Em terra de surdos, quem ouve a intuição é rei

por Manuel Clemente,    16 Janeiro, 2021
Em terra de surdos, quem ouve a intuição é rei
Manel Clemente / DR
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Vivemos num mundo profundamente enraizado no pensamento lógico, onde a balança dos prós e dos contras ainda é a identidade responsável por grande parte das nossas decisões. Limitados pela mente racional, sentimos necessidade de provas, factos e argumentos que justifiquem as nossas ações. Este comportamento talvez seja o principal pilar de uma sociedade homogeneizada e previsível, onde todos afirmamos ser diferentes, mas poucos são aqueles que realmente exercem a sua diferença. Na altura de decidir, aquilo que sentimos tem pouca relevância. É quase visto como um capricho, algo supérfluo, sem importância alguma.  Não sabemos de onde vem, nem para onde nos leva. Por esse motivo, optamos por asfixiar a voz que sussurra e que, sem qualquer debate ou explicação, nos diz o que fazer. Mas afinal, porque é tão difícil escutar a intuição? E nos raros momentos em que conseguimos ouvi-la, porque preferimos ignorá-la?

Assim que o assunto salta para cima da mesa, ninguém hesita em dar a sua opinião acerca da intuição. É um conceito sobejamente conhecido e que, dentro do senso comum, carrega uma boa dose de misticismo e algum exotismo. À semelhança da meditação, prática que muitos ainda consideram de elevada complexidade, intuir algo também se tornou uma espécie de regalia, algo que, contrariamente ao sol, quando nascemos não veio para todos. Segundo o dicionário de língua portuguesa, esta “ferramenta” é considerada uma percepção instintiva, um conhecimento imediato e um pressentimento da verdade. Até aqui tudo bem, mas de onde será que vem tal informação? Ninguém sabe ao certo. Este processo dá-se de forma involuntária e inconsciente, fugindo por completo à nossa obsessão de controlar tudo o que se passa nas nossas vidas. Ainda hoje a ciência está para decifrar este enigma, o que leva a atribuir a este fenómeno um caráter divino ou paranormal.

Foram várias as personalidades que se manifestaram a propósito daquilo que é a intuição. Por exemplo, o psiquiatra Carl Jung via esta capacidade como uma forma do nosso interior revelar a sabedoria que sempre habitou em nós, mas que até então era inacessível. Já Immanuel Kant era perentório ao afirmar que todo o conhecimento humano teve por base a intuição, que por sua vez se transformou num conceito e, por fim, numa ideia. Mais recentemente, Steve Jobs, um empreendedor de sucesso inquestionável, apelava às pessoas para terem a coragem de aceitar o que a intuição lhes dizia, pois já sabia o que precisávamos, muito antes de termos sequer consciência disso. Se todos aqueles que respeitamos e admiramos apregoavam o uso desta mais-valia, porque ainda desconfiamos das suas vantagens?

Não pretendo demonizar a mente consciente e racional, até porque esta é uma excelente executora e parte fundamental da nossa existência. Contudo, enquanto decisora, deixa imenso a desejar. Isto por um simples motivo: todas as conclusões a que chega têm por base fatores selecionados por nós. Nestas alturas esquecemo-nos o quão míopes somos no que toca a visualizar todos os aspectos existentes. Existem inúmeras variáveis, muitas delas ainda por materializar. Iludidos pela frieza da razão, julgamos que quanto mais pensarmos, melhor será a decisão — qual regra de três simples, qual quê. Por este motivo, andamos às voltas, ficamos ansiosos e transformamos o processo de escolha numa tortura. Não seria tudo mais simples se respeitássemos o que sentimos? É assim tão importante justificar e analisar cada sensação até ao tutano?

Apesar de também existir alguma romantização em torno da intuição, também ela consegue ser bastante crua e feroz naquilo que nos diz. Nem sempre vamos ouvir aquilo que gostaríamos. Podemos ter acabado de começar uma relação nova em que, teoricamente, existe tudo para dar certo, mas que algo nos diz que não é por ali. Ou ter conseguido o nosso emprego de sonho e, ao fim de um mês, sentir que aquilo que desejámos afinal não era o que precisávamos. Isto também se pode aplicar a decisões mais pequenas. Pode estar um dia de sol e, antes de sair de casa, sentimos que talvez seja melhor levar o guarda-chuva. Existem mais cenários do que aqueles que poderíamos imaginar. Seja qual for a situação, não temos de ser impulsivos e reagir de imediato. Podemos apenas ficar atentos e ter em consideração aquele feeling.

Mais do que ouvir a intuição, falta-nos coragem para obedecer-lhe. Sem duvidar, nem questionar. Fazer porque sim, porque é assim que tem de ser. Fomos ensinados a pensar antes de agir e tanto ficou por fazer porque não agimos antes de pensar. Quantas coisas maravilhosas ficaram soterradas num monte de dúvidas e incertezas? Quantas vidas morreram antes sequer de terem nascido? Quanta felicidade caiu podre porque faltaram motivos para a apanhar? Nunca iremos saber. Já é tempo de pararmos de procurar explicações para tudo. Viver não tem de ser um processo mecânico, em que para chegar a C tenho de partir de A e passar por B.  

Nem todas as motivações precisam de um motivo. Nem todas as respostas têm de ser justificadas. Nem todas as decisões precisam ser planeadas. Por vezes só precisamos de dar o benefício da dúvida ao que vai cá dentro, pois contra sentimentos também não há argumentos.

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