Ensaio. Deverá a arte ser o que a maioria quer que seja?

por Cronista convidado,    29 Setembro, 2021
Ensaio. Deverá a arte ser o que a maioria quer que seja?
Estátua de David, da autoria de Michelangelo Buonarroti / Fotografia de Delia Giandeini / Unsplash
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Se é verdade que teoricamente o Postmedia Condition teria a capacidade de criar um regime artístico mais democrático em que todos podem participar, como descrito por Peter Weibel no final do seu ensaio com o mesmo nome, também é verdade que tal não se verificou nos últimos anos, foi criada uma maior distancia entre os públicos menos especializados com a arte contemporânea. Este problema pode causar dificuldades à sobrevivência da arte como a entendemos hoje. 

Os novos média na arte deram voz a todos aqueles que não obtinham antes validação para apresentar o seu trabalho, deram-lhes meios para o fazerem por si próprios, para o apresentarem ao mundo, mas será que isso foi de facto positivo para o desenvolvimento da prática artística? E quem tem a capacidade de a validar?  

É talvez preciso referir de novo o ensaio de Peter Weibel, mais precisamente aos primórdios do conceito de arte enquanto Techné, ou seja, a arte como algo que tem a ver com o trabalho manual, com o artesanato, uma atividade que não diz respeito ao pensamento. A atividade intelectual diz respeito à Epistemé, conhecido mais tarde como Artes Liberais, precisamente como trabalho livre, que não diz respeito a salários ou escravatura, puro conhecimento. Estes conceitos estão na génese da compreensão da arte que se tenta adaptar aos novos média. Foi preciso o renascimento para que as disciplinas que hoje conhecemos enquanto Belas-Artes fossem reconhecidas enquanto uma atividade do intelecto e promovidas a artes Liberais. Começa aqui uma atividade tão comum na arte que é a de testar e comparar os limites dos meios. A competição estava entre escultura e pintura, sendo que se considerava a pintura como forma de arte mais elevada por esta permitir cenários imaginários, existir liberdade, uma validação que se dava a  partir da inteligibilidade filosófica.  

É durante os modernismos que se atinge o cúmulo do conceito apresentado no parágrafo anterior. Existe uma tentativa de purificação, falando da pintura, enquanto puramente ótico, focado no meio específico e nos limites deste. É interessante trazer à discussão a posição de W.J.T.  Mitchell em que a pintura não pode ser definida como pura pintura pois a única coisa que a  sustenta é o discurso critico, sem esse ela torna-se incompreensível aos públicos. “Without the  former (the discourse of theory), the uninstructed viewer would (and did) see the paintings of Jackson Pollock as ‘nothing but wallpaper’.” (Mitchell, 2005). Assim sendo o publico não  instruído entende a obra de arte enquanto um objeto com um caracter quase “sagrado”, envolvido numa “Aura”, como descrito por Benjamin. Creio que este seja um ponto essencial à problemática aqui apresentada pois a obra de arte segundo a condição dos novos media já não se contém num objeto em si, e o publico não instruído tem dificuldade em entender o que o distingue. Nesse sentido a arte tem dificuldade em sustentar a sua validação aos públicos em geral sob essa inteligibilidade filosófica. 

As artes ditas tradicionais (pintura, escultura) são valorizadas pelo número de pessoas que visitam uma exposição que foi precisamente organizada para essa legitimação. A arte sob os novos média é valorizada também pelas pessoas que a visitam e que permite a rentabilidade económica.”  

Aprofundando este assunto, quando os novos meios começam a surgir, em particular a fotografia, o vídeo, a televisão e o filme trazem algo de novo à arte que é a sua reprodutibilidade. A fotografia e o filme, apesar de reproduzíveis, não mudam este panorama por completo pois estes ainda permitem a sua contenção num meio específico, respetivamente o papel fotográfico e a fita (na era pré-digital). Este cenário altera-se por completo quando surge a necessidade de distinguir o vídeo da televisão pois a única coisa que os separa são o publico a que tem a capacidade de atingir. Nasce aqui um novo critério para a valorização da obra de arte que leva os  artistas a limitarem a produção de objetos a um determinado número, por motivos económicos e sociológicos. “In short, sociology and Economics took over Aesthetics” (Manovich, 2001). No entanto as artes mantêm ainda a sua ligação ao médio. 

Esta tentativa de tentar que a valorização da obra de arte tivesse um elo de ligação ao medio em que é feita é completamente abalado pela revolução digital. Este torna possível que se  façam várias versões de um objeto artístico consoante o media. No próprio cinema um filme que está em 35mm pode ser digitalizado e visível por meios do Streaming hoje em dia, para dar um exemplo que nos é tão familiar. Neste sentido até o meio de distribuição é abalado, já não existe  uma diferença na distribuição da dita cultura de massas e dos objetos a que chamamos obras de arte. Creio que será interessante então discutir a forma de valorização das obras de arte a partir deste ponto. 

Recordo a conceito de “morte da arte”, não num sentido Hegeliano, que diria respeito a toda a produção artística, mas no sentido de Arthur Danto. Isto é, uma rutura parcial com a inteligibilidade filosófica, como já descrita anteriormente, que vem a legitimar a arte até ao  programa modernista e que culmina no nascimento da arte contemporânea. A legitimação acontece agora através de mecanismos sociais, sendo o que consideramos hoje muito  genericamente enquanto arte, determinado por críticos, curadores, galeristas, marchands que  formam o “mundo da arte” e que tem vindo a contribuir para uma padronização das correntes artísticas e estéticas de forma a facilitar a atribuição de valor às obras. As artes ditas tradicionais (pintura, escultura) são valorizadas pelo número de pessoas que visitam uma exposição que foi precisamente organizada para essa legitimação. A arte sob os novos média é valorizada também  pelas pessoas que a visitam e que permite a rentabilidade económica.  

“A arte vive também uma relação de servidão com a economia. Se refletirmos acerca do caracter racional desta legitimação da arte a partir da mercantilização da mesma, e realizada para esse efeito, talvez cheguemos à conclusão de que o lugar onde a arte encontra a economia (no sentido dessa legitimação) é o lugar em que perde a sua racionalidade. Não querendo retirar à economia uma racionalidade própria.

Expostos estes pressupostos poderíamos até pensar que a democratização da arte está a acontecer. Que o público tem agora lugar na legitimação da mesma e que está a ser eliminado o elitismo vinculado à prática artística durante os modernismos. Mas será que a arte não passou a justificar a sua existência e a ser criada, por conseguinte, para a mercantilização? Um exemplo disso, foi a proposta inicial, que tanta polémica gerou, quando foi a votação acerca da alteração da lei do cinema onde se permite que multinacionais, que tem em vista a cultura de massas e o lucro, interferissem na livre criação. Esta situação alterada mais recentemente com a famosa “Taxa Netflix”. 

Peter Weibel, no conceito intitulado Speculum Artium descreve uma relação entre arte e  política. “…In other words there is a highly sophisticated relationship between art and politics  which can be expressed as the speculum artium, or the mirror of art.” (Weibel, 2005). Este  defende que a emancipação da escultura e pintura, anteriormente referida, a artes liberais tem uma  ligação com a emancipação dos escravos. Analisando o contexto político dos países que vivem  numa democracia liberal podemos entender que a política vive numa relação de servidão com a  economia. Como dito num artigo do Público, que não está a comentar este assunto, mas que ao  mesmo tempo assenta nas mesmas bases “É justamente essa dimensão mítica e mística da  economia (…) que faz com que esta pertença ao político apenas na condição de o transcender,  de permanecer nele como injustificável, de permanecer nele como crença. E essa é a glória do  dispositivo político da democracia liberal: ela funda todo um imenso espaço político da razão para que a economia (que é, na verdade, o seu fundamento) possa permanecer fora da razão” (Bismarck, 2021). A arte vive também uma relação de servidão com a economia. Se refletirmos  acerca do caracter racional desta legitimação da arte a partir da mercantilização da mesma, e realizada para esse efeito, talvez cheguemos à conclusão de que o lugar onde a arte encontra a economia (no sentido dessa legitimação) é o lugar em que perde a sua racionalidade. Não querendo retirar à economia uma racionalidade própria. 

Podemos entender que essa democratização e alteração da forma como a arte se legitima é fruto dos novos média. Como se pode verificar estes não abriram apenas novas possibilidades de expressão, mas alteraram profundamente o funcionamento dos meios tradicionais. Creio que parte da resistência na aceitação dos novos médios como artes liberais se deve ao facto de que nunca antes estes foram tão apelativos aos públicos, como o espetáculo infantojuvenil que é muito do cinema popular dos nossos dias. Se em tempos a religião definiu o caminho da arte e foi utilizada para influenciar o espectador às ideias desta então a economia não é senão a continuação da religião por outros meios. Substitui-se o caracter “sagrado” do objecto, pelo valor de mercado do mesmo. 

A economia funciona aqui tal como o espetáculo, a sua presença é a única razão da sua existência arrastando mais do que a política, também a arte neste mito da valorização. No entanto é inegável que este factor contribui de facto para o combate ao excessivo preconceito com a arte, e que de facto, apesar da tendência de sobreposição de modelos culturais por via económica existe realmente uma democratização, mas esta tem um preço. 

“What is an artist? What is a scientist? I believe these two forms of knowledge to  be worlds apart. That has to be recognized, in my view. If we erase this difference, we erase  things absolutely essential to our existence” (Beuys, 1984)

Bibliografia 

• Benjamin, W. (1935). A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. • Beuys, J. (1984). What is money? Ulm: CLAIRVIEW BOOKS. 
• Bismarck, P. L. (2021). A economia política do mito. Público
• Danto, A. (1997). Después del fin del arte. Barcelona: Paidós. 
• Debord, G. (2021). A sociedade do espectáculo. Lisboa: Antigona. 
• Leonardo, T. (2020). Estado da arte. Cisterna
• Manovich, L. (2001). From White Cube to Cellspace: Image-spaces in Modern Culture.  Post-media Aesthetics, p.3.
• Mitchell, W. (2005). Journal of visual Culture. There are no Visual Media.
• Pereira, J. C. (2016). O valor da Arte. Lisboa: Fundação Francisco Manuel Dos Santos.
• Weibel, P. (2005). The Postmedia Condition.

Ensaio de Tiago Leonardo
Mestrando de estética e estudos artísticos na FCSH-UNL. Apaixonado por Artes visuais, cinema e filosofia.

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