Em terra de opinadores, todos opinam e ninguém fala pão
Julgo ser consensual que Portugal é um país com um fascínio estranho por ouvir o que as pessoas têm a dizer sobre acontecimentos, polémicas, etc. E havendo quem goste do toque do microfone perto do seu rosto, ou a alegria de ver o seu nome citado num jornal, pode-se dar o caso de ouvirmos alguém opinar sobre algo para o qual não está habilitado. Costuma acontecer e é chato. Mas parece importar pouco. Se há quem quer ouvir, falemos, se perguntam, respondemos. E mesmo que ninguém pergunte, respondemos na mesma. O importante é falar, aparecer, fazer-se ouvir.
Há dias, ligou-me uma jornalista que estava a fechar uma peça sobre os cartazes racistas em que o primeiro-ministro é visado. Sim, são racistas, mas já lá vamos. Por estar de férias não vi a chamada, vi depois uma mensagem em que a jornalista dizia querer muito ouvir o meu comentário sobre a polémica dos cartazes que envolvia o primeiro-ministro. Vejam só! Eu, a comentar sobre polémicas que envolvem o primeiro-ministro. Chique.
No entanto, estava de férias, e confesso que não estava a par da polémica. Passou-me ao lado. Agradeci e declinei o convite por não estar por dentro. A jornalista em causa deu-me um pequeno contexto, mas ainda assim escolhi não falar. Longe de mim dar numa de paladino da moralidade, ainda para mais, num país onde se ouvem sempre os mesmos, foi difícil resistir.
Decidi ir ler mais sobre o que tinha acontecido. Num protesto dos professores, um professor empunhou um cartaz onde António Costa surge representado de porco com lápis espetados nos olhos. No meio da confusão, António Costa vira-se para o professor e diz: “você com este cartaz racista devia estar calado”. Li textos, artigos de opinião — lá está, li tweets, e a maioria era unânime: não é racismo. Nem foi preciso ir ao VAR. Houve até quem dissesse, no caso a Maria João Marques — uma daquelas pessoas a quem é cedido espaço para dizer o que lhe vai na cabeça — que sendo António Costa quem é, e filho de quem é, não pode ser considerado uma pessoa racializada. Este é um dos perigos de não resistirmos a comentar coisas para as quais não estamos habilitados. Ainda há quem diga que não se aprende nada na televisão. A verdade é que desde que as televisões se transformaram em viveiros de comentadores (ainda para mais sempre os mesmos) que somos forçados a conviver com comentários e tiradas patetas de pessoas com lugares cativos na televisão da nossa sala.
Reparei que há um padrão na maioria que tinha decidido que aquele cartaz não era racista: eram todas pessoas brancas. Homens, mulheres. Brancos. Os donos da verdade. Os que sabem o que é, quando é, como é. Os que sabem o que é racismo, mas curiosamente apenas pedem a palavra para nos dizer o que não é racismo. Nunca os vi dizer, taxativamente, “isto é racismo!” Nunca é. E se for é porque agora tudo é racismo.
Este conforto que muitos sentem sempre que uma pessoa racializada se queixa para dizer prontamente — “não, não foste vítima coisa nenhuma”, com o subtexto “eu é que sei quando é que és vítima”, é bastante demonstrativo de como o mundo está longe de ser um lugar saudável.
Se António Costa é oportuno na importância que escolhe dar a questões raciais, sim, é.
Se é verdade que António Costa tende a relativizar casos de racismo quando não é com ele, sim é. Se é verdade que continuam a existir ausências de políticas públicas de combate a discriminação racial por parte do governo de António Costa, sim é. É tudo verdade, infelizmente. Veremos como será daqui para a frente. Independentemente de tudo, aquele cartaz é racista e isso não é uma opinião. E a ver se nos entendemos — não nos vamos entender, mas tudo bem, quando uma pessoa racializada se queixa é para ouvir, não é para desvalorizar, porque apenas uma pessoa racializada consegue identificar quando é vítima de racismo, e se António Costa olhou para aquele cartaz e disse que aquilo é racismo, é e ponto final. E mesmo que não o tivesse dito em voz alta, o cartaz continuaria a ser racista. E não vou ser eu a dizer-vos porquê.