foi muito importante para mim, mas também foi muito prejudicial, quando estava a crescer, perceber um bocado da cultura que havia no desporto feminino, especialmente aqui nos Estados Unidos, porque é totalmente diferente do que nós temos em Portugal.
Aqui há muito a cultura do speak up, em que as jogadoras falam muito e reivindicam muito os seus direitos. Acho que toda a gente conhece, por esta altura, a luta das jogadoras americanas que processaram a Federação Americana, porque sentiram que não estavam a ser suficientemente compensadas. Porque os homens, embora a seleção feminina lucrasse muito mais e ganhasse muito mais, em termos de troféus, do que os homens, acabavam por ganhar muito mais dinheiro do que elas. Isso depois mudou e passou a haver o equal pay, mas essa vontade de quererem sempre lutar por algo melhor, por condições melhores, por serem melhores, isso foi algo que, para mim, sempre foi muito importante. Sempre quis isso também, só que isso depois deu-me problemas, porque eu, como acho que isso é mais importante do que resultados e outras coisas, muitas vezes, as pessoas não gostam que eu lute por isso. Quando tu desafias o status quo e dizes coisas que são desconfortáveis para os outros, obviamente que vais levar pancada, mas eu não me importo, porque acho que fazem sentido. Era algo com que eu tinha mais problemas antes, mas, agora, não me importo minimamente. Houve uma altura, especialmente no Sporting CP — porque, enfim, era o Sporting CP, ou seja, era um clube grande, no sentido que, em Portugal, não se gosta muito que as pessoas falem, em que as pessoas que acham que são diferentes têm de estar sempre na mesma linha — em que tentavam que eu ficasse nessa tal linha. Eu tentei durante algum tempo e isso fez-me muito mal e não quero isso para mim.
O jornalismo acaba por fazer parte das tuas primeiras pisadas como uma profissional. De onde veio essa tua vontade de seguir esta área?
Sim, desde miúda, porque o meu pai era jornalista na RTP Açores na altura, onde, mais recentemente, foi diretor e também foi diretor de um jornal, o “Diário dos Açores”, também em São Miguel. Agora já se reformou, mas sempre tive essa referência, desde que era miúda. Depois a minha mãe também era professora de inglês e era uma pessoa que lia muito em casa. Sempre tive essas referências deles os dois em casa, a escrever muito, a ler muito e sempre foi algo que gostei muito. Como te dizia, também gostava muito de desporto e, desde miúda, jogava ténis, depois jogava futebol, mas não via grandes perspectivas de ter uma carreira no desporto. Portanto, gostava de escrever e decidi que queria ir para Ciências da Comunicação e que queria ser jornalista. O meu pai não gostou muito, disse-me que não valia a pena, que era mal remunerado e que era muito trabalho — não disse mentira nenhuma, como as pessoas devem saber. Mas foi algo que, na altura, achei que era para a seguir e fui muito feliz. Enquanto jornalista, fiz coisas espetaculares, especialmente no Expresso, onde nós, basicamente, refundámos a secção do desporto, que tinha sido um bocado empurrado para uma gaveta e voltou a crescer. Tínhamos muita liberdade para fazer tudo o que nos apetecia e isso era muito bom. Conheci pessoas espetaculares, não só no futebol, mas no desporto em geral, com entrevistas e reportagens que fiz e viagens e torneios e tudo mais. Foi uma experiência ótima, mas depois chegou uma altura em que tinha de escolher se ia para um lado ou para o outro e acabei por escolher o futebol. Não só porque é a minha paixão e adoro o futebol, mas porque, não sendo hipócrita, a remuneração não tem qualquer comparação.
“Gostava de escrever e decidi que queria ir para Ciências da Comunicação e que queria ser jornalista. O meu pai não gostou muito, disse-me que não valia a pena, que era mal remunerado e que era muito trabalho — não disse mentira nenhuma, como as pessoas devem saber.”
O que é que aprendeste com esta função e o que é que te trouxe para a tua vida profissional, visto que a relação com os media é quase entendida como uma das funções de um treinador?
Obviamente eu sabia e sei os objetivos dos dois lados e acho que sempre tive mais facilidade em passar a mensagem que queria. Porque o truque é fácil: tu ouves a pergunta, mas tu nunca respondes à pergunta que te fizeram, tu respondes à resposta que tu queres. É tão simples quanto isto, é só teres perceção e intenção daquilo que queres passar e daquilo que queres fazer. Mas claro que o facto de ter sido jornalista durante muitos anos — dez anos — claro que fez diferença nisso, claro que eu sei, claro que tinha mais à vontade em falar com os jornalistas por causa disso. Eu sabia que, quando dizia qualquer coisa, iam ligar A, B ou C, porque era fácil de perceber. Ainda assim, em Portugal, tirando os jogos que eram derbies ou que eram troféus ou a própria Liga dos Campeões, nós tínhamos uma ou duas pessoas e, hoje em dia, cada vez se manda menos pessoas para os locais fazer perguntas. O discurso também acaba por ficar todo muito mais uniformizado, porque, se não há perguntas diferentes, depois também não há respostas diferentes.

Como estiveste no meio, e acompanhas ainda assiduamente a realidade portuguesa através dos seus órgãos de comunicação social, quais achas que são os aspetos que o jornalismo em Portugal mais precisa de evoluir, desde a sua linha editorial até à própria e crescente precarização da profissão?
É difícil no sentido em que a precarização só faz com que os conteúdos sejam piores e, sendo os conteúdos piores, ninguém quer ler, ninguém quer assinar e tens menos dinheiro e isto anda assim à volta. É o ovo e a galinha e é cada vez pior. Já no meu tempo, se tu pagas muito pouco às pessoas, elas não estão seguras constantemente no trabalho que fazem e é difícil de conseguires ter os números de qualidade. Eu tento continuar a seguir e a assinar o Expresso, continuar a ler os meus colegas, mas acho que se manda cada vez menos pessoas para os sítios e saem coisas cada vez mais genéricas. Sem ir aos locais, sem falar com as pessoas, é difícil não o serem. Porque eu, quando compro um jornal ou quando sou subscritora de alguma coisa, eu quero ler entrevistas, eu quero ler reportagens, eu quero ler coisas diferentes, não quero ler takes da Lusa. Só que, depois, também há coisas do género em que o Expresso lança uma subscrição juntamente com o The New York Times, da qual sou assinante, e, vendo o preço daquela subscrição, é muito mais cara que a subscrição que eu tenho do New York Times sozinha. Não sei se a perspectiva que nós temos em Portugal é mais correta. O que eu acho que é importante, embora muito difícil, é dar tempo às pessoas, é ter pessoas nos sítios certos e que as pessoas tenham vínculos que não sejam precários e que possam, obviamente, fazer o seu trabalho.
Nomes como Manuel Sérgio ou Vítor Frade surgem como referências de pensar e de ver o futebol como um fenómeno humano e sociocultural. Conheces ambos ou tens outras referências no teu perfil como treinadora?
Já disseste duas delas. Eu acho que a melhor referência é mesmo o professor Vítor Frade. Acho que é a melhor referência provavelmente para a maioria dos treinadores em Portugal, porque tem os dois lados. Estamos a falar de alguém que, embora pense muito sobre o jogo e sobre tudo o que está à volta do que é uma pessoa a jogar futebol, também é alguém que, não falando especificamente de futebol, fala de futebol, mas depois também consegue especificamente falar de futebol, se quiser. Lembro-me, no início, na altura em que estava na faculdade e jogava, e andava a tentar começar a ser treinadora, de ter algumas pessoas amigas do Norte que conheciam o professor Vítor Frade. Entretanto, também conheci o professor Vítor Frade, por causa da Isabel Osório, da Mara Vieira, da Marisa Gomes, treinadoras muito competentes, e elas passavam coisas do professor Vítor Frade. Isto porque ele fazia umas grandes compilações de artigos, de revistas, de coisas de nada a ver com o futebol, e depois fazia anotações e sublinhava e fazia textos. Nas primeiras vezes que lia aquilo, era muito difícil conseguir perceber alguma coisa. Às tantas, ele dizia que estava a falar de qualquer coisa do jogo e, indo para algo que não tinha nada a ver, começava a falar do cérebro e de imensas coisas à volta. Obrigava-te a realmente pensar muito naquilo que é o ser humano, que não é só um jogador de futebol, não é só um robô de futebol e que é um bocadinho também a mensagem que o professor Manuel Sérgio também deixava, que também foi uma pessoa com quem eu tive o prazer de privar.
Às vezes, íamos almoçar e ele também dizia coisas que era difícil de perceber, mas ele repetia e dizia e dizia e nós lá chegávamos e entendíamos. É muito necessário ter pessoas que estejam por dentro do fenómeno, mas que também se consigam pôr de fora do fenómeno e pensar sobre ele, que nos obriguem a pensar sobre aquilo que estamos a fazer, porque, quando estás dentro do teu dia-a-dia, num equipa ou o que for dentro da tua época, tu não estás a pensar, às vezes, no macro, na big picture, ou estás a pensar em determinado resultado, em determinado jogo, e não estás a pensar naquela pessoa que hoje não está bem porque a mãe está doente, ou que não está a ter uma performance tão boa porque o sistema nervoso não teve tempo de descansar e está com fadiga ainda do jogo anterior, e por isso é que está a desbaratar. Portanto, ter essa compreensão do fenómeno, de tudo o que é à volta do futebol, é muito importante para depois conseguir realmente ter sucesso no futebol.
“A precarização só faz com que os conteúdos sejam piores e, sendo os conteúdos piores, ninguém quer ler, ninguém quer assinar [jornais] e tens menos dinheiro e isto anda assim à volta. É o ovo e a galinha e é cada vez pior.”
Seguiste então para os EUA, que foram sempre parte de uma ambição profissional tua, de lá estares presente na NWSL. Como tem sido a descoberta do país?
É engraçado, não é? Porque sempre que acontece alguma coisa, como o [assassinato do ativista político] Charlie Kirk no outro dia que foi assassinado no Utah, eu recebi imensas mensagens de pessoas em Portugal assustadas e interessadas, com uma perspectiva muito negativa daquilo que são os Estados Unidos da América. Não vou negar que eu, obviamente, antes de vir, estive quase para não vir, quando o Donald Trump ganhou as eleições presidenciais, porque tive dúvidas, fiquei ansiosa. Só que depois há outra perspectiva completamente diferente, e que isto é difícil de explicar às pessoas que não estão cá dentro, que é no dia-a-dia. Aqui, se eu não fosse uma pessoa interessada por política, que lê o The New York Times e que fala com as pessoas aqui, especialmente com estrangeiros, eu nem saberia o que é que se passa. É muito fácil viver nos Estados Unidos e não saber o que é que se passa aqui, porque, em Portugal, facilmente se ligas à televisão e tens o telejornal de algum canal e toda a gente está mais ou menos a ver o mesmo, ou mesmo as bancas dos jornais, em que estão mais ou menos as mesmas coisas.
Aqui, como todos os estados são praticamente países, não há bem as mesmas referências, porque as pessoas também já não têm muito aquela coisa de ver a televisão. As pessoas mais novas que eu conheço nem sequer têm televisão, é tudo internet, ou YouTube TV ou aquelas coisas. Não há bem referências semelhantes. É uma experiência muito diferente e, para mim, tem sido muito enriquecedora, porque tenho tido a felicidade de poder ir a muitos sítios. Eu estou no Utah, mas depois nós jogamos em todo o lado, desde Nova Iorque à Flórida, Washington, Houston, Kansas, Portland, Seattle, Chicago, San Diego, Los Angeles. Portanto, consegues ter um bocado a perspectiva de muitos sítios diferentes e, nestes sítios, sentes coisas muito diferentes, são sítios muito diferentes. Parece que estás em países diferentes, mas não estás, e, obviamente, a dimensão do país é gigantesca. Por isso é que parecem sítios muito diferentes, mas acabas por ter uma perspectiva muito variada de muitos sítios, embora algumas coisas sejam mais ou menos semelhantes.
Ainda assim, outras chocaram-me bastante. Em termos de cultura, no Utah, a forma como aqui se encara o plástico é assustadora. Os meus colegas gozavam comigo no início. Deixavam palhinhas na mala, deixavam palhinhas na secretária. Eu dizia que eles estavam sempre a gastar, e é verdade. Nós somos uma equipa composta por umas 80 pessoas e todos os dias as pessoas vão lá, pegam no copo de plástico com a palhinha e tiram uma água, tiram os sumos, sempre com o copo de plástico. Mesmo o café é sempre com o copo de plástico. Quando vais ao supermercado, metem duas coisas por saquinho de plástico, ou seja, tu sais do supermercado e, de repente, tens, à vontade, 30 sacos. Há um desperdício muito grande, mas depois, se tu fores à Califórnia ou em Nova Iorque, já não é assim. Já pensam um bocadinho na reciclagem e na utilização, mas são coisas que, para nós europeus, se tornaram mais ou menos norma em termos de preocupação com o ambiente e com tudo mais. Algo que também me assustou imenso aqui é como é que é possível as pessoas, em quase todas as casas, terem luzes por fora e ficarem ligadas a noite toda. Imensas luzes, como se fossem luzes que pões no Natal. Enfeitar as casas por dentro ou fora e com contas de eletricidade onde pago 20 dólares de eletricidade [17,09€] e gasto muito mais por causa do ar condicionado, que toda a gente aqui tem. Em Portugal pagava apenas 40 euros de eletricidade e gastava muito menos. O meu cérebro fica um bocado confuso com coisas destas.
E depois a própria cultura dos norte-americanos, que são pessoas muito simpáticas, no sentido de serem prestáveis, muito fáceis de falar, de ter a chamada small talk, se calhar não tanto de ter conversas mais profundas. São muito fáceis de falar e muito prestáveis no sentido de te ajudarem para o que tu precisares, mas não têm a nossa cultura de estar, do género, a beber uma cerveja e de ficarmos ali sentados todos com duas ou três pessoas e chegarem mais três ou quatro e estamos lá cinco horas sentados na esplanada, a beber e a comer qualquer coisa. Aqui é um bocado mais a cultura do trabalho, eles focam-se muito no trabalho, porque depois querem-se reformar cedo e, quando se reformam, vão viajar e conhecer o país e dar voltas por aí. Aliás, eu, recentemente, tenho ido a vários National Parks, são os grandes ex-libris aqui de Natureza e a quantidade de pessoas que se vê de 50 anos para cima é um número muito grande mesmo, que realmente são reformados que estão a passear, que estão a ver as coisas, e, portanto, têm muito essa cultura que é completamente diferente.
Lembro-me que, quando cheguei, logo no início, tivemos um jantar de equipa e tivemos um jantar de patrocinadores, em que o jantar foi às seis. O dia começou muito cedo e o dia acabou muito cedo também, são horários completamente diferentes. De resto, também é um mundo muito capitalista, tudo é capitalista aqui. Na Amazon, queres comprar o que for e, daqui a duas horas, está na tua porta, sem problema nenhum, muito rápido. A quantidade de carrinhas de Amazon que se vê na rua é uma coisa mind blowing e depois há coisas com que fiquei muito confusa no início, como ter cartão de crédito para tudo. Para além disso, quanto mais dinheiro tu gastares, mais dinheiro eles te dão de volta e é constante, isto é tudo um jogo, é um jogo constante, toda a gente faz isto, todas as marcas, que é para te manter sempre a gastar e a trocar e a andar.

Não te incomoda ser uma sociedade tão capitalista?
No início, incomodou-me, agora, já é um bocado automático. Agora já entro no jogo, no sentido de, por exemplo, se for ao Starbucks e pedir um café, com esse café, eu estou a ganhar para a minha conta da Delta [Airways] para depois poder voar. Isto é tudo assim neste jogo, mas é claro que me incomoda. Sou uma pessoa de esquerda, mas gosto de dinheiro, não vou mentir. Ainda assim, o que me incomoda mais é a parte dos impostos e das grandes empresas não pagarem absolutamente nada. Impostos são uma loucura e toda a parte da saúde aqui também é uma loucura, as pessoas morrem, porque, de facto, não têm cuidados de saúde, porque, se não tiverem dinheiro, não têm sequer ajuda. Isto faz-me muita confusão, porque sou socialista e porque não acho que as coisas devam ser assim. Acho que temos de ter uma sociedade justa e, aqui, eles são muito individualistas, que é algo que eu não aprecio muito.
“Quando compro um jornal ou quando sou subscritora de alguma coisa, eu quero ler entrevistas, eu quero ler reportagens, eu quero ler coisas diferentes, não quero ler takes da Lusa.”
Tens alguma referência nesse teu pensamento político?
Não sei se referências, gosto de ler, gosto de ler muita coisa. Leio também pessoas de direita, não só de esquerda, e quer dizer, se ligares uma televisão em Portugal, 99% das vezes vais encontrar uma pessoa de direita, não de esquerda. Também temos de ter esta noção, mas sim, é claro que tenho mais referências de pessoas de esquerda, especialmente mulheres, porque me identifico mais, porque também não há assim tantas. Obviamente, gosto muito da Isabel Moreira, gosto muito da Mariana Mortágua, da Joana Mortágua, da Alexandra Leitão ou da Mariana Vieira da Silva. Gosto especialmente de pessoas assim, que sei que é difícil para elas estar a fazer o papel que estão a fazer ou dizer as coisas que têm de dizer, mas elas fazem na mesma e levam pancada por aquilo, que é algo que aprecio bastante. Gosto de segui-las por causa disso, mas isso não quer dizer que eu não leio outras coisas também de outras pessoas de direita. Leio, embora discorde muitas vezes delas, especialmente no Expresso, autores como o [João] Vieira Pereira ou o Bernardo Ferrão, porque gosto de tentar perceber o pensamento. Outro é o Ricardo Costa, que é uma pessoa um bocadinho mais neutra, gosto também do Rui Tavares e de mais pessoas interessantes e que gosto de ouvir e de ler.
Fico sempre muito incomodada quando as pessoas dizem que não se interessam por política. Então, não se interessam pelas suas próprias vidas, não se interessam pela sua sociedade, pelo seu país. É muito difícil para mim ouvir esse tipo de coisas, e eu prefiro ouvir uma pessoa que tem ideias completamente contrárias às minhas, mas que tenham ideias — que não sejam fascistas, obviamente —, mas agora dizer que não se interessam e por isso não querem saber, isso não. As pessoas não precisam de estar constantemente a ver coisas na televisão ou a ler, até porque as televisões hoje em dia massacram de uma forma brutal, através do sensacionalismo, do choque, da última hora. A última hora de algo que já aconteceu há 10 horas e continuamos na última hora, a tentar que aquilo crie ansiedade nas pessoas e vontade de ver mais. Acho que as pessoas devem minimamente estar informadas sobre o sítio onde vivem, ao menos, mesmo que não seja a nível nacional, pelo menos na cidade onde estão, em quem é que vão votar, seja onde for.
“É muito necessário ter pessoas que estejam por dentro do fenómeno [do futebol], mas que também se consigam pôr de fora do fenómeno e pensar sobre ele, que nos obriguem a pensar sobre aquilo que estamos a fazer.”
Quais é que consideras as prioridades do desenvolvimento do futebol feminino português face ao nível apresentado aí nos EUA?
Acho que a primeira coisa, e a mais importante de todas, é profissionalizar a Liga, porque não faz sentido continuar-se neste rame-rame, que é o rame-rame de ter equipas que investem, outras que estão a tentar acompanhar, depois há outras que não estão a tentar acompanhar e que têm só os mínimos indispensáveis, com jogadoras e staff que têm outro trabalho e não levam o futebol como, de facto, a atividade principal. Para mim, isso não faz sentido, tem de haver uma profissionalização da competição para existir em condições mínimas para as jogadoras e para toda a gente, para o staff, porque depois isso é que vai permitir que toda a gente tenha condições de trabalho. Aqui nos Estados Unidos, há um CBA [Collective Bargaining Agreement], que é o contrato coletivo de trabalho que as jogadoras negociaram com a Liga. Não imaginas a quantidade de coisas que ali está fixada como o mínimo de trabalho para toda a gente.
Mas é assim que deve ser e é importante que aconteça, porque é isso que depois vai fazer com que a Liga seja melhor, a competitividade seja melhor, a qualidade seja mais e, se isto já é profissional, se já estamos aqui a investir nisto, isto tem de ser um negócio e não só um jogo, nós temos de criar formas de rentabilizar isto. Para isto ser rentável, nós precisamos que as pessoas, de facto, vejam isto, e se nós precisamos que as pessoas vejam isto, nós precisamos de criar um produto apetecível para as pessoas verem, porque, hoje em dia, para veres um jogo da Liga Feminina, quase que tens de te benzer, porque há jogos, como acontecia em Alcochete [cidade onde joga a equipa feminina do Sporting CP], em que as pessoas não podiam comprar bilhete, porque, em Alcochete, não se comprava bilhete, porque não deixavam entrar. Tu só ias aos jogos em Alcochete se fosses sócio do Sporting ou se fosses com um sócio do Sporting, não podias ir comprar um bilhete. Eu falo deste exemplo porque é um exemplo de acesso difícil.
Os jogos são todos de acesso difícil e as pessoas têm de se interessar mesmo muito, mesmo de serem obcecadas por ir ao futebol feminino, para conseguirem ir a um jogo. Mesmo para comprar para finais da Supertaça, queres comprar online e não podes. Estamos em 2025, as pessoas já estão habituadas a fazer isto e não é possível. Se o acesso é difícil, as pessoas depois deixam de se interessar e, se as pessoas não se interessam, está tudo interligado. Começa ali atrás, nas condições, mas depois vai ligar e tudo o resto. Mesmo na questão do planeamento, da marcação dos jogos, eu hoje não podia ver, porque hoje estou aqui em San Francisco, mas estávamos num passeio de equipa e recebi mensagens de um amigo meu, que estava a dizer que o jogo começou agora, com o Sporting a jogar à mesma hora que o Benfica. Eu pergunto: numa liga em que ainda é mais reduzida este ano, com 10 equipas, uma coisa mínima, conseguimos pôr os dois maiores clubes à mesma hora? É inacreditável.
Entendo porque é que este tipo de coisas acontece, porque é a Federação Portuguesa de Futebol a entidade que regula, já que também regula a Liga 3, a Liga Revelação, aquelas coisas todas. As mesmas pessoas fazem tudo. Pelo menos, anteriormente, era assim, não sei se agora com a nova direção continua a ser assim. Portanto, não há aqui pessoas que estejam focadas especificamente na Liga Feminina e que estejam a pensar no que é melhor para a Liga Feminina. Se isso não acontece, é muito difícil que as coisas cresçam e sejam diferentes. Obviamente, isto não acontece de um dia para o outro, é uma coisa que demora o seu tempo, mas é preciso haver um plano e as pessoas quererem mudar e haver uma intenção de fazer coisas diferentes. Acho que ainda estamos a passar aqui por dores de crescimento muito grandes e precisamos de avançar, porque os outros andam a avançar e se os outros avançam e nós não avançamos acabamos por ficar para trás.

A sociedade portuguesa é cada vez mais altamente politizada, radicalizada e extremada aqui em Portugal. De que forma achas que esta conjuntura social em que estamos pode impactar positiva ou negativamente a evolução do futebol feminino?
Acho que impacta negativamente, sim. Na altura, não me lembro quando é que foi, acho que ainda estava em Portugal, que ainda não tinha vindo para os EUA, que o Bloco [de Esquerda] tentou que a FPF pagasse o mesmo à selecção feminina e à selecção masculina. Lembro-me de ler coisas, não só nas redes sociais, porque nas redes sociais tu já esperas, especialmente de algumas vozes masculinas que são contra tudo o que é futebol feminino e desporto feminino, e de outras pessoas que deviam ter um bocadinho mais de responsabilidades e de percepção daquilo que estavam a dizer, a dizer que não fazia sentido nenhum, porque as mulheres não têm de ganhar tanto como os homens, porque ganham e lucram muito menos. A confundir assuntos que não têm nada a ver. Quando se fala em seleções, fala-se em representar o país, sendo homem ou sejas mulher, recebendo X por dia, ou, por semana, recebes X. As jogadoras portuguesas, o que elas recebem é uma coisa… Não sei se entretanto isso mudou, mas era uma coisa absolutamente assustadora, era muito pouco mesmo. Era qualquer coisa à volta de 100 euros por dia, era assim uma coisa. Se nós juntarmos aqui uma semana 100 euros por dia, parece um valor grande, mas se tu dizes que os homens ganham umas 50 vezes isso, acaba por ser um bocadinho estranho de olhar para pessoas que estão a representar Portugal, a fazer a mesma coisa, que é um jogo de futebol e acabam por ter um vencimento super diferente.
Por isso é que muitas federações em todo o mundo puseram esse valor equitativo, porque é o que tu estás a receber por representar o teu país. Depois há outras coisas, em que os homens, porque têm um contrato de patrocínio com X e os homens recebem do marketing ou do não sei o quê um outro X e as mulheres recebem um Y, mas o pagamento só de estares a representar o teu país deve ser igual. Eu acho que sim, que deve ser igual, e por isso é que muitas federações europeias e os Estados Unidos fizeram isso. Há sempre muita gente que aparece a dizer que não, que não tem sentido, e que o discurso cada vez mais tramado nas redes sociais contra as mulheres e os direitos das mulheres faz com que isso seja visto como algo que não deve acontecer, e acho que é uma pena. Só para te dar uma comparação também, aqui nos Estados Unidos: as jogadoras, quando jogam um amigável, ganham 10 mil dólares [à volta de 8545€]. Portanto, acho que já dá para perceber mais ou menos a diferença de valores — são valores públicos.
“Leio também pessoas de direita, não só de esquerda, e quer dizer, se ligares uma televisão em Portugal, 99% das vezes vais encontrar uma pessoa de direita, não de esquerda.”
Sentes que a objetificação da mulher-jogadora ainda está muito viva no típico adepto de bancada?
Sim, acho que sim, acho que isso se vê especialmente nas redes sociais, com algumas conversas. Eu percebo no sentido em que é uma coisa muito nova, se calhar o futebol feminino é um fenómeno mais novo, mas não percebo que esse seja logo o primeiro pensamento. Acho que o jogo é o mesmo, acho que depois, se as pessoas, os homens começarem a ver os jogos, acho que depois entendem que isto é interessante. Se calhar tem de haver aquele primeiro passo e o primeiro impacto, porque são jogadoras e as jogadoras são atletas, como são os homens. É por aí que têm de ser vistas e tratadas, com respeito, tal como os homens, se bem que, nos homens, às vezes, é bastante mais difícil haver esse respeito. Acho que há muito mais fanatismo e acho que também já há no futebol feminino esse fanatismo. Eu recebia muitas mensagens de ódio mesmo, havia alturas que não podia abrir as redes sociais, porque tinha muitas dessas mensagens e, portanto, com certeza, aos jogadores. Essa é a parte que ninguém gosta no futebol e que não faz muito sentido e que aqui, nos Estados Unidos, acho que é completamente diferente. É do oito ao oitenta, não tem mesmo nada a ver. Eles, talvez porque têm muitos desportos e muitas equipas, a cultura desportiva é muito diferente. Perde-se um jogo mas avança-se e se pensa-se na próxima semana. Depois os adeptos continuam lá, estão lá a pedir fotos, estão lá a pedir autógrafos, batem palmas. Portanto, é uma cultura bastante diferente nesse sentido da vitória e da derrota.

De que forma vês o espírito reivindicativo das jogadoras e das demais agentes do futebol feminino? Está presente ou ainda é algo muito pontual e onde foste e és exceção?
Acho que há poucas pessoas a fazê-lo, honestamente. Há poucas pessoas a fazê-lo e há ainda menos jogadoras a fazê-lo. Porque, em Portugal, há muita cultura do silêncio, há muita cultura da retribuição. Portanto, as jogadoras sabiam perfeitamente que, se dissessem qualquer coisa, depois eram castigadas por isso. O mundo do futebol em Portugal é muito pequeno, portanto, as pessoas conhecem-se todas. As pessoas que estão na federação e nas seleções e nos clubes conhecem-se todas. Se pensares em jogadoras norte-americanas, para dar o exemplo mais fácil, consegues pensar em uma, duas, três que falam e que sempre falaram, que sempre tiveram esse espírito reivindicativo. Se pensares em nomes portugueses, já não te vem nenhum à cabeça. Porque, tirando as jogadoras que já estão reformadas e que dizem uma coisa ou outra, é muito difícil ter alguém que diga qualquer coisa. Porque a cultura que é imposta é uma cultura de “ou estás caladinha ou vais ter problemas”. Normalmente é isto que acontece em Portugal. É muito raro haver alguém que diga qualquer coisa. Acho que a única exceção ultimamente tem sido a Jéssica Silva, que também teve alguns anos aqui nos Estados Unidos. Acho que também acabou por beber um bocadinho da cultura aqui das jogadoras e que faz sentido que assim seja. Depois há outras jogadoras que, dentro dos próprios clubes, às vezes, falam e que tentam, sim, lutar pelos colegas e pelos direitos dos seus colegas, mas, em termos públicos, às vezes, não é tão frequente.
“O que me incomoda mais [nos EUA] é a parte dos impostos e das grandes empresas não pagarem absolutamente nada. Impostos são uma loucura e toda a parte da saúde aqui também é uma loucura, as pessoas morrem, porque, de facto, não têm cuidados de saúde, porque, se não tiverem dinheiro, não têm sequer ajuda. Isto faz-me muita confusão, porque sou socialista e porque não acho que as coisas devam ser assim. Acho que temos de ter uma sociedade justa e, aqui, eles são muito individualistas, que é algo que eu não aprecio muito.”
De igual modo, a saúde mental é já uma questão sobejamente abordada na sociedade civil, e, como não poderia deixar de ser, o desporto não é exceção. Quais são as tuas maiores preocupações nesta matéria?
Sim, tem de ser uma preocupação grande. Eu, quando estava em Portugal, já tinha uma psicóloga desportiva com quem trabalhava, a Ana Bispo Ramírez, que é fantástica, mas eu noto que, aqui nos Estados Unidos, há muito mais essa preocupação do que em Portugal. Em Portugal, acho que ainda se pode dar mais passos nesse sentido, ter pessoas exclusivamente com as equipas e a full time, que nem sempre acontecia. Aqui fala-se muito nisso, não só na perspectiva das jogadoras, mas na perspectiva do staff também. Nós temos uma pessoa que está à full time com a equipa, uma que está disponível a full time com a equipa para as jogadoras, outra que está disponível para o staff. Há muito essa preocupação de toda a gente, desde a liderança, dos diretores e presidentes, porque, como aqui, há uma maior facilidade de denunciar quando os ambientes de trabalho são tóxicos, toda a gente se preocupa em que o ambiente de trabalho seja bom para toda a gente. Essa é a primeira preocupação, e que toda a gente esteja civilizada, que toda a gente esteja bem. Isso é mesmo uma grande preocupação aqui, por isso mesmo, já houve, nos últimos anos, algumas queixas de ambientes de trabalho tóxicos, de pessoas que não se comportavam de uma maneira aceitável e que rapidamente foram investigadas pela Liga e que saem.
Portanto, vendo essa abertura e essa percepção por parte de toda a gente, acho que é mais fácil falar do assunto e é mais fácil todos estarmos alinhados para o mesmo. Isso é super importante, porque estamos a falar de um desporto de alta competição, de performance. Sendo jogador ou sendo staff, tens de estar disponível para todos os dias ter rendimento, seja no que for. Isso é cansativo, pois estamos a falar de algo que envolve não só a parte física, mas a parte emocional. Estamos a falar de um jogo que é muito emocional, que envolve muitas emoções, que envolve muitas relações humanas, das mesmas pessoas a verem-se todos os dias e de pessoas que, depois, passam muito tempo juntas, porque viajam para muitos sítios e passam muito tempo em hotéis e tudo mais. Portanto, é importante que as relações sejam saudáveis, porque senão nós não conseguimos trabalhar.

O futebol feminino, pelo menos em Portugal, não parece mobilizar tantos tribalismos e ser um fenómeno que, da parte de quem o assiste, é mais analisado pelo jogo jogado, sem as habituais clubites. Crês que é uma vantagem para o seu eventual crescimento ou pode ser uma barreira, por ainda não mover tantas paixões?
Neste momento, já há uma mescla razoável das duas coisas. Acho que há um bocadinho dos dois, há mesmo muita paixão no futebol feminino, mas não há tanto o fanatismo do futebol masculino. Acho que isso é bom, porque pode-se falar mais do jogo, pode-se falar mais das jogadoras, pode-se ter uma perspectiva mais saudável sem passar logo para a loucura de “eu odeio o A ou o B ou o C”. Porque isso é totalmente desnecessário, não é? É um jogo. Eu entendo a perspectiva, porque eu, quando era mais nova, também tinha esse fanatismo. Agora já não tenho, porque trabalho no meio e, quando estás no meio, representas vários clubes, quando estás num clube, tu és daquele clube, estás a representar aquele clube. Não podes ser fanático de XYZ quando estás no clube. Depois, porque acho que cresci e que estou um bocadinho mais madura e mais velha e acho que, se as pessoas tiveram um bocadinho de percepção e intenção em pensar, em refletir sobre aquilo que é o fenómeno desportivo, entendem que não faz grande sentido nós estarmos a querer matar o outro só porque o outro é de um clube diferente do nosso. Não faz sentido de maneira nenhuma, mas, neste caso específico, não faz sentido. Acho que o futebol feminino ainda está numa parte saudável que mescla as duas coisas e espero que se mantenha assim, porque a violência no desporto não faz sentido nenhum. Não é isso que nós queremos, obviamente o futebol feminino precisa de mais adeptos, mas não precisa de mais negatividade, nem violência, nem nada do género.
“Fico sempre muito incomodada quando as pessoas dizem que não se interessam por política. Então, não se interessam pelas suas próprias vidas, não se interessam pela sua sociedade, pelo seu país. É muito difícil para mim ouvir esse tipo de coisas, e eu prefiro ouvir uma pessoa que tem ideias completamente contrárias às minhas, mas que tenham ideias.”
O que achas que o futebol masculino tem a aprender com o feminino?
Acho que é a questão do fanatismo, é que não faz tanto sentido haver a violência que há. Quando digo violência, não é só física, é verbal também. Às vezes, nas bancadas, quando vais a um jogo masculino, as coisas que tu ouves em 30 minutos é uma coisa que é demasiado, não faz sentido. Os árbitros não precisam de estar sempre (a ser insultados)… eu não sou nenhuma santa, eu também já (insultei) e, aliás, eu fui expulsa algumas vezes… Já falei aqui um bocadinho mal para as senhoras, mas faz parte do jogo de vez em quando, desde que não estejamos constantemente a atacar e a querer fazer do outro um inimigo mortal. Nós somos, de facto, competitivos quando estamos em campo e, se eu quero que o A ganhe, eu quero que o B perca. Se o B vai jogar com o C, se calhar eu também quero que o B perca, mas isso é só um desejo, não vou agora andar a bater em pessoas do B só porque quero que o B perca, não é isso. É difícil, às vezes, as pessoas não se esquecerem que isto é um jogo, ponto.
Obviamente é muito apaixonante e toda a gente gosta muito, mas isso não pode consumir as nossas vidas até ao ponto de não conseguirmos fazer mais nada, nem pensar em nada, nem estar com pessoas que não são exatamente da mesma cor que nós, acho que não faz sentido. Acho que o futebol masculino pode aprender um bocadinho com isso e com o respeito também das jogadoras umas pelas outras. Acho que as jogadoras, mesmo sendo de equipas diferentes, e mesmo as treinadoras são assim. Tenho um respeito muito grande e continuo a ter pela Filipa Patão, que era treinadora do Benfica, e somos amigas. Não há problema nenhum e, com as jogadoras, é igual. Portanto, nós quando estamos dentro de campo, é para ganhar e é para tentar o que nós pudermos, é para competir. Depois, quando estamos cá fora, é tudo ok, é seguir e tentar manter relações saudáveis, porque somos todos pessoas e as pessoas têm toda uma vida em que só um bocadinho é que é o futebol, tudo o resto não é futebol.
“Em Portugal há muita cultura do silêncio, muita cultura da retribuição”
Qual achas que é a maior prioridade que o futebol feminino em Portugal precisa de ter consigo para se assumir como parte de algo estruturante para o desenvolvimento da sociedade civil?
Não sei, é muito difícil, porque a primeira coisa que devíamos ter era um desporto escolar que fosse suficientemente apelativo, organizado e interessante para que as crianças e os jovens pudessem começar a jogar aí, com os pais também a se interessarem por isso. Aqui nos Estados Unidos, como deves saber, a parte do desporto escolar e das universidades é gigantesca. As universidades no Utah, sejam de estádios de futebol ou os estádios de futebol americano, têm estádios com 65 mil lugares e são estádios universitários. Falamos de uma universidade, o que é uma coisa assustadora. Claro que vamos falar de várias dezenas de milhares de dólares que eles pagam para estar na universidade, mas eu falo disto só para dar o exemplo de que, em Portugal, nós não temos muita cultura do desporto escolar, de ter as famílias envolvidas, não só no futebol, mas nas crianças poderem estar numa equipa, poderem experienciar o que é a competição, o que é ganhar, o que é perder e quererem ser um bocadinho melhores. Acho que, se isso existisse, havia mais praticantes e, a partir daí, em vez de termos logo os campeonatos nacionais, que, no feminino, é o que acontece, termos campeonatos distritais primeiro. A questão no feminino é que há muito do topo e não há muita base.
Há estas equipas que investem que são mais ou menos profissionais, há outras que são mais ou menos profissionais e depois há algumas que são maduras, mas depois, cá em baixo, não há distritais como na maioria dos sítios, não há distritais como no masculino e, depois, não há essa base de crescimento para entrar, porque não há assim tantos praticantes. Para termos mais praticantes, precisamos de começar por baixo, pelas escolas, por convencer as miúdas e convencer os pais que jogar futebol é fixe. Depois há outra coisa, que, no meu tempo, acontecia: eu não faço ideia como é que é agora, mas, sempre que era dia de futebol em Educação Física, eram os rapazes a irem para a esquerda e irem jogar futebol ali no campus, com as raparigas a irem para a direita jogar voleibol. Eu e mais uma colega víamos se dava para ir jogar futebol e, às vezes, íamos e, noutras, não íamos. Espero que isso, hoje em dia, já não aconteça. Espero que toda a gente jogue futebol, voleibol, etc. Isto para dizer que acho que é aí que tem de começar e que era melhor que tivéssemos mais sítios e mais espaços para fazer isso, para fazer torneios inteiros, escolares e tudo mais. Também percebo que há pais que não querem estar a pagar 100 euros por mês para pôr a filha na escola X ou na escola Y, porque hoje em dia é muito difícil conseguir ter alguém, seja um filho ou uma filha, numa escola de futebol sem ter de pagar. Hoje em dia quase tudo se paga, não é? Portanto, acaba por ser mais difícil.

