Ensaio. Giacometti-Lindbergh: fulgurações invisíveis do corpo sensível

por Cronista convidado,    25 Maio, 2021
Ensaio. Giacometti-Lindbergh: fulgurações invisíveis do corpo sensível
©Peter Lindbergh
PUB

Este breve ensaio surge no contexto da extraordinária exposição “Capturar o Invisível”, esculturas de Alberto Giacometti e fotografias de Peter Lindbergh, em exibição no Museu da Misericórdia do Porto (MMIPO), de 15/04 até 24/09 de 2021, cuja estreia itinerante aconteceu no Institut Giacometti (Paris), em 2019. Trata-se certamente, pela qualidade com que foi preparada, de um evento que marcará a vida cultural e artística nacional, num espaço onde o silêncio das pedras revela a força das obras aí expostas. A exposição apresenta ainda um catálogo de excelência relativo às obras exibidas destes dois artistas.

A arte é a transcendência do real. É a possibilidade indefinida de dizer o invisível, não como aquilo que está oculto, mas como o que aparece na dobra do visível. A carne do visível mostra o invisível que a envolve, não como radical imanência ou pura transcendência, mas como fenda erótica de um “entre-dois”, o sensível e o imaterial, o vazio e a plenitude, visível e o vidente. A questão filosófica milenar que se impõe é a de saber como pode a imanência ou a materialidade dar-nos ou acolher um ser de transcendência? Como se desvela o invisível no visível? Como acedermos ao ser de latência que se revela na obra de arte ou nas estruturas do mundo? Na verdade, «o que é que nós vemos e o que aparece» aí no gesto escultural ou pictural? O que é surge neste entre-dois, entre o que vemos e o que nos aparece? 

Como escreve o fenomenólogo Jean-Luc Marion, « é preciso não confundir o que vemos e o que aparece. O que nós vemos constrói-se a partir do nosso ponto de vista, e, portanto, permanece o nosso objecto, que nós mantemos sob o olhar, que nós temos literalmente debaixo de olho. O que aparece vem dele mesmo, do seu fundo de não-visto (l’invu), e impõe-se em cena sem que o tenhamos posto em cena do nosso ponto de vista. Ele não se submete mais ao nosso olhar, às nossas perspectivas e dimensões.»1. No entanto, na esteira de Heidegger, «a pergunta permanece: é a arte ainda uma forma essencial e necessária em que acontece a verdade decisiva para o nosso ser-aí histórico, ou deixou a arte de o ser? Mas se já não é resta então a questão de saber porque é que isto acontece.2»

©Peter Lindbergh

A arte de Alberto Giacometti, como toda a arte que é intransigente com o dito “bom gosto” e com o inconsequente, a estética da sedução sedativa, é uma arte da brecha, da fenda, que anuncia o Eros, o desejo, a pulsão vital3. A obra de Giacometti, revelada «sob um outro ângulo, impossível de apreender a olho nu»4, neste caso, traduzida na fotografia de Lindbergh, é aqui passível de traição, mas também de recriação, na medida em que é sempre um acto hermenêutico, a cosmovisão de um outro, com a sua situação existencial, a sua tonalidade afectiva, no instante da “captação do invisível”. O artista suíço busca mais a perceção visual, a forma como vemos as pessoas, do que os traços reais das figuras. Nos seus retratos, as superfícies irregulares contribuem para captar a fragilidade e os destroços da angústia de um ser temporal, ao mesmo tempo que faz perdurar o rasto, a liberdade, a reinvenção pulsional do espaço-tempo.

O fotógrafo Peter Lindbergh fascinou-se pelo trabalho do artista suíço, usando a fotografia monocromática para uma «representação muito realista das esculturas, a profundidade da alma humana. Giacometti e Lindbergh atribuem grande importância à figura humana, com destaque para o olhar […]. Os retratos das modelos ou das atrizes, da autoria de Lindbergh, espoletam uma melancolia ao captar a aparente fragilidade das retratadas. Os retratos de Giacometti são também um pretexto para captar o carácter por detrás do olhar»5, privilegiando, assim, a percepção real do espectador, sem o simulacro inebriante do policromático, que poderia sugerir e até falsear a recepção do olhar nu das figuras, a iluminação do interior o caos que as habita. 

O poeta Jean Genet, no seu belo livro O Estúdio de Alberto Giacometti, talvez um dos melhores sobre a obra do pintor-escultor suíço, escrevia que «a beleza das estátuas de homens longos que parecem cristas do gótico flamejante provocam emoções muito próximas deste terror, e idêntico fascínio […], a arte de Giacometti parece querer revelar essa ferida secreta dos seres e das coisas, para que ela os ilumine»6. É, na verdade, por entre os orifícios ou aberturas desta carne ferida do anonimato dos humanos, que a obra enquanto tal evoca, e na sua própria fragilidade, ilumina, como carne a ser salva, e que nos interroga sobre o que é o ser humano para que dele nos recordemos.

Estes dois “modos de ver” (John Berger) são também dois estilos filosóficos na captação da coisa mesma, o invisível do visível, um num registo fenomenológico (Giacometti), outro num tom mais realista (Lindbergh). Surge, todavia, uma terceira espécie de percepção no diálogo que se instala entre a fotografia e escultura ou os desenhos, espécie de visão dupla, face a face, em salas amplas e luminosas, que tornam o diálogo ainda mais dramático e profícuo. E o que surge então? A própria percepção de quem vê, a partir do que é visto, quer dizer, a imbricação ou invaginação do vidente no visível e do visível no vidente, como carne anónima ou substrato de matéria negra que torna possível o encontro que sustenta o mundo comum de todos os seres. O bronze das esculturas animadas parece posar para as fotografias em formato amplo e largo, quase como se fosse um modelo pintado ou esculpido, e nessa pose espontânea, nasce a percepção erótica de quem as percebe, a actualidade viva da obra originária, nos seus detalhes e texturas carnais.

A percepção do movimento de uma figura que caminha sobre as suas próprias sombras é dialéctica negativa. Há aqui um paradoxal movimento sem deslocamento. Há um movimento mais intenso e real do que o próprio movimento, que o rosto expressa na sua máxima densidade enigmática. A inclinação do corpo dá-nos a promessa do caminho, a possibilidade de superação dos limites físicos do real ou da situação que o constrange. A resistência do mundo é real. Realizar uma visão não significa produzir um trompe-l’oeil, não significa reproduzir a realidade, fazer tout court a realidade. Pelo contrário, realizar a visão significa fazer aparecer aquilo que constantemente escapa à simples vista. Como na sua escultura L’Homme qui marche, nas suas múltiplas variações, o movimento só aparece quando se estatiza, só o reconhecemos no seu desaparecimento ou na sua impossibilidade de ser corpo animado ou vivido, pois, enquanto visível disponível para nós, deixamos de o reconhecer verdadeiramente. Aceder a si, reconhecer-se, mediante o reconhecimento de um outro, um reconhecimento que nem sempre é simétrico, na maior parte das vezes, é assimétrico, e no extremo, sem alguma reciprocidade, lá onde a perversão obsessiva da posse se apodera dos sujeitos.

A percepção, enquanto acto sensível e intelectual, contém e revela um sentido silencioso, não-dito pela linguagem falada, mas que é falante, pois expressa algo de si no corpo que se apresenta. O acto de perceber é o acto primordial através do qual o sujeito é lançado num mundo e possui este mundo para além de si mesmo. A percepção é um acto de transcendência (êxtase, ser lançado, abertura além de si). Esta descrição fenomenológica está nos antípodas do modelo objectivista do estudo da percepção, a partir da qual, quer a filosofia quer a tecnociência, deveriam encetar a sua reflexão para não caírem num “pensamento de sobrevoo”. A localização espacial, antes de ser primeiramente a conformação de supostos cálculos rápidos e invisíveis a nível subconsciente, constitui um posicionamento vivido em relação com o mundo e apresenta já uma significação existencial. 

A própria motricidade contém em si intenções ou modos possíveis de apreensão do mundo. O meu corpo é direcção ao mundo e o mundo o ponto de apoio do meu corpo. Afirma Merleau-Ponty: «Eu tenho o mundo como indivíduo inacabado através do meu corpo enquanto potência desse mundo, e tenho a posição dos objectos por aquela do meu corpo, ou inversamente, a posição do meu corpo por aquela dos objectos, não numa implicação lógica e como se determina uma grandeza desconhecida pelas suas relações objectivas com grandezas dadas, mas numa implicação real […].7

A coisa, por exemplo, uma escultura de Giacometti, espacializa o tempo, gera um espaço que não é neutro, mas polarizado e carregado de sentido. «O sentido é invisível, mas o visível tem uma membrura de invisível e o invisível é a contrapartida secreta do visível. Não aparece senão nele, ele é o Nichturpräsentierbar que me é apresentado como tal no mundo.»8. O invisível é o lugar virtual do visível, a filigrana que o torna apresentável (como nas esculturas de fibra óptica de Roseline de Thélin), sem o conseguir totalizar ou esgotar em si mesmo. «Ver o invisível» é, na verdade, o grande motivo de toda a obra de arte digna desse nome, procurando dá-lo a ver ao olhar atento e esvaziado de si mesmo de quem passa e se deixa envolver pelo desejo daquilo que lá não está, o tal outro de si mesmo, ainda que seja o que lá está que nos mostra ou indicia o que não está. 

O escultor Rui Chafes, numa exposição sobre Giacometti, na Gulbenkian de Paris, em 2018, intitulada “Gris, Vide, Cris”9, fala de um acto de coexistência, pois «a escultura é sempre uma linguagem no espaço» e por isso «algumas peças de Giacometti que vivem soltas no espaço» com as esculturas de Chafes, «não em confronto mas em coexistência». Escreve ainda o artista-pensador português num registo que poderíamos dizer fenomenológico: «Numa obra de arte é tão importante aquilo que se vê como aquilo que não se vê. Às vezes, até é mais importante aquilo que não se vê, porque uma obra de arte é apenas um fragmento de uma multidão de coisas que estão lá para trás e que não estão visíveis».10

Quer se trate de escultura ou de fotografia, ou de outra gramática artística ou do pensamento, a pergunta nodal poderia ser esta: «Como atingir a partir da matéria, o ponto de imaterialidade e de transcendência? Como representar o invisível?» (Helena Cunha). Trata-se sempre, portanto, de ultrapassar os limites do ponderável, entre a exasperação da desmaterialização e a habitação da plenitude de um Vazio primordial11, onde o silêncio e a «solidão solidária» (Miguel Torga) anunciam possivelmente o advento de um sentido para a ferida carnal, a compreensão da intemporalidade da obra enquanto tal

Só neste silêncio e nesta solidão quase místicos (cf. Giorgio de Chirico), nos interstícios da fenda da carne sensível, ainda que por instantes, se poderá compreender a génese poética de uma criação e do sentido que ela anuncia, a sua coexistência com a situação dos videntes, e a transfiguração do nosso olhar aí mesmo, no acontecimento do espaço escultural. Assim, «é no vazio, na solidão, no isolamento, na concentração e no silêncio que se aspira a atingir a “visão pura” […]. Desde o início que eu trabalho com sombras e com acontecimentos no espaço. Ou seja, uma escultura não é um objeto, é um acontecimento no espaço. É um acontecimento que ocorre perante os olhos de quem sabe ver. É isso que eu faço: tentar, através do ferro, que aconteça alguma coisa no espaço que algumas pessoas consigam ver» (Rui Chafes).

A escultura de Giacometti fenomenaliza-se espacializando-se, como movimento imóvel, como percepção do aqui actual que é já ali virtual, e não movimento simplesmente comumente entendido como deslocação daqui para acolá. Escrevia Giacometti: «Toda a arte do passado, de todas as épocas, de todas as civilizações, surge diante de mim, tudo é simultâneo como se o espaço tomasse o lugar do tempo.»12. O movimento invisível, entre o actual e o virtual, é uma visão em profundidade, dimensional, portanto potência vertiginosa e misteriosa, e como toda a vertigem alucinatória, ela contém em si o negativo no coração do ser rugoso. Assim, segundo Henri Maldiney, «a arte é tão real como o mundo. A existência estética é um modo de existir tão original, tão originário como o ser no mundo. Ela tem assim uma incidência directa sobre a ontologia».13

O espaço (ambiência/atmosfera) é a cúpula invisível sobre a qual se desenrolam todas as nossas experiências; é o solo originário para o imbricamento não-coincidente do tocante com o tocado, do vidente com o visto, do senciente com o que é sentido. É a condição para a radical transcendência como possibilidade mesma da nossa imanência. Não a coincidência do eu com o eu, do eu com o outro, do eu com as coisas, mas simbiose carnal, na medida em que se abre espaço para a diferença ontológica, não só entre o ser e o ente, mas entre o visível e o vidente, entre o sensível e o senciente. O corpo torna-se ontologicamente interface entre as coisas e a consciência, o mundo e o sujeito. Mover o nosso corpo, o corpo em movimento e o movimento do corpo, significa tender para as coisas, habitá-las por dentro, na comunhão da mesma carne que nos constitui. Todavia, como afirma o filósofo Claude Romano, «o que nos escapa é o que nos constitui», pelo que, e vice-versa, ‘o que nos constitui é o que nos escapa’.

Giacometti procura tornar visível o invisível que está contido no detalhe de um movimento que é estático. Trata-se precisamente de captar o invisível, mesmo se é impossível totalizar essa captação, na medida que nos escapa sempre, sendo ao mesmo tempo o que nos faz ser seres de desejo ou de ascendência para um outro patamar da realidade. Ver e tocar. O tangível vidente e o visível tangente. O olho toca e o toque vê num acto de visão háptica ou palpitante. Passagem de uma separação da experiência individual dos sentidos para uma experiência quiasmática onde nada é deixado de fora. «Nos seus retratos de Annette, o escultor tenta captar não só a semelhança física, mas também a sua natureza mais íntima e profunda».14

A percepção erótica não é um conhecimento ou representação do mundo que não abarca o sentido vivido do fenómeno sexual do corpo próprio. A existência é uma encarnação perpétua e o corpo é existência imobilizada ou generalizada. A esfera afectiva da estrutura geral ou formal (gestalt) da significação corporificada aproxima-se da experiência perceptiva. O estado afectivo encontra-se desde sempre já aí, como questão muda endereçada ao mundo do sujeito, precedendo a sua própria intencionalidade. O estado afectivo que o sintoma revela como expressão mais profunda não é uma propriedade existente em si para uma consciência pura, mas a tensão que surge entre o corpo próprio e o mundo que ele habita.

A vida anónima do corpo subentende a vida pessoal. O mundo abre-se sempre a partir de um estado afectivo pré-linguístico ou pré-reflexivo, não simplesmente como propedêutica a ser superada pela reflexão, mas como mundo próprio no qual o ser se diz e se dá a conhecer. O afecto deixa de ser compreendido como uma esfera do ser à parte, autónoma, para estar presente já ali, enquanto dimensão de abertura primeira ao mundo, e por isso parte integrante da experiência fundante da percepção que é a própria inserção do sujeito ao mundo. Há movimento de transcendência porque há afectividade sem a qual não haveria interesso no mundo, no outro, em si mesmo. O campo do sentir, na percepção e na experiência afectiva sem distinção, diz respeito ao encontro no qual o corpo solicita o mundo de uma determinada forma, e o mundo o interpela também, sendo esta tonalidade afectiva do ser-aí (gozo, tédio, angústia, compaixão, cooperação, perdão…) que se endereça constantemente ao mundo, que compõe o movimento geral da existência.

Compreender o sentir a partir do corpo próprio, é descobrir a tensão que nos habita enquanto seres espaciais em vias de temporalização. O corpo é o local primordial através do qual se dá a existência, numa compreensão recíproca. O valor afectivo não resulta de uma abstracção mental de um conjunto de forças ou representações que, no interior da subjectividade, fariam uma síntese das representações, dotando-as precisamente de valor afectivo, ou seja, de um modo externo. O sentido do afecto não está nem na subjectividade nem no meio que a circunda, encontra-se já no “entre”, na intersubjectividade ou no espaço entre o ser e o mundo através do qual ele é o que é e não outra coisa.

O ponto de orientação é a partir do corpo sensível para pensar o enigma da visibilidade, ou quase presença de uma ausência, em que a afectividade ou a atmosfera afectiva das coisas, dos lugares, do tempo, ou dos corpos, tem uma função ontológica primordial. Neste corpo sensível se abre a possibilidade da presença e da promessa ao mesmo tempo. A carne fenomenológica é a manifestação radical desta presença da ausência ou a presença da ausência. Do visível ao visual (simbólico) e do visual ao olhar, ao excedente do corpo, como esvaziamento do lugar, como espaço intersticial que deixa espaço para a revelação do ser. Extremamente evanescente, a matéria negra cósmica resiste a qualquer tentativa de detecção. E, no entanto, essa matéria escura é omnipresente. Mas será este paradoxo resolúvel?

Não passamos simplesmente de uma Revelação “saturada” para uma radicalização do corpo como carne anónima e geral, mas mantemos a tensão do corpo sensível ou afectivo como lugar originário para o acontecimento, para revelação da outra face do mesmo mundo (como no quadro Emaús de Rembrandt, no Museu Jacquemart-André, onde invisibilidade é sugerida na própria visibilidade mais do que pela figuração realista da cadeira vazia). Como afirma Miller, a propósito deste quadro do artista flamengo: «É compreender que o seu lugar é alhures: não num outro lugar, onde a sua aparência seria mais verdadeira, mais conforme ao seu ser, mas num mundo onde a imagem é em presença e em promessa ao mesmo tempo. Presença e promessa, duas palavras que caracterizam o trabalho que opera no visível toda a obra de arte. A singularidade dos Peregrinos de Emaús consiste que este trabalho é o tema mesmo do quadro».15

Estas captações embaçadas como um granel solto à vista são a expressão do Abstracto concreto ou orgânico. Abstrair é olhar atentamente, tornar presente a coisa mesma, no contacto íntimo com ela, no acto mesmo de distanciamento. A realidade da obra de arte aparece assim na relação surreal dos elementos entre si. O abstracto é imemorial (da arte chinesa às cavernas de Lascaux ou à geometria das formas escondidas do barroco…). O figural é abstracção também, incandescência de uma excitação transcendental, que nos atira para uma outra dimensionalidade – o mitológico, o inconsciente, o riso, o sonho, a ambiência, a adoração, que constituem a matéria negra do pensamento excessiva e ociosamente lógico! 

Como o poema a-figural <Deus>, que Bataille escrevera16, como matéria alabastrina (translúcida), que conhecemos quase só por irradiação, deslize de jatos de tinta nívea na escuridão ou na “matéria sombria”. Não será <Deus> a abstração carnal radical, sentimento de presença real de uma ausência figural? Os místicos e artistas apofáticos não vêem Deus, como se estivesse de fronte de um objecto, mas vêem-se reflectidos na ideia sensível <Deus> (endo-teologia), como visão lateral ou oblíqua, latente e tácita, portanto indirecta, no “desejo escaldante da carne” (Bataille). A reversibilidade entre ambos como a verdade última do ser. O Invisível é inseparável do seu visível ou sensível, tal como o visível não pode separar-se do Invisível, mesmo se o que o mantém a sua relação é a diferença ontológica que os relaciona, e faz ser o que cada um é na sua irredutível singularidade.

 Não estarão já os apofáticos (abstractos), de Mestre Eckhart a Kazimir Malevich ou Rothko, dentro da matéria negra ou da sombra (<Deus>), mesmo se não a vêem ainda claramente? Vivemos permanentemente numa correlação de forças, de atrito e de expansão magmática, precisamente, num eterno acto de desvelação no coração do ser do mundo. Permanecemos sempre estranhos a nós mesmos. O nosso corpo é o que nos é mais próximo, mas também o mais estranho, ou distante, quando a mente vagueia pelos afazeres do mundo. Vivemos sempre numa situação de estranheza. Estranheza de si no corpo do espaço social, estético ou ético. É o “desvio” permanente que sentimos como corpo no mundo em relação com os outros. 

A partir de uma ontologia obliqua ou latente, podemos dizer que há uma endo-afectividade originária ou primitiva presente no interior do ser das coisas, que a linguagem artística, em particular a literário-poética, procura expressar ou dizer de modo inaudito, sem nunca o dizer totalmente, não porque não queira, mas porque o acesso ao coração das coisas é parcial, pois é estrutura própria do ser das coisas que o impede. Como escreve Eugénio de Andrade, no seu poema Frente a Frente:

Nada podeis contra o amor.
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.
Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
– e é tão pouco.

Esta endo-afectividade (cor, carícia, luz), simultaneamente invisível e sensível, pela qual o poeta sente a cor, a carícia, a luz no ser das coisas, e não a partir de uma ideia pré-concebida desses sensíveis. O poeta faz da ideia sensível um corpo exemplar, que transforma o próprio ser das coisas, o ser da folhagem, da espuma. Este sensível está já lá, a carne do mundo sensível, o meio material pelo qual acedemos à inteligibilidade invisível do mundo (cor, carícia, luz…). O poeta não vê o ser, ele vê-se no ser, porque já se sente implicado naquilo que interroga, numa endo-ontologia ou endo-afectividade que nasce do fundo do ser das coisas. É este fundo afectivo – este sensível exemplar – que a carne é a expressão radical – que é preciso pensar a afectividade como intercorporeidade que resiste à erosão dos corpos atomizados. 

Aqui percebemos que «o próprio sensível é invisível», e que «todo o visível é invisível, que toda a percepção é impercepção». A matéria está impregnada de invisibilidade (cor, carícia, luz) e de significação que é sempre corpórea (folhagem, espuma…). Como a fotografia de Lindbergh, que, «por detrás da beleza das suas obras, consegue captar a inquietude que caracterizava Giacometti e a sua perpétua busca do real». Corpo desagregado ou anamórfico e olhar que vê e é visto no que vê, em caminho, são, assim, em ambos os artistas, no hiato de tempo que os separa, a porta de acesso à carnalidade do invisível, no mais íntimo da extimidade, o ser mesmo do humano oniricamente imaginado.

Ensaio de João Paulo Costa.

1 – Jean-Luc Marion, Ce que nous voyons et ce qui apparaît, INA Editions, Bry-sur-Marne 2015.
2 – Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, Edições 70, Lisboa 2017, p. 68.
3 – Cf. o artigo de Ibtissem Bouslama, « La blessure de l’art : Genet dans L’atelier d’Alberto Giacometti », in Villiers de l’Isle-Adam. Le théâtre et ses imaginaires 71 (2014), pp. 245-257.
4 – Cf. https://www.fondation-giacometti.fr/fr/evenement/83/alberto-giacometti-peter-lindbergh.
5 Ibidm.
6 – Assírio & Alvim, Lisboa 1998.
7 – Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, Gallimard, Paris 1945, p. 407.
8 – Maurice Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible, Gallimard, Paris 1964, p. 265.
9 – Cf. https://gulbenkian.pt/paris/rui-chafes-alberto-giacometti.
10 – Cf. https://24.sapo.pt/vida/artigos/ver-o-invisivel-de-chafes-e-giacometti-na-gulbenkian-de-paris.
11 – Cf. https://gulbenkian.pt/paris/expositions/expositions-passees/rui-chafes-alberto-giacometti.
12 – Cf. Catherine Grenier, Alberto Giacometti, Éditions Flammarion, Paris 2017: «Profundamente agarrado à representação humana, influenciado pelas artes arcaicas e não ocidentais, ele afasta-se de uma representação naturalística, para adotar uma visão sintética e às vezes alucinatória da figura, carregada de um poder misterioso.»
13 – Henri Maldiney, L’art, l’éclair de l’être, Cerf, Paris 2012, p. 11.
14 – Cf. texto de apresentação do catálogo Capturar o Visível, da exposição das esculturas de Alberto Giacometti e fotografias de Peter Lindbergh, do Museu da Misericórdia do Porto, 2021.
15 – Max Milner, Rembrandt à Emmaüs, José Corti, Paris 2006, o qual cita George Didi-Huberman, « La couleur de chair ou le paradoxe de Tertullien », in Nouvelle Revue de Psychanalyse (Le Champ visuel)35 (1987), p. 24.
16 – «Com mão quente/morro morres/onde está/onde estou/sem rir/estou morto/morto e morto/na noite de tinta/flecha disparada/sobre ele» (George Bataille, «Deus», in A Experiência Interior, Edições 70, Lisboa 2020, p. 229.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.