Ensaio. O sequestro do pós-modernismo na evolução da literatura portuguesa — o caso Tomaz de Figueiredo
Se podes pensar, cita; se podes citar, alumia.
— Breviário das Dicas.
1) Era uma vez o po-mo
O fado parece que me escolheu para desmancha-prazeres do Centenário do nascimento dum dos meus escritores dilectos. Há tempos, tentei explicar porque é que a revolução verbal de José Saramago jamais terá a importância da de Eça de Queiroz. Recentemente, apontei os contornos hagiográficos da biografia de Miguel Real e Filomena Oliveira.
À primeira vista, sou uma péssima escolha para remar contra a forte corrente de Saramago, visto que desde os dezanove ou vinte anos me tenho deixado levar pela corrente da sua obra. Se bem me recordo, a primeira vez que tive intenção de o ler foi algures em 2004, acabara de sair Ensaio sobre a Lucidez. A minha mãe, andava a ler da edição cartonada do Círculo de Leitores, deixou-mo no colo na sala de espera duma clínica enquanto foi atendida. No passado, fechara outros rapidamente após um relance desinteressado. Mas a este achei-lhe piada às primeiras linhas, talvez por causa da coincidência de estar a chover no livro e fora do consultório. Deu-se o clique, juntei-me à claque e Lucidez tornou-se um dos meus favoritos e um dos cinco Saramagos que reli até hoje. Contudo, quando a minha mãe me desembrenhou dele não retomei a leitura em casa; as poucas páginas que sorvera deliciado apenas me prometeram que valeria investigar mais. Por cautela, e porque atravessava a fase pessoana, atirei-me antes a O Ano da Morte de Ricardo Reis, o primeiro Saramago que comprei, o primeiro que li de fio a pavio, outro dos que reli. Num rufo não ficou nada por ler que levasse na capa o seu nome. Em casa, como a minha mãe o adorava, tornou-se figura assídua nas nossas trocas de impressões. Em ocasiões especiais, quando vamos ao restaurante João da Vila Velha, em Mafra, não subimos Cheleiros sem mencionarmos as odisseias de pedras gigantes que rebolavam e esmagavam trabalhadores. Uma das nossas referências privadas é A Caverna: sempre que viajamos de metro entre o Colombo, o El Corte Inglés e os Armazéns Chiado, passando horas debaixo do chão e dentro de lojas, sem sair à rua ou ver o Sol, um tem o hábito de dizer ao outro, É como se vivêssemos no Centro.
Todavia, à minha simpatia pela obra de Saramago acrescento curiosidade por história literária. Infelizmente, a biografia do sr. Miguel Real mostrou que Saramago está a ser usado para fazer má história literária. Em sinopse, Real revela aos leitores um pioneiro, em Portugal pelo menos, em várias campos: foi o primeiro a inventar o romance histórico metaficcional, a narrar com técnicas metaficcionais, a adoptar exuberância neobarroca e a violar criativamente a pontuação que aprendemos na escola, “aproximando-a, em flexibilidade, da sintaxe barroca, e, igualmente, na transformação das regras de sinalização da escrita, prestando à vírgula um lugar sintáctico soberano, fazem de Saramago o mais pós-moderno dos escritores portugueses.” (1)
Ao abrigo da louvável intenção de evitar uma “biografia recheada de pretensos escândalos e bisbilhotices, fruto de pequeninas intrigas políticas e de imensa coscuvilhice”, pôs-lhe a obra num patamar de intocabilidade, a qual “ninguém ousa pôr em causa”, atitude risivelmente servil lembrando o não menos embaraçoso Eduardo Prado Coelho, que nas canelas do Prémio Nobel terá dito: “Agora, sempre quero ver se alguém se atreve a criticar Saramago!” Mas se cientistas testam evidências diariamente em áreas de saber cujos critérios de validação são muito exigentes, não é na Literatura que deixaremos de pôr em causa o que, por mais aparato usado para o escamotear, não passa de opiniões de gosto. Eu ponho em causa, sim, o estatuto pioneiro da obra de José Saramago.
Há formas mais rigorosas de estudar a literatura do que outras. O inocente e tão aplaudível “interessou-nos apenas o quid literário do autor” de Real suaviza a total ausência de outros e de história literária. Neste relato, ninguém escreveu ficção em Portugal antes de Saramago, ou ficção que valesse a pena ler, ou ficção que tenha subvertido as convenções do romance realista/oitocentista, ou ficção imerecidamente esquecida; tampouco se sonda a possibilidade de que muitas das inovações atribuídas a Saramago fossem moeda corrente em Portugal há décadas. Estabelecer se X é melhor do que Y redundará sempre em preferência pessoal; por mais científicos que os críticos se auto-iludam, juízos de valor são ramos da arte retórica e visam persuadir; só ingénuos é que pensam o contrário; os realistas sabem que a crítica é sempre impressionista. No entanto, podemos demonstrar se autor X andava a fazer primeiro as coisas por que Y é celebrado. Não serei eu, porém, quem afirmará que primeiro equivale a melhor. Agrada-me pensar que vivo livre da idolatria dos “grandes escritores”: há reputações históricas e mundiais que me causam asco, incompreensão e aborrecimento; há menosprezados que estimo infinitamente. Admitindo até certo vezo elitista, atraem-me os desconhecidos isentos da aprovação da multidão. Primeiro não é um critério estético, uma técnica já usada pode ser usada melhor por um autor talentoso.
Em antanhos talvez mais sãos, a originalidade nas Belas Letras foi um defeito: durante milénios, o escritor emulou os modelos do passado a quem o tempo conferira o título de melhores. Para a moderna mentalidade, é mirabolante que um dos tópicos mais apaixonantes do Setecentos tenha sido se Camões imitou correctamente ou não as regras do género épico. Mas com o Romantismo a doença da originalidade alojou-se em nós e desde então acreditamos, com prejuízo para o imitatio e o emulatio, no mito do génio singular torturado, em ruptura com a tradição, rejeitando os modelos, retorcendo-se na agreste senda da subjectividade para despejar a originalidade em novos moldes ditados pela alma. Porque somos românticos ainda, por mais que pensemos o contrário, os nossos heróis literários vamos buscá-los às vanguardas. Passamos biografias a pente fino por um pentelho de pioneirismo. Um dos previsíveis passos na deificação de Y é demonstrar que foi o primeiro a fazer tal e tal. Se isto parece uma crítica, esclareço já que me pélo por jogar aos pioneiros.
O meu po-mo da discórdia (pois trata-se do pós-modernismo) não é o sr. Real proceder assim ao longo de 698 páginas, convicto de que revelando o pioneirismo de Saramago lhe aumenta o prestígio. É o faltar-lhe a bagagem para fazer o necessário cotejo com a história do estilo, do gosto e das ideias, baseando por isso tal estatuto pioneiro e inovador em névoa. Embora vibre em mim um formalista para quem a ficção é um feixe de frases e a quem importa somente que as frases sejam sucessivamente cantantes e encantatórias de capa a capa, duela-o constantemente um historiador amador que adora montar o puzzle da história literária e que está um tanto chocado com a inépcia das 7 Vidas.
Como o tópico hoje é história, aturem-me um necessário esboço da história, aliás curta, da invenção crítica do pós-modernismo português. Desde que a partir dos anos 60 se começou a falar mundialmente em ficção “pós-modernista”, tem-se tentado definir o que é e circunscrever o seu momento genesíaco. Mas além de ninguém saber exactamente o que é, a falta de concordância deriva das diferentes condições de país para país: houve vários pós-modernismos arrancando a velocidades diferentes. Para os franceses, começa com a Náusea (1938) de Sartre, ou então Samuel Beckett; para os argentinos, com o Ficções (1944) de Borges. Críticos norte-americanos remontam aos romances de pós-guerra de John Hawkes, embora já haja elementos no Locos (1936) de Felipe Alfau Na Irlanda, tanto pode ser Finnegans Wake (1939) ou, retroactivamente, The Third Policeman, de Flann O’Brien, escrito em 1940 mas inédito até 1967. Por mim, todas as características do pós-modernismo já estão patentes e com elevado nível de sofisticação no Desespero (1936) de Vladimir Nabokov. Às vezes, parece haver despique entre nações pela primazia, uma busca competitiva pelo mais antigo locus primus, recuando cada vez mais, como se fosse elogioso se o po-mo começasse no seio de dada nação, redundando no risco ironizado por Umberto Eco de que “daqui a pouco a categoria do pós-moderno chegará a Homero.” (2)
A intelligentsia portuguesa, abençoada tribo cravada de inseguranças, baixa auto-estima e complexos de inferioridade, tem agido às arrecuas. Incapaz de conceber que alguém no seu meio possa ter chegado a técnicas pós-modernistas independentemente, sem tocar por partitura estrangeira diante dos olhos, empurra continuamente para mais tarde as primeiras manifestações em Portugal. Por cá, a crítica começou a inteirar-se duma “nova literatura” num ensaio de Eduardo Lourenço, “Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos” (1966), no qual afirmou sem a menor prova ou argumentação que houve uma ruptura entre a geração de escritores nascida nos anos 1920 (por acaso a geração do sortudo ensaísta) em relação às anteriores: outra mentalidade perante a existência, outra atitude acerca da sexualidade, outro modo de usar a linguagem. Indiferente aos percursos pessoais de cada “filho”, de chofre converteu-os em descentes directos ou simbólicos dum heterónimo de Fernando Pessoa, sem cuidar se o teriam sequer lido, pois descontando os poemas a maior parte da prosa de Campos jazeu inédita até à edição de Jeónimo Pizarro e Antonio Cardiello (2012) e a pouca édita abolorecia dentro de revistas efémeras de 30, 40 anos atrás entretanto tornadas raros e caros objectos de coleccionador. Teria sido quiçá a primeira vez na história que uma revolução da ficção em prosa se deveria à leitura dum par de poemas. Mais irracional e aleatoriamente, Lourenço subiu a corrente até ao de 1953 e parou no romance A Sibila julgando que achara a fonte. É uma data manhosa, A Sibila só saiu em 1954, um ano antes era um manuscrito inédito nomeado para o Prémio Delfim Guimarães, mas Lourenço cultuava Agustina Bessa-Luís tanto quanto cultuava Pessoa e queria à força e sem provas despejá-la no cabouco da Nova Literatura. Exonerando A Sibila para 1953, deixou mais impreciso o titular ao primeiro lugar, visto que se trata de uma admirável imitação do romance realista oitocentista, sem nada de transgressor na história do romance português, ao contrário do Caranguejo de Ruben A, vanguardista ao nível da voz do narrador, da desordem cronológica do relato, da pluralidade de registos, da pontuação.
Apesar do sacrossanto estatuto que o ensaio de Lourenço adquiriu na Universidade após 1974, a escolha de A Sibila como pórtico duma era nova não gerou muito consenso nas décadas seguintes, mas instigou futuros investigadores a usar esta bússola atrás das origens do po-mo português. Passados poucos meses, Nelson de Matos respondeu com “Eduardo Lourenço e a nova literatura: ou os netos de Álvaro de Campos”. Antes de ter iniciado uma merecidamente festejada carreira de editor, Matos estava a tornar-se conhecido como mais uma das inúmeras esperanças das letras lusas híper-apregoadas na década de 60 que não deram nada nem em nada, mas que nadavam nos suplementos literários como se fossem salvar banhistas. Hesitante leitor, se nunca leste Noite Recuperada e Giestas da Memória (proveitosa actividade se entrares no livro à cata dos decalques de Alegria Breve), não sintas remorso. Mas antes de ter ficado pelo caminho, Matos foi esmagado por hiperbólicos elogios porque reunia as duas principais virtudes para o consideraram um precoce prodígio e futuro nome incontornável: rondava os vinte anos e troçava abertamente do neo-realismo. Incitado a acreditar na própria grandeza, Matos espalhou a munificência engrandecendo a demais geração de 1940, os “netos de Álvaro de Campos”, tentação intoxicante para um puto acabado de chegar a Lisboa duma Tavira rural. O pórtico, aventou, ficava mais bonito fazendo fachada com o romancilho Rumor Branco (1963). Começou, pois, a moda do empurrão para a frente. Ao princípio, todavia, não houve discórdia com Lourenço quanto a 1953, apenas com o nome do pioneiro; dúctil como plasticina, o ano podia ser puxado na direcção do dilecto de cada qual. Liberto Cruz, a jogar pelo F. C. Ruben A., sugeriu que o campeonato começara nas Páginas I (1949), ainda antes de Caranguejo (3). A camarilha de José Cardoso Pires tentou-lhe obter o título à pala de dois títulos: Os Caminheiros (1949) ou Histórias de Amor (1952, só derrapou por um mísero ano) (4). Carlos Reis, apóstolo e xará de Carlos de Oliveira, entrou na arena com outro de 1953, Uma Abelha na Chuva, notoriamente mais tecnicamente pré-histórico ainda do que a cro-magnum opus de Agustina. (5)
Os críticos posteriores não duvidavam do esquema geral de Lourenço, que lhes serviu de protótipo, simples e humildemente recentraram-no noutro genitor, dentro dos parâmetros pré-estabelecidos: o ponto de ruptura tinha que provir dum candidato bafejado pelas seguintes virtudes: 1) ser mencionados por Lourenço na rol dos inovadores da geração nascida a partir de 1920 (Ruben nasceu em 1919, mas Lourenço perdoou-lhe o faux pas e nós também) e 2) ter-se estreado ou quase no ou nas cercanias do mágico ano de 1953.
Esta exclusividade causou problemas a um peso-pesado da literatura da época com justas pretensões ao título: ainda que arrolado no ensaio, Vergílio Ferreira além de ter nascido em 1916, não possuía nenhuma obra com as condições adequadas à beira de 1953: Mudança (1949) ainda trescalava demasiado a neo-realismo e A Face Sangrenta (1953) até contém contos neo-realistas, para mais publicados na revista do adversário de Lourenço, vade retro Vértice! Aparição saiu só em 1959. O acólito Luís Mourão, tadinho, não escondeu o amuo e mágoa que Lourenço lhe causou por antepor A Sibila ao Aparição (6). Todavia, sem se deixarem desmoralizar, os vergilistas torneiam o problema apostando na nebulosidade das palavras: se escreveram vaguezas como “nos anos 50, a literatura portuguesa sofreu mudanças radicais, etc., mormente graças a autores como Agustina Bessa-Luís e Vergílio Ferreira que etc.”, dá para escamotearam o fosso de anos entre os dois; de repente estavam a fazer mudanças ao mesmo tempo, lado a lado, emparelhados, sincronizados como bailarinas aquáticas.
No entanto, estas alternativas foram caindo pelo caminho como postes num tornado à medida que a vontade de Lourenço prevaleceu e a Universidade o impôs e consolidou como o maior pensador/filósofo/ensaísta literário. “Eduardo Lourenço, como sempre, tem razão”, respinga repulsivamente o sr. Real (7).
Depois da resposta de Nelson de Matos, que fez histeria sem fazer história, o ano mágico só voltou a progredir penso que em 2002. A audácia coube a Ana Paula Arnaut, cujo Post-Modernismo no Romance Português Contemporâneo – Fios de Ariadne – Máscaras de Proteu historiou o pós-modernismo português pela primeira vez. Arnaut trocou Agustina por Cardoso Pires, outro consagrado na lista de Lourenço. Lembra-te do parâmetro: procurar as origens antes de 1953 está proibido. Aos primeiros livros de Cardoso Pires, inçados de proibições neo-realistas sem qualquer inovação técnica ou temática, Arnaut fechou-os num lazareto. A missão passava por provar que O Delfim, publicado dois anos depois do ensaio de Lourenço, afinal fundou o po-mo português. Banzado leitor, se tiveres em conta que há quem postule a sua nascença mundial nos anos 30, um adiamento para 1968, dois terços do século já completos quando se entra enfim na modernidade literária, não abona muito a favor da criatividade dos portugueses. Se esta tardeza é de si bizarra, Arnaut ainda por cima afirmou que “os novos rumos ficcionais” abertos por O Delfim são “norteados pelos ventos que, por terras norte-americanas, se faziam já sentir desde o final da Segunda Grande Guerra” (8), sugerindo que o fenómeno do po-mo em Portugal se devia à exposição e imitação de autores norte-americanos. Penso que já li tudo no âmbito da não-ficção saída do punho de Cardoso Pires, não é particularmente difícil, basta haver lazer e vontade para ir clicando até ao fim do dossier online coligido pela Hemeroteca Digital, e o que me ressaltou das notas foi que ignorou quase por inteiro a ficção norte-americana do pós-guerra. Tendo-se formado nos círculos neo-realistas dos anos 40, nunca se actualizou além do culto por realistas como Runyon, Saroyan, Steinbeck, Caldwell, Faulkner às vezes (mas pelo anti-racismo, não pelas técnicas, que desgostava), Norman Mailer e pouco mais. Esta lista dificilmente teria ajudado Pires a descobrir o pós-modernismo tendo em conta a documentada animosidade dos primeiros pós-modernistas americanos por eles. Em 2005, William H. Gass ainda gozava com os franceses (através dos quais os neos descobriram a literatura americana) por terem sobrevalorizado Caldwell e Steinbeck. Basta uma olhadela às traduções no pós-guerra para se perceber que Portugal desinvestiu por completo da divulgação de Gaddis, Gass, Barth, Elkin, Vonnegut, Pynchon, Hawkes, Coover, nomes que sessenta anos depois ainda dirão sobretudo nada ao actual utente luso da Amazon, como nada disseram a Pires.
Arnaut simplesmente não contempla a possibilidade de que Pires possa ter chegado às técnicas de O Delfim por conta própria, ou até através de modelos nacionais perto de si. Contudo, os tiques de inferioridade pioraram. Em 2012, Marcelo G. Oliveira contestou-a inventando o período intermédio “Modernismo Tardio”, o qual “apontaria para a continuação de impulsos modernistas pelo menos até à década de setenta do século XX”, categoria que tem tentado vender à Universidade (9) e no qual enfiou Pires, deixando caminho livre a outro que se quisesse fazer ao título de primeiro pós-modernista português. Basicamente, é essa a ideia do livro dele, Modernismo Tardio: Os romances de José Cardoso Pires, Fernanda Botelho e Augusto Abelaira. Mas Oliveira não se teria dado ao estrafego de tirar a taça ao antigo campeão através duma tecnicalidade se não tivesse debaixo do olho outro merecedor do pódio. “Afirmaria que é com Levantado do Chão que o pós-modernismo encontra, de facto, uma das suas primeiras manifestações no romance português.” E mais: “Salientaria, porém, que apenas com o refluxo das tendências futurantes inerentes tanto aos movimentos de contracultura dos anos 1960 e 1970 como à própria revolução surgirão as condições necessárias para o verdadeiro despontar de uma estética pós-moderna.”
Que tolice anacrónica: as técnicas que constituem a caracterização pós-modernista remontam aos anos 30 e 40, pelo menos, muito anteriores à contracultura e sequer à Revolução dos Cravos, tão inútil à feitura de ficção que nos seis anos seguintes o abrandamento da produção literária até suscitou pânico. Tem piada que hoje em dia a Revolução seja vista como propulsora da criatividade (inegavelmente no tocante à liberdade e tratamento de temas), quando na época era culpada por a ter embotado em prol de prioridades políticas. “Para mim, tudo isso é natural,” disse Jorge de Sena. “Depois, as pessoas que escrevem estão empenhadas noutras tarefas de carácter políticas. Outras, menos absorvidas por essas tarefas, sentem as consequências profundas da revolução”(10). Até Gabriel García Márquez pernoitou em Lisboa para assegurar aos nativos que esta secura era normal: “Todo o bom romance é subversivo e exprime o inconformismo profundo do autor, os seus conflitos de desadaptação à sociedade e, portanto, não é nos momentos de subida de um processo revolucionário que se podem esperar os grandes romances” (11). Por acréscimo, acreditavam que o escritor português tinha de reaprender a escrever em Democracia. “Mas eu penso também que, inevitavelmente, durante bastante tempo ainda as pessoas tenderão a não escrever com clareza,” disse Sena, “visto que durante décadas nós desenvolvemos todos uma técnica de escrever nas entrelinhas e agora temos que habituarmo-nos todos a escrever nas ‘linhas’ (12).” Mas o problema com esta teoria é que durante o Estado Novo outros julgam já que tinham atingido uma forma clara de expressão. “Há hoje em Portugal um escol de romancistas notáveis”, dizia Luís Francisco Rebelo a meio da década de 1950, “que procura depurar a língua desses refolhos antiquados e fazer dela um instrumento directo de expressão (13).” Ademais, a explicação de Sena poderia referir-se à incapacidade de fazerem imediatamente livros com uma linguagem mais livre, mas nesse caso teriam continuado a sair livros na linguagem habitual. O que aconteceu foi a paralisia por seis anos.
Além disso, o po-mo não é especificamente “futurante”, isto é, assente na mensagem da vinda dum futuro melhor, mais justo, mais humano. Esse tique é na verdade próprio do neo-realismo. Traços de po-mo encontram-se na Europa, Estados Unidos, Ásia, África, América Latina, em democracias e ditaduras, em países ricos e pobres, em cosmopolitas e provincianos, em jovens e velhos, populistas e elitistas, activistas e apolíticos. Uma mera troca de regime não substitui o espírito do autor, capaz de ultrapassar circunstâncias, costumes, coerções dos apologistas do “bom gosto” e do “bem feito”. Mas continua Oliveira: “Por outras palavras, a consideração de um pós-modernismo literário em Portugal pressupõe necessariamente a emergência de uma configuração temporal distinta daquela que a precedeu, ou seja, da subjacente ao modernismo tardio (14)”. Graças ao esclarecedor necessariamente, Oliveira revela que quer fazer do pós-modernismo português outra conquista da democracia. Ao jeito de Arnaut, quer produzir uma definição de pós-modernismo integralmente ética e ainda submissa à antiga concepção de literatura comprometida, o teor “futurante” afinal seria tão-só “os amanhãs que cantam” do velho e esgotado neo-realismo que continua a baralhar os parâmetros de como a ficção deve ser pensada em Portugal. Superando Arnaut na subserviência ao fantasmático neo-realismo, Oliveira vai ao ponto de negar até ao neo-realista Cardoso Pires o título, só porque O Delfim é contemporâneo do Estado Novo, e a amputação do passado pecaminoso tem que ser total e brutal.
De 1953 para 1963 para 1968 para 1980: um dia destes descobriremos que afinal o po-mo só chegou a estas bandas por obra de Valter Hugo Mãe ou Afonso Reis Cabral ou Carla Pais ou Gonçalo M. Tavares. Quem sabe, o pós-modernismo português ainda está sequer por vir.
A meu ver, o erro de Oliveira reside numa confusão semântica. Quando eu me refiro a “literatura pós-modernista”, refiro-me exactamente a isso, a literatura. É-me indiferente a política do autor e rejeito qualquer inter-relação entre democracia, boas intenções, progressismo social e inovação técnica. A matilha de monstros que o Modernismo amontou já nos devia ter curado da falácia ética: Ezra Pound foi um mussolinista tresloucado que declamava virulentos discursos anti-semitas na rádio italiana; TS Eliot foi outro anti-semita virado para a Igreja Católica e cuja revista The Criterion divulgou os escritos de protofascistas como Charles Maurras e Georges Sorel; o futurista Marinetti aplaudiu o fascismo italiano; Fernando Pessoa desprezava a Democracia e apregoava o “nacionalismo místico”; Céline, anti-semita e nazi. Ninguém fez caso do conservadorismo de Borges (que tanto incomodou Alexandre O’Neill) (15) quando o associaram ao pós-modernismo. Em Espanha, ninguém nega o título de pós-modernista a Gonzalo Torrente Ballester por causa duma breve simpatia pela Falange Franquista. Em Itália, ninguém recusa o título a Carlo Emilio Gadda só porque o fascismo lhe pareceu boa ideia ao princípio. Também nunca reparei que o silêncio de João Guimarães Rosa durante a ditadura brasileira (é claro que não se demitiu em protesto do seu confortável cargo no Ministério dos Negócios Estrangeiros) impeça a Universidade de o considerar um expoente pós-modernista. A técnica, o estilo, a estrutura, a revolta contra os moldes oitocentistas/realistas foi o que quase exclusivamente importou aos primeiros analistas do pós-modernismo, Northrop Frye, Robert Scholes, Robert Alter, Giorgio Manganelli, Linda Hutcheon, quando entre os anos 50 e 80 estavam tentando perceber o que raio se passava com a ficção desde o pós-guerra. O cadastro idóneo parece-me uma especialidade lusitana, herança da escondida mas nunca suficientemente exorcizada assombração do neo-realismo.
Por sua vez, o sr. Oliveira está-se a marimbar para literatura. Quando ele pensa em “pós-modernismo”, pensa na verdade num período histórico: o “Pós-Moderno” por analogia com a Antiguidade, Idade Medieval, o Renascimento, o Iluminismo, uma época coerente com mentalidade ou etos próprios. Esta confusão advém do facto de os universitários, em vez de lerem literatura e ensaios de ficcionistas, lerem pensadores como Jean-François Lyotard, cuja Condição Pós-Moderna é a cábula a que recorrem quando precisam de aprender numa directa antes do exame “o que é o Pós-moderno”. Só que o ensaio do sr. Lyotard não tem nada que ver com o po-mo literário.
Não é difícil perceber que, se o triunfo das democracias é um aspecto do mundo moderno, por associação de ideias o pós-moderno tem que coincidir com o pós-1974. “Em Portugal, a Revolução de Abril de 1974, que pôs fim a quase cinquenta anos de regime ditatorial, abriu o caminho para uma nova fase na história do país, marcada pelo fim do Império, pela vivência em democracia e pela posterior integração no espaço económico europeu, factores que, naturalmente, não deixaram de afectar as condições e o teor da produção artística nacional.” Em vez de ser um conjunto de técnicas outrora em desuso e que voltaram a estar na moda no pós-guerra, torna-se uma mentalidade coincidente com e emergente apenas após a Democracia. Tão traumatizados deixou o Estado Novo os historiadores portugueses que, em vez de averiguarem, sob risco de sacrilégio, se o po-mo talvez floresceu durante a Ditadura, avançam rumo ao futuro, deixando para trás um pedaço de terreno temporal cada vez mais alongado que se vai tornando num deserto onde nunca nada nasceu e que por isso não merece atenção e estudo. Se ao menos reconhecessem que sob as dunas há tesouros à espera de descobrir, mas não, é um deserto liso, de terra dura, em que não enfiam picareta, nem ossadas à superfície se vêem à volta. O oásis está sempre uns palmos à tua frente, mas por mais que corras em direcção a ele nunca o alcanças, como no feitiço do conto de fadas.
Miguel Real foi buscar a Arnaut a autoridade para proclamar que Saramago contribuiu para a consolidação do po-mo (16), uma afirmação incontroversa desde que ressalvemos que o arranque do processo o antecedeu. Como Oliveira, insiste na importância da componente ética da obra de Saramago; mas diverge ao afirmar que isso vai a contrapelo do pós-modernismo: “Há uma evidente mensagem ética (não moral, repetimos) nos romances de Saramago, e isso, em termos de moda pós-modernista, torna-o um autor estranho às Letras actuais” (17). Como não desperdiça tempo a educar os meros mortais sobre o seu cânone pós-modernista, direi apenas que o meu está cheio de preocupações éticas. William H. Gass, que inventou a palavra “metaficção”, publicou The Tunnel (1995) para condenar a Humanidade pelo Holocausto e para mostrar que todos nós, por melhores que nos julguemos, carregamos o fascismo no coração, premissa que os Americanos passaram a perceber melhor nas últimas presidenciais. Arco-Íris da Gravidade (1973), de Thomas Pynchon, mostra-nos os terrores futuros do complexo militar-industrial que subjuga os indivíduos à sede do poder e do lucro indiferentes à violação do planeta. O Outono do Patriarca (1973), de Gabriel García Márquez, relata os crimes dum ditador latino-americano. Terra Nostra (1975), de Carlos Fuentes, relata o contacto cataclísmico entre europeus e ameríndios. A Harpa e a Sombra (1979), de Alejo Carpentier, pergunta se Cristóvão Colombo merece ser canonizado como santo apesar do genocídio ameríndio possibilitado pelas Descobertas. The Public Burning (1977), de Robert Coover, é uma hilariante sátira ao estrago causado à psique americana colectiva pela paranóia da guerra fria, parcialmente narrada por Richard Nixon e tendo como pano de fundo a execução dos alegados espiões Julius e Ethel Rosenberg. O pós-modernismo é intensamente ético, moralista até. Isto não contradiz o que disse antes: não tenho nada contra a literatura assumir uma posição ética, desde que ponha à frente estilo, estrutura, imaginação, sem os quais a ética não passa dum banal slogan ouvido mil vezes.
Se o po-mo português é uma questão de claques, não vale a pena esconder que também tenho um preferido. A minha premissa é esta: o pós-modernismo começou em pleno Estado Novo; provavelmente aí por volta de 1941; e para o tornar ainda mais ofensivo, o autor era monárquico, miguelista ainda por cima; simpatizava com o Integralismo Lusitano, inicialmente jubilou com o 28 de Maio, apoiou o Nacional-Sindicalismo do fascizante Rolão Preto; e se detestava Salazar nem por isso morria de amores pela democracia, embora amasse a liberdade de espírito. Nasceu em 1902, morreu em 1970, chamava-se Tomaz de Figueiredo e entre 1947 e 1962 concretizou todas as inovações imputadas a Saramago a partir de 1980.
Este empreendimento titânico requer lentidão e método. Começarei com o aspecto formal mais destacado em Saramago: a pontuação. Uma das revoluções, diz-nos Real, foi que ele “escreve como os camponeses falam, desprezando as indicações da gramática, da arte tradicional de bem escrever um romance.” Mas foi o primeiro a fazê-lo?
3) A pontuação normal de José Saramago
Quando Levantado do Chão surgiu nos escaparates, vinte anos contínuos de experimentação com pontuações heterodoxas haviam já inoculado o leitor. Tão saturada estava a sociedade (em ambos os sentidos) destas bizarrias, e tão consumível se tornara para o leitor médio, que em 20 de Dezembro de 1969 o suplemento humorístico “A Mosca”, do Diário de Lisboa, introduziu a rubrica da “Guidinha”, uma criança que barafusta ao longo dum texto sem pontuação. Da autoria de Luís de Sttau Monteiro, quem hoje em dia ler estes textos reparará de imediato na semelhança com o estilo de Saramago: a longa frase sem pontuação (nem vírgulas usa), torrente inesgotável de orações coordenadas e subordinadas. O Lisboa era um jornal generalista, sem pensar em leitores especialistas. O leigo riu-se, a Guidinha continuou a assinar crónicas para lá do 25 de Abril. Tão popular e duradoura rubrica é um indício de que devemos ficar de pé atrás quando Real clama que Levantado do Chão “provoca o espanto dos leitores – não pelo tema, suspeito, inconveniente (a necessidade de uma reforma agrária), mas pelo tom, pelo estilo, pelas audácias morfológicas e sintácticas. Limitara-se a escrever como o povo falava.” Mas porque é que sentiriam espanto se estavam acostumados a tais liberdades numa crónica humorística e despretensiosa? Nas primeiras resenhas a Levantado do Chão, críticos e especialistas não se mostraram nada espantados com coisa nenhuma: receberem com a felicidade da facilidade as supostas audácias porque uma vintena de precursores os prepara; para encontrarem exemplos anteriores de ruptura com a pontuação que aprenderam na escola, bastava-lhes recuar um pouco para se lembrarem de terem recenseado Novas Cartas Portuguesas, Litoral do Espanto, Comente o seguinte texto:, Depois de Pregos na Relva, até Memória de Elefante e Os Cus de Judas. Almeida Faria abandonou as regras em Rumor Branco (1963) e A Paixão (1965). O seu mentor, Vergílio Ferreira, fazia-o desde 1959.
O “desregramento” (como se dizia na época) das convenções ganhou ímpeto nos anos 60 devido à divulgação do nouveau roman francês, cujos expoentes Claude Simon e Nathalie Sarraute empregavam o estilo caudaloso saramaguiano, enchendo várias páginas seguidas com frases longuíssimas. Dois adeptos portugueses, Artur Portela Filho e Alfredo Margarido, festejaram no livro-ensaio O Novo Romance (1963) aquilo a que Portela chamou “pontuação psicológica”. Ao longo da década, as traduções de O Vento de Simon, do Graus de Michel Butor, do Planetarium de Sarraute, envoltos em prestígio e prémios estrangeiros, enfeitiçaram vários imitadores que começaram a contestar agressivamente as regras do “bem escrito”, gerando muita controvérsia e fracassando em obter a aceitação inicial do público, mas preparando o terreno psíquico donde brotariam vinte anos depois não só Saramago mas o leitor capaz de se render a Saramago de imediato.
Para tal contribuiu também a popularidade dos latino-americanos, que, ao contrário dos nouveaux romanciers, orgulhosamente hostis ao mercado, misturavam estas técnicas com um populista prazer de relatar estórias empolgantes. Comente o seguinte texto: (1972), de Eduarda Dionísio, é uma desumorada, insuportável crónica da Guidinha que nunca mais se cansa de nunca mais acabar. Daí que a famosa pontuação de Saramago afinal não tenha perturbando vivalma, não depois de vinte anos dela. Na verdade, o que ele fez foi trazer legibilidade à experimentação, que até então estava conotada com ofuscação gratuita – podemos mesmo falar numa renormalização. Foi por isso que Dionísio, com o seu quê de dor de cotovelo, desabafou com razão em 2002: “Acho esquisito que se considere uma grande novidade a escrita de Saramago por não ter pontos e vírgulas nos sítios normais, por os seus parágrafos terem várias páginas. Nos anos 60, não sei quantos escritores fizeram isso. Ele pode fazê-lo à vontade, só acho estranho que os críticos literários apresentem isso como uma novidade e até como razão do prémio Nobel.” Neste choque de visões sobre a relação entre texto e leitor, ela adoptou a pose feroz dos franceses, que fracassou; por sua vez, Saramago aprendeu a lição de compromisso entre experimentar e empolgar que Carpentier, García Márquez e Guillermo Cabrera Infante vinham disseminando em competição aberta com os franceses e que os alçou ao estrelato.
Contudo, esta história fica incompleta sem o primordial desarrumador da pontuação ortodoxa. Tomaz de Figueiredo andava a seguir as próprias regras desde 1941, data dos rascunhos dum incompleto romance intitulado Fim. Em 1947, surgiu finalmente o seu primeiro romance, A Toca do Lobo.
Aceitando a convenção de que o primeiro romance português foi publicado em 1843, refiro-me ao Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano, desconheço nos cem anos seguintes outro romancista português, seja Garrett, Camilo, Eça, Raul Brandão, Ferreira de Castro, Aquilino, José Rodrigues Miguéis, José Régio, João Gaspar Simões, Miguel Torga, Manuel da Fonseca ou Alves Redol, que tenha ofendido a sacrossanta pontuação. Tal não se fazia, pensavam, mas Tomaz pensava diferente.
Tomaz, um lírico nato cujos protagonistas se abandonam em efusões emotivas, precisava dum método que mostrasse mais directa e imediatamente a memória do protagonista, doutro tipo de mancha gráfica que fosse uma visualização mais aproximada do fluxo de lembranças. Fechado na mansão paterna, Diogo Coutinho divaga interminavelmente, reencenando recordações. Para indicar que tudo se passa no plano subjectivo, não serviria o velho travessão (-), o qual delimita a narração do diálogo, como se fossem acções separadas. Para Tomaz, da perspectiva dum memorioso tudo é um só texto, tudo é memória, até o diálogo dos outros é tão-só a memória rediviva de Diogo. Isso obrigou-o a procurar um processo digamos mais líquido de fundir o dialogado e o narrado. Eis alguns exemplos do resultado:
“Que decidida e determinante era a tia Francisca! No dia seguinte, porém, mal a criada trazia o candeeiro (Louvado seja o Nosso Senhor Jesus Cristo!), logo todos se punham a olhar uns para os outros, inquietos, como se lhes faltasse alguma coisa. (Bem, meninas, afinal sempre querem jogar?!) E a própria tia Francisca abria a mesa, ia buscar os baralhos, trazia o cinzeiro para o irmão. Era desafiadora e cortante. Baixava algum contrário jogo firme, no final de seis ou sete vasas? (Agora é tudo meu!) Logo ela escarnecia da filáucia, pois já embarcara os tentos que tinha. (Cerca-lhe a gordura!) (18)”
“Abria o primo a boca, dizia o que tinha a dizer, e levava logo para tabaco! Bem o primo pretendia chamar ao seu campo o primo Luís (Tu não achas, não te parece que sou eu quem tem razão?), mas o pai dele, Diogo, abandonava-o à sua triste sorte, achava que não tinha ponta de razão, e, a sorrir, passava-o à irmã para que o carpeasse bem carpeado. (Entende-te com a Francisca, que com ela fia mais fino que nos tribunais! Anda, responde-lhe!)”
“Muitos anos depois, e por acaso, é que lhe tinham contado isso da jarrinha de flores (Reza-lhe um Padre-Nosso por alma!), acontecido ainda antes dele nascer. (19)”
Até Caranguejo, ninguém fez nada de novo com a pontuação. O próximo inovador voltou a ser Tomaz. A Toca do Lobo ainda usa o travessão, mas reserva-o para cenas no tempo presente, quando Diogo interage com os vivos, a criada Ermelinda ou gente do povoado em redor da mansão. Mas a sequela, Uma Noite na Toca do Lobo (1952), restringe a perspectiva de Diogo ao passado, eliminando qualquer interacção com outras personagens que não os fantasmas da memória; assim, é possivelmente o primeiro romance português a não usar o travessão para assinalar o diálogo. No ano seguinte, Caranguejo começou a explorar a possibilidade de alongar frases através de vírgulas, numa antevisão da torrente saramaguiana. Finalmente veio Rumor Branco e verdadeiramente arrancou a era do desregramento.
Entre Tomaz e Faria, jovens ficcionistas descobriram o nouveau roman através dum aparato crítico. Dois anos depois de publicado, o ensaio A Era da Suspeita (1956) de Sarraute era já citado por Vergílio em Do Mundo Original (1958). Vergílio tornar-se-ia uma espécie de mentor dos jovens vanguardistas e desunhou-se a disseminar os nouveaux romanciers, dos quais nem gostava, para minar o neo-realismo. Graças ao seu apostolado, os novos sentiram-se enfim legitimados a subverter a gramática. Na prática, os resultados assemelhavam-se aos de Tomaz, com Sarraute visionando uma prosa mais límpida descartada da ganga inútil:
“Mas mais molestas ainda e mais dificilmente defensáveis que as alíneas, os travessões, os dois pontos e as aspas, são os monótonos e desajeitados: disse Joana, respondeu Paulo, que mancham habitualmente o diálogo; tornam-se para os romancistas actuais cada vez mais o que eram para os pintores, exactamente antes do cubismo, as regras da perspectiva: não já uma necessidade, mas uma embaraçosa convenção (21).”
Dois pontos, aspas, travessões – basta reler os supracitados trechos de A Toca do Lobo para repararmos que Tomaz estava a implementar esta contenção sinalética quase uma década antes do ensaio dela. Igualmente, o ritmo desta pontuação, mais fluido, envolvente e directo, desfaz-se dos excrescentes “disse ela” e “respondeu ele”, outra marca do vindouro estilo saramaguiano. Mas Tomaz não o fez para entrar na espúria posteridade como o primeiro a escrever um romance sem diálogo convencional ou a mexer na pontuação; nasceu-lhe organicamente da necessidade de outro processo para realizar uma visão artística pessoal. Numa carta a Carminé Nobre, desta técnica disse, “suponho-a nova, e, tão pessoal, que nem eu próprio poderei repeti-la. Os diálogos são dados em memória, daí escrevê-los entre parênteses e em itálico: reminiscências pensadas no presente.” E: “É presumivelmente um romance poético, sem que deixe de ter intenção bem actual e bem viva: sangrenta! (22)” A intenção era esboroar a barreira entre o leitor e o texto, aproximá-lo da emoção sentida por Diogo, tornar mais palpáveis as suas experiências.
Apesar de os leitores de Levantado do Chão não se terem espantado com o estilo por já não ser novidade, A Toca do Lobo foi tão inesperado para a época que um crítico, Victor Falcão, de facto registou esse espanto: “Tem-se inovado muito, e pessimamente, na nossa literatura. Todavia, há regras, praxes, tradições que parecem invioláveis, indestrutíveis. Por exemplo, até agora, ninguém, entre nós, ousara eliminar do romance o diálogo.” Tal ia contra as regras dos pensadores: Falcão citou José Ortega y Gasset: “En la novela – afirma ele – el dialogo es essencial como em la pintura la luz. La novela es la categoria del dialogo”. E Falcão confessou: “Também eu, que em questões de arte e de literatura, nunca fui ortodoxo, julgava proeza irrealizável arrancar o diálogo do romance, sem fazer perder a este o sangue, sem o deixar como morto. Enganava-me, porque raciocinava como o mais simplório dos simplistas. Enganava-me imperdoavelmente, visto que sempre acreditei na possibilidade do prodigioso.” A Toca do Lobo era esse prodígio. Ainda que extasiado, Falcão porém receava que tal inovação caísse mal na mente de leitores e críticos atidos a regras: “Falta-lhe, porém, o diálogo, o diálogo que se caracteriza por um traço tipográfico a abrir a linha e a indicar a mudança de interlocutor. Porque o outro, o que no livro de Tomaz de Figueiredo se subentende nas frases metidas entre parênteses, o que não tem o serviçal traço tipográfico a anunciá-lo, não é diálogo para o público. Nem para o público, nem, decerto, para aqueles críticos que se entregam à sublime tarefa de turibular o caruncho dos velhos cânones e a marmelada indígena de lugares-comuns.” Ironizando, Falcão não achou “provável que o autor de A Toca do Lobo tenha de autorizar daqui a pouco nova edição do seu magnífico livro. E também não me palpita que abiscoite banquete de homenagem ou mensagem metida em pasta de percalina. Possui talento demais para merecer semelhante consagração (23).” Acertou: A Toca do Lobo só foi reeditado em 1962, e, apesar de ser o livro mais popular de Tomaz, nunca conheceu o favor do grande público, Universidade incluída, onde nem pela porta dos fundos entrou.
A recepção das inovações de A Toca não podia ser mais diferente do que a de Levantado do Chão: a marginalização e esquecimento de Tomaz começaram de imediato. Saíram em momentos antinómicos. Em 1980 uma pletora de autores e pensadores estrangeiros avalizava a contestação das convenções. Mas em 1947 não era da praxe o louvor de subversões, queria-se o romance de recorte oitocentista, eciano, camiliano, respeitoso das regurgitações, conservadorismo tão rente à alma que até enformou a escolha de Lourenço por A Sibila, por mais ousada que julgasse a escolha.
Lendo A Toca do Lobo hoje em dia, passadas as tremendas mudanças sofridas pela arte do romance, a técnica parecer-nos-á compreensivelmente rudimentar. Tomaz tendia a situar os parênteses como ponto da frase, raramente pondo vírgula depois deles de modo a continuar a frase. Diálogo e narração ainda não estão realmente misturados num todo por causa dos parênteses, dos quais Saramago e outros se livrarão. Mas foram os primeiros passos nessa direcção. Tomaz costumava dizer que o velho já foi moderno e o moderno será velho; o tempo torna mais acessível o outrora difícil. A função da Universidade é pôr o leitor moderno no lugar do leitor passado e reconstruir-lhe o efeito do estranho. Ainda hoje, há rasto dum halo, há sinais da propensão para a frase contínua, cujo potencial Tomaz levaria mais longe em 1962. Ainda não seria saramaguiana, mas já seria serpentina, espiralada, atravessando páginas e impelida apenas por vírgulas.
2) A brigada torrencial
Graças à entrada dos franceses e dos latino-americanos nos hábitos de leitura dos ficcionistas portugueses, outra “inovação” de Saramago afinal não surpreendeu ninguém. Os seus primeiros leitores tiveram uma desvantagem em relação a nós: eles viveram as drásticas mudanças na ficção nos anos 60. Duvido que haja muito leitor de trinta e sete anos que ande em alfarrabistas à cata de Mário Dias Ramos, Nelson de Matos, António Rebordão Navarro, Serafim Ferreira, Eduarda Dionísio. Nós lemos Saramago virginalmente, não nos constrangem as referências a que os primeiros leitores obrigatoriamente o compararam; mas como essa geração de ficcionista não vingou parece-nos que ele saiu dum vácuo, sob a ilusão de que o nosso espanto foi sentido pelos nossos antepassados.
Todavia, mesmo sem eu recorrer a esdrúxulos cacos de arqueologia que mais vale deixar enterrados nas manchetes da memória, não faltaram autores antes de Saramago que exploram a frase longa. Lobo Antunes adiantou-se um ano com Memória de Elefante e o ainda lembrado Faria estreou-se com um estrépito verbal quase sem precursores. Usada por Proust e Joyce, depois banida com o regresso ao realismo oitocentista, a frase longa multiplicou-se no pós-guerra graças a adeptos vindos de todo o lado: Gadda, Simon, Carpentier, Guimarães Rosa, Thomas Bernhard, García Márquez, e hoje em dia é um frouxo cliché que causa bocejo. Contudo, outrora desempenhou um papel importantíssimo. Quando o romance apareceu entre os séculos XVII e XVIII, impôs-se contra um passado de oratória sacra ou laica mas em ambos os casos altamente retórica, amaneirada, rebuscada. Como o romancista cresceu a equiparar retórica e verbosidade, na tendência natural para o realismo contraiu o dever de relatar objectivamente a realidade visível, sem deformações, como uma câmara de filmar, registando desapaixonadamente. Daqui a crença de que o narrador romanesco deveria apagar-se da página; adjectivos e advérbios estavam proibidos porque insinuam subjectividade, como se lê num muito badalado livro nos anos 40 e 50 de Claude-Edmonde Magny, L’âge d’or du roman américain, que ensinou gerações de neo-realistas portugueses, espanhóis e franceses a imitar as frases curtas e descarnadas de Caldwell, Hemingway e Steinbeck. Numa entrevista de 1990, Fernando Campos ainda mostrava o apego a este hábito quando disse que “tento não deixar escapar adjectivos e advérbios que são palavras traidoras (25).” É típico no realista o temor de que a linguagem atraiçoe a mensagem, mais vale não a usar demasiado: frases simples, registo neutro, contenção emotiva, muito substantivo, verbos flébeis como ter, haver, estar, ser. O ideal, aliás, era reduzir a prosa a didascálias, singelas indicações de cena, e deixar o diálogo arcar com a narração. Seguindo Magny à risca, Cardoso Pires chamava contos a guiões de cinema:
“António Grácio disse:
-Porca de vida.
O companheiro continuou com a cabeça levantada sempre no mesmo sentido e exclamou, batendo com a bengala branca no alcatrão:
-O gajo prometeu que vinha, Tóino?
-Sei lá. Em casa não está ele. Só se foi prà cidade.
Ouviram o buzinar dum automóvel e desviaram-se para a berma da estrada. Adiante deles, uma cobra pardacenta lançou-se ao caminho precipitadamente. António Grácio apertou o braço do companheiro e estacaram os dois. (26)”
Os contos de Tomaz, da mesma época, marcadamente destoavam pelo desvelo diabólico:
E o panorama parado da desgraça?…
Parado, o esquadrão de galheteiros, em cima do aparador de feitios astutos, muito pensados e niquelados, luzidios de azeite e com ocasionais moscas mortas aderentes, de barriga branca e inchada…
Parado, um lago turvo, o espelho do lavatório ao qual as mulheres avermelhavam os lábios e onde caixeiros-viajantes, molhando-os com cuspo, iam colando selos de reclamo…
Parado, na parede, um caixilho de pinho, o preçário dos quartos e refeições, devidamente carimbado pela entidade competente, visado pela Inspecção: legal, à prova de multa…
Parada, a meia dúzia de taças, búzias de pó e dedadas, esperando na prateleira por aniversários lucrativos, por entusiasmos e ternuras que requeressem vinho espumoso e gás carbónico, discursos e formigueiros no nariz…
Parado, cada cálice de palitos cada qual de sua cor, oferecendo poleiros às moscas: seis ou sete, cada qual…
Parada, a cortina de cassa e cor de pó, lavada e relavada, com petas de caruncho e sem personalidade, frouxa e pingona, frangalho de luxo…
Paradas, as toalhas postas de bico, por elegância e requinte…
Parada, a garrafa de ‘águas minerais’ (como se as houvera animais, ou vegetais!), tombada, para ‘não perder a força’, do sucessivo e sempre renovado hóspede de estômago ácido…
Parado, o próprio relógio, de invenção muito procurada e reconhecido o mais a carácter, um prato com algarismos e ponteiros…
Parado, o candeeiro de reserva, suspenso de um gancho, que sempre havia de recusar-se a pegar e a alumiar, nos eclipses da electricidade, que apenas acederia a feder a petróleo e a bufar…
Paradas, com sarro de vinho, as rodelas de borracha, húmidas, que aderiam ao fundo das garrafas…
Parado, o vaso da begónia, com pontas de cigarro e palitos servidos, posto sobre o plinto pernalta e engradado, inspirado na torre Eiffel…
Parada, a torneira do lavatório, limpa aos sábados, mal vedada e gotejando…
Parados, o peixe cozido e a saber a frescum, o bife estorricado, ou esponjoso ou córneo (a penitência do almoço)… E o peixe frito e sem sal, com azeitonas moles, a carna assada, com trama de nervos e pelicas (a penitência do jantar)…
Parado, o ranço das manteigas…
Parado, o cheiro misto e perene a cebolada e couves cozidas…
Parada, a penumbra, não de luz doce, penumbra de saguão…
Parado, o fundo musical do rádio, vindo da taberna contígua: só lá, de longe a longe, alguma valsa evocadora, facada terna, pincelada de outra vida…
Parado, o tempo sólido e visível, materializado na folhinha dos calendários, que ninguém se dava ao trabalho de arrancar… (27)
Contudo, em tempos foi imperialmente popular o estilo de Pires. Mas no pós-guerra uns quantos selvagens contra-atacaram a hegemonia do realismo minimalista. Após décadas de inércia a reportar objectivamente afazeres do dia-a-dia, despertaram para deleites retóricos, o bardo voltou a cantar a palavra com fulgor, e a frase serpentou. Sob risco, o iconoclasta acometeu contra o “bom gosto” da época e aventurou-se para lá da frase curta e substantiva. Em Portugal, a viragem deu-se em 1950 num belo romance de Tomaz, Nó Cego. Tecnicamente, é menos ousado do que A Toca (foi escrito antes), a pontuação é convencional, tem um enredo linear (tem enredo sequer), o tempo não está pulverizado. Mas o ritmo da frase, que em A Toca é curta, nervosa, ganha outro fôlego:
“Saudades de tudo… Nem ele sabia que tinha amor a muitas coisas para as quais até ali mal cuidaria ter olhado. Os cortinados de cassa com florzinhas miúdas, a desbotarem… A cadeira de coiro do tio Bento, sempre com uma manta dobrada em cima, para o tio Bento deitar à noite sobre os joelhos… Os quadrados da manta, uns azuis escuros e outros de azul um nadinha menos escuro… A caixa dos óculos do tio Bento, com a pele descolada numa das pontas, a descobrir o metal amarelo cheio de verdete… A barrinha doirada, a desvanecer-se, das xícaras por onde acabavam de tomar chá… A cómoda toda feita de bocadinhos de madeira de umas poucas de cores, onde o tio Bento guardava papéis que nunca mais acabavam… Um nó do soalho, que, sempre que o molhavam, ao esfregar, ficava a parecer ainda mais uma cabeça de gato, com olhos e bigodes, orelhas e tudo… O retrato do Papa, a deitar a bênção à família, com uma esquininha do vidro estalada… O florão de estuque, no tecto, que volta e meia o candeeiro de suspensão defumava e que logo o tio Bento mandava caiar, tanto que já pouco se lhe percebiam as grinaldas, entupidas pelas muitas demãos… Saudades até do fantasma, do fantasma que, ouvia contar às criadas, costumava aparecer no quarto vermelho… Nunca ele o vira, isso sim! – de medo passava sempre às carreiras em frente do quarto vermelho – mas agora parecia-lhe que até o ter medo do fantasma lhe fazia falta… E, logo de manhã, até que chegassem as férias, nem mais fantasma, nem mais florão de estuque, nem o retrato do Papa, nem o nó do sobrado, que parecia a cabeça dum gato, nem a cómoda, nem a barrinha das xícaras, nem a caixa dos óculos, nem a manta, nem a cadeira, nem os cortinados… Nem tudo, nem o pai… Nem o pai! (28)”
Este parágrafo inteiro foi esculpido, é arquitectónico, simétrico: os itens da primeira metade (o meio é a repetição “do fantasma, do fantasma”) reaparecem em ordem inversa na segunda metade; ao passo que na primeira estão espaçados por pormenores, na segunda estão concentrados como que correndo para o desfecho, como se constituíssem uma contagem final para uma desgraça. De facto, para João Bravo, o protagonista, é uma desgraça: depois de gozar em casa as férias do internato, prepara-se para voltar à sua miserável prisão; pela primeira vez, sente intensamente a perda; valoriza o que outrora dera como garantido; mas o que mais teme perder é o pai, a quem ama, seu amigo, porque foi a mãe dominadora quem o forçou a matricular-se no internato. É uma frase tocante, repassada de dor. Mas é também tecnicamente impressionante o facto de estar pensada claramente como unidade indivisível: cada pormenor ocupa um lugar preciso no todo harmonioso. Havia bons estilistas, Aquilino à testa, mas tão minucioso burilar não se encontrava nos contemporâneos. Mas este é um exemplo raro em Nó Cego. Tomaz sentia os olhos do “bom gosto” da época a espiá-lo, por isso procedeu por passinhos. Por fim, Dom Tanas de Barbatanas: O Doutor Geral rebentou numa torrente proto-saramaguiana. Neste livro de 1962, um pastiche dos panegíricos seiscentistas, o difícil é escolher o trecho que não se assemelha à exuberância do Memorial do Convento:
Meneando avisadas cabeças, elas, que tudo têm obrigação de saber, pois que para tal são fadas, iam colhendo augúrios infalíveis e probabilíssimos do radioso futuro e final lindo enterro do engraçadíssimo infante seu ai-jesus, observando-lhe o colorido e o mais que lhe coloria paninhos e cueirinhos, vigiando-lhe chichis e tudo, que de seu moto próprio e com toda a independência vertia e fazia, sem que pedisse licença a ninguém, logo claro anúncio de quanto sairia de génio independente e pessoais determinações, voluntarioso e resolvido, sem pavor e desinteressado, arguto e compreensivo, leal e verdadeiro, punidor pela justiça e de levar tudo raso, se a ele lhe não faziam o que entendesse de recta justiça, possante como um touro, também, de com um sopro atirar o mais valente por esses ares, e de muito agradável conversação; e de esclarecidíssimo raciocínio, antes de tudo, um legítimo Barbatanas, de dar gosto a seus felizes progenitores, além de muita honra, de grandes serviços e finezas prestar ao Reino, que na paz ou que na guerra, mas tanto numa como noutra, especialmente na paz e especialmente na guerra, em que não devia ser para brinquedos, assim como na paz, duríssimo de roer e muito mau de tornar, em todas as circunstâncias, mesmo nas benignas e airosas, a escolher ser temido antes do que amado, e a levar tudo raso e à má cara, até a fazer caras, consoante é de assisada política, no caso de se estar de cima, pois quem está de cima racha canhotas, e o engraçadíssimo infante sempre faria tudo para estar de cima, nem que no dia seguinte houvesse de negar o afirmado na véspera, pois que Barbatanas não vinham ao mundo e lhes não acenicavam guizos de prata, e apenas porque a prata mais límpida soa que o ouro, para serrar de baixo, posição que puxa do peito e faz doer as reins, além de que só quem serra de baixo leva serrim pelos olhos. (29)”
“Assim como, a surras e bofetões, até a cacetadas, é que as pessoas se faziam, ele correndo a negra, ameaçando-a de vinte bastonadas em couro estreme e dadas por seu punho, o que somente umas três ou quatro vezes cumpriu, embora fosse um fidalgo de palavra, por ser de amorável génio, sempre que ela, com a sua nenhuma ilustração e toda lagrimosa, acudia por Dom Paiozinho, invocando ser maneta, que não era, mas como se o fosse, de trazer à dependura o bracinho direito, depois que nem a lanceta do cirurgião, cortando bem fundo, lhe pudera atalhar ao mor frio; e que breve o Senhor, que frequente se esquece do amor e do dos pais, determinou chamar para junto de Si, ao cair e medir do cimo a baixo e de cabeça umas escaleiras de pedra, empurrado por Dom Tanas, que não teve sombra de culpa, e que, pequeno grande homem como já se amostrava, acalcou por dignidade o fundíssimo desgosto, não derramando nem uma lágrima, jamais depois falando sequer do tão estremecido seu mano Dom Paizoinho, e tão-só por via de lhe não cortar mais o brando e sensível coração a saudade que o afligia (30).”
“Além dessas orientais, porém, não devia supor-se que lá não houvesse, e de três em pipa, das de Sevres e de Saxónia, embora mais numerosas e variadas, e sem esmoucadela nem cabelo, as de fornos egípcios, atenienses e de Creta, de Alba Longa e de Cartago, todas essas topadas pela relha de charruas nos domínios ultramarinos dos Paços de Barbatanas, assim como graciosidades de fantasia para amêndoas e ginjas cristalizadas, azeitonas e cebolinhas de conserva, pimentos doces e azedos, advindas à cantareira dos Barbatanas por deixa testamentária de Dom Roque, o dito de Gargantónia, escolhidas a seu gosto, capricho e predilecções na Roma dos Bórgias, graciosidades essas que nem todas, ou até nem uma só, espíritos acanhados considerariam absolutamente decentes; porém, sempre de não esquecer e, antes, de ateimar, que era aquele o Paço de Barbatanas, ali e não noutro sítio, do qual incontestado e acatado senhor Dom Eustáquio de Barbatanas, verdadeiro príncipe do Renascimento, acomparável, na pior das hipóteses, a um Colonna ou a um Sforza, a um Sermonetta ou a um Spada, e que tão sumptuoso palácio não era, resultantemente, choupana ou pardieiro de fidalgo feito a martelo, tão-pouco saleta e alcova de encolhida e pouco esclarecida solteirona a quem determinadas figurações ao vivo, desde que não infantis e douradas, em querubins de retábulo, ruborizassem e enfiassem, assombrando-a de sonhos maus (31).”
Este monumento de palavras foi erguido um ano antes de Rumor Branco, que figura incompreensivelmente nos manuais como o momento em que este estilo caudaloso entra na literatura portuguesa. O veto do todo-poderoso Lourenço é lei e bastou menosprezá-lo com meia frase para a Universidade o apagar. Tomaz provavelmente sentiu-se aliviado por ter ficado no adro da capelinha, ele já andava a gozar com os “filhos” e as rixas entre “velhos” e “novos” e pertenças a “grupos” quando o Eduardito ainda andava a prostituir a honestidade intelectual fazendo resenhas negativas a quem não fosse neo-realista sob ordens dos comparsas neo-realistas (32), antes de se ter virado contra eles com interminável sanha.
Estas espessas manchas textuais, as mais espessas e embrenhadas do romance português antes de Saramago, permitem-nos saltar para outro dos aspectos que segundo Real se deve ao pioneirismo de Saramago.
4) Os outros seiscentistas
Um dia, Saramago fez “um estilo síntese de todos os estilos, habitualmente designado (não consensualmente) por neobarroco (33).” A paixão de Real por este tópico parece superar a minha, o que eu julgava impossível. Inalei um cheirinho em Pessoa & Saramago (2021). Não se cala com o “estilo neobarroco” nem com o “autêntico fogo de artifício semântico de horizonte barroco (34)”. Distraído pelo êxtase, muda sem aviso de “barroco” para “neobarroco”, talvez signifiquem o mesmo. A prosa barroca é tão odiada em Portugal, nós parcos fãs temos que nos manter unidos. Por isso, é no espírito da camaradagem construtiva que apontarei as impressões assaz retrógradas e ultrapassadas acerca do Barroco que ele deixa jorrar por entre o júbilo.
Para começar, Real faz-lhe fluir o neobarroco do Padre António Vieira, uma paternidade mui problemática e talvez até postiça, mas os críticos foram induzidos nessa trauta pelo próprio Saramago. Além disso, é cauteloso na bagagem barroca que faz Vieira endereçar-lhe. À maneira oitocentista que nenhum estudioso leva a sério hoje em dia, há barroco e barroco, há o cozido e o de barro oco. O mau barroco faz trocadilhos. Saramago, apanágio apolíneo, “não deixando a sua escrita abandonar-se a uma música gongorista, de trocadilhos artificias, de antíteses artificiosas, de metáforas subtis e excessivas que, mais do que fazer a língua brilhar, a torceriam e deformariam”. Trocando por miúdos, oxalá mudos, ele acredita na suplantada divisão entre conceptismo (bom) e cultismo (mau): “a selecção das palavras na escrita é importantíssima, mas que o cultismo é, hoje, apenas retórica, discurso oco, forte eloquência.” Suspeito que Real se ande a guiar por António Sérgio, paradigma dos muitos preconceitos da primeira metade do século XX (35). Há quase um século que ninguém educadamente postula tal antagonismo; actualmente, os estudiosos concordam que o pretenso cultista Luís de Góngora usou conceptismos e o pretenso conceptista Francisco de Quevedo usou cultismos. “Conceptismo” deriva de “conceito”, que na gíria seiscentista simplesmente significava “metáfora”, como no-lo lembra o retórico barroco Baltasar Gracían, sendo os poemas de Góngora matilhas de metáforas latindo alatinadamente alto. Para especialistas, esta terminologia já perdeu a utilidade classificativa e judicativa. Já Alfonso Reyes, no tricentenário da morte de Góngora, condenava o absurdo da divisão, rejeição retomada recentemente pelo poeta e ensaísta espanhol Andrés Sánchez Robayna (36).
Real retrata-nos um Saramago “divertindo-se com as palavras, menos num sentido cultista e mais conceptista (exactamente como a prosa de Padre António Vieira), explodindo em longos períodos de apuramento barroco, como uma catedral de palavras”. Bizarramente, depois de nomear Vieira o praticamente do aprovado conceptismo, o bom barroco, depois cita-o em flagrante delito dum trocadilho cultista: “Terrível palavra é um Non. Não tem direito nem avesso: por qualquer lado que o tomeis, sempre soa e diz o mesmo (37).” Repara só, filológica leitora, na artificialidade: em 1670, a grafia “não” já estava difundida; “non” era um arcaísmo; contudo, Vieira não viu razão para desperdiçar um cómodo jogo de palavras, para brinde um palíndromo à mistura, por isso incorreu no arcaísmo. A oratória de Vieira deleita-se com escolhas que não descuram o som: “Com tais premissas, ele sem dúvida leva-nos às primícias.” O gozo, para Vieira e o seu auditório, estava em aproximar duas palavras sonicamente semelhantes (premissas/primícias): o termo técnico é paronomásia.
Metáforas subtis e excessivas?
Por isso foi tão bem recebida aquela breve e discreta definição de quem chamou a um engenho de açúcar doce inferno. E, verdadeiramente, quem vir na escuridade da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes; as labaredas que estão saindo a borbotões de cada uma, pelas duas bocas ou ventas por onde respiram o incêndio; os etíopes ou ciclopes banhados em suor, tão negros como robustos, que soministram a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com que o revolvem e atiçam; as caldeiras, ou lagos ferventes, com os tachões sempre batidos e rebatidos, já vomitando escumas, já exalando nuvens de vapores mais de calor que de fumo, e tornando-os a chover para outra vez os exalar; o ruído das rodas, das cadeias da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo, sem momento de tréguas nem de descanso; quem vir, enfim, toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela Babilónia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança do inferno.
Nada de excessivo, esbraseada leitora, apenas engenhos de açúcar dos escravos comparados às penas do Inferno.
Todavia, sim, Saramago reclamou para si um estilo barroco e, para mais, insistiu repetidamente na influência directa de Vieira. Real afirma até que é oralizante por imitação de Vieira, que “seguiu o fio oral da íngua”, o que mostra desconhecer por completo a educação dum pregador seiscentista (38). Saramago acertou ao dizer que Vieira obedecia ao “princípio básico segundo o qual o dito se destina a ser ouvido”, mas o pregador não conversava nem narrava ficção, pregava. Por vezes, Saramago confundia oralidade com oração: “Ora, o narrador oral não precisa de pontuação…” Daí a justificação para não a usar. Mas oralidade e escrita são tecnologias antagónicas: não é que o oral não precise, é que não pode ter pontuação; se duvidas, experimenta pintar vírgulas e pontos à frente do ar quando falas. Já agora, tenta-lhe pintar acentos; ainda melhor, tenta encontrar a diferença oral entre paço e passo, Pisa e pizza, faz e fás. Tenta fatiar com os olhos as ondas sonoras em unidades semânticas, a fala é um sopro contínuo modulado pelos lábios, cordas vocais e dentes que as orelhas descodificam em palavras singulares. Estranhamente, o campeão da oralidade foi um forte crente em características quirográficas: divisão das palavras escritas, acentos, grafia estabelecida de homófonas. Como todo o escritor que se preza, Saramago foi rigidamente anti-oral, mas que outro bata nesse ponto no próximo centenário.
No entanto, como observou Fernando Venâncio, Saramago também assumiu a dívida para com Almeida Garrett, cuja estudada oralidade revolucionou a língua portuguesa ao desembaraçar-se da lenta e pesada retórica sacra (39). Real pouca atenção presta ao autor de Viagens na Minha Terra, ainda que Saramago lhe tenha tirado a epígrafe de Levantado do Chão para, entre outras razões, descontraidamente assinalar a passagem da tocha estilística. Regra geral, os biógrafos sentem a angústia da influência mais dolorosamente do que os biografados.
Até ao século XVIII, a espinha dorsal do sistema educativo europeu e conquistas foi o Trivium, que englobava as disciplinas da Lógica, Gramática e Retórica; usando um método intensamente mnemónico, dependente da memorização de bons modelos clássicos, aprender a falar bem era o fim da educação. Os alunos não saíam da escola a escrever tal como se fala no dia-a-dia; saíam sabendo discursar tal e qual Górgias ou Cícero ou Quintiliano ou Santo Agostinho. Nascido em 1608, o jesuíta Vieira terá estudado a partir do Ratio Studiorum, o manual escolar da Companhia de Jesus, instituído nas escolas desta ordem religiosa a partir de 1599, uma antologia dos textos latinos dos pensadores principais, com ênfase na emulação dos clássicos. Dificilmente alguém aprendia através dele a seguir o “fio oral da língua” quotidiana vernacular do Seiscentos. Há um livro fascinante de Catherine Nicholson, Uncommon Tongues: Eloquence and Eccentricity in the English Renaissance (2013), sobre a primeira fornada de poetas ingleses formados nos grammar schools abertos durante o reinado de Henrique VIII (m. 1547), fanático da educação. Segundo Nicholson, Spenser, Lyly e Marlowe estavam tão vidrados nos modelos latinos que produziram um Inglês alienígena que aos contemporâneos estarrecidos mais soava a Italiano ou Turco. Vieira escrevia a pensar na acústica de capelas e igrejas, auditórios com milhares de pessoas, a quem a voz teria de chegar às traseiras de vastas naves onde estavam ouvintes de pé e cansados. Para o eco não atropelar as palavras, teria de emiti-las vagarosamente, ocupando entre uma a três horas. O pregador repetia um ponto várias vezes por diferentes palavras para garantir que a mensagem penetrasse. Além disso, tencionava persuadir através da majestade e beleza do estilo. Não havia nada natural ou oral no sermão: era planeado, esculpido, estudado para obter um efeito, o mais importante efeito que aquela sociedade conhecia, convencer o crente da verdade da mensagem, do que dependia a salvação da sua alma – não era tagarelice de taverna de interesse etnográfico.
Mas, pronto, concordo, há um Saramago neobarroco. A mim importa-me apurar se tal posição foi inovadora em 1980 e 1982. Ao encostar-se a Vieira, quis ele dar a entender que esse barroquismo fluía organicamente da sua indubitável identidade portuguesa. Nos anos 80, mostrou-se muito preocupado em ressaltar as raízes locais da sua escrita, devendo pouco a modas estrangeiras, dai o repúdio do rótulo “realismo mágico”, marca registada latino-americana. Houve razões para este furor nacionalista tão logo a seguir ao nacionalismo estado-novista: entre 1960 e 1980, a ficção portuguesa de cariz vanguardista revoltou-se tanto contra o Estado Novo como contra o neo-realismo: ambos reclamavam para si o conceito de “Portugal”, um mitificando-o, o outro apresentando-o “realisticamente”. Em vez de tomar partido, os vanguardistas evadiram-se dum conceito que julgavam manchado. É por isso que a Nova Literatura se passa em locais sem nome (O Mestre), ou termina com a fuga para o estrangeiro (A Paixão), ou descreve as viagens dum protagonista sem nome no estrangeiro (A Viagem). Escrever sobre Portugal era fazer o que os neos faziam, e como se julgavam bons demais para lhes seguir as pisadas, desistiram de Portugal. Esta tendência persistiu até ao Montedemo de Hélia Correia e ao Livro Grande de Tebas, Navio e Mariana de Mário de Carvalho. Aliás, o tom alegórico que Saramago usaria a partir dos anos 90, situando Cegueira, Todos os Nomes e afins em países imaginários, é herdeiro directo desta tendência que vibrava nos anos anteriores a tornar-se escritor a tempo inteiro, algo que tem escapado aos estudiosos. Porém, não escapou a Lobo Antunes:
A Memória de Elefante sai por acaso, ninguém sabia que eu escrevia, e um amigo meu, o Daniel Sampaio, andou com aquilo pelas editoras e ninguém queria. A Bertrand, onde estava a minha actual editora, a Maria da Piedade Ferreira, recusou o livro. Acabou por sair numa editora pequenina chamada Veja, em 1979, e vendeu loucamente. Percebo porquê. Nos escritores antes do 25 de Abril a acção passava-se em países imaginários, ou na antiguidade; a seguir ao 25 de Abril ficámos à espera dos romances que estavam na gaveta, já escritos e não podiam ser publicados, e não saiu nada (40).
Lobo Antunes e Saramago pertencem à vaga de autores que recuperam Portugal enquanto tópico digno de atenção literária, mas procederam de modos opostos. Lobo Antunes foi o minucioso cronista do Portugal contemporâneo, desbravando a guerra colonial, a fuga dos ricos para o Brasil, o fim do Império, a confusão do PREC, o racismo, a homossexualidade, o novo etos sexual; ao passo que Saramago abordou o passado pré-1974. Para corrigir o excesso digamos “desnacionalizador” da vaga anterior, Saramago carregou nas tintas nacionalistas. Se era barroco, dizia, era somente porque era lusitano de quatro costados. Em 1985, explanou ao Jornal do Brasil que a cultura portuguesa é barroca e portanto está mais próxima da América Latina do que da Europa. Ademais, haveria um fosso entre a Razão/Descartes/Europa e Barroco/Portugal. Os termos em que expressou essa divergência sugeriam até que os portugueses seriam incapazes de produzir filósofos, pensadores, cientistas: “Claro que todos já fomos levados a ler os Descartes e os Luteros. Geralmente entendemos mal tudo isso, porque não somos em nada espíritos cartesianos. Somos é barrocos, e já o éramos antes que o barroco existisse. A expressão cultural do barroco, no plano da língua, da arte, tenho a impressão que se faz exactamente no terceiro mundo, não em culturas fatigadíssimas, quase esterilizadas, como são as que nos vem dessa que se chama a Europa Ocidental.” Saramago não era o único a insistir nesta falência, opinião que remonta ao século XVIII. Quem conhecer bem a história do Grupo da Filosofia Portuguesa (Real, por exemplo, não que isso transpareça em 7 Vidas), sabe que uma das discussões mais acesas durante o Estado Novo, com direito a inquéritos em jornais e tudo, foi se os portugueses seriam capazes de fazer filosofia. Certo sector da opinião pública acreditava que não, e pelos vistos Saramago fazia orgulhosamente pandã com ele. Se isto parece escandaloso, lusíada leitor, repara que em 1988 Eduardo Lourenço ainda defendia tal tese em Nós e a Europa ou as Duas Razões. Estranhamente, Real passou de raspão por este livro (p. 450) abrandando só pra dizer que estava suplantado, apesar da relevância para uma Jangada de Pedra defendendo uma Ibéria integral separada física e mentalmente da Europa com base precisamente na crença duma mentalidade inconciliável.
Em tempos, os estudos sobre o Barroco de facto acreditaram numa acentuada clivagem entre a Europa e a Ibéria; o Barroco teria sido um fenómeno estético exclusivo aos ibéricos por causa da Contra-Reforma, criada a partir do Concilio de Trento, por oposição à Europa livre que continuou a desfazer-se dos dogmas e superstições rumo ao Iluminismo. Mas actualmente é consensual que o Barroco se manifestou em Itália e países sobre os quais Trento não teve autoridade, nomeadamente França, Alemanha, Holanda. Na Inglaterra, o barroco até terá começado mais cedo, no estilo de prosa eufuísta de John Lyly. Eugenio d’Ors declarou certa vez que o Barroco nasceu em Portugal, mas intuitivamente isso não pode ser verdade, de contrário Real, Lourenço e Saramago reverentemente evitariam pensá-lo através de clichés estafados.
Já houve teorias várias para a origem do Barroco: já culparam os Descobrimentos, Galileu, a ascensão das línguas vernáculas. Agora a parte engraçada: é autóctone a ideia de Saramago de que o Barroco é uma componente autóctone da cultura culturais ibéricos que concretizaram a ibericidade na América Latina? Não, apesar da tentativa de a fazer passar por um rasgo a que chegou sozinho, a referência à América Latina é um focinho de jacaré à espreita. “Fomos, e penso que ainda somos, um país do terceiro mundo. Num sentido não geopolítico, mas geocultural.” Durante o PREC, Saramago apoiou Vasco Gonçalves, cujo ministro sem pasta Melo Antunes quis atrelar Portugal ao movimento terceiro-mundista do NIEO, ou New International Economic Order, um bloco contra o capitalismo ocidental dos. Nesta altura, “terceiro mundo” ainda não tinha conotação negativa, designava apenas um terceiro grupo de países por contraste aos dois blocos da Guerra Fria, EUA/Japão/Europa Ocidental e União Soviética. Gozava até de prestígio na imprensa anti-capitalista. O movimento era engrossado por países que há pouco tinham adquirido a independência depois de serem colónias imperiais europeias; as elites que os passaram a governar estavam eivadas de nacionalismo, obcecadas com arejar e reafirmar as respectivas raízes étnicas que os antigos colonos taparam. Na América Latina, os intelectuais afectos a este programa tentaram concretizar uma identidade pan-latino-americana literariamente. O cubano Carpentier e o venezuelano Arturo Uslar Pietri descobriram o “real maravilhoso” e o “realismo mágico”. Outros descobriram o “neobarroco”. Abreviando a história do neobarroco, em 1955 o poeta brasileiro Haroldo de Campos divulgou o termo (que foi buscar ao crítico de arte italiano Gillo Dorfles) para designar a arte contemporânea em geral – Campos ainda não o sabia mas procurava um nome para o que hoje em dia tratamos por “pós-modernismo”. Quatro anos depois, o poeta cubano José Lezama Lima atribuiu ao barroco (não usou “neobarroco”) contornos políticos e identitários: em La Expresión Americana confabulou uma América Latina barroca ainda antes de Colombo e Cabral, tal como Saramago tornaria Portugal barroco desde o Big Bang. Lima politizou o barroco ao defini-lo como a arte da “contra-conquista” e instou o escritor latino-americano a orgulhar-se dessa tradição e a assumi-la em oposição ao racionalismo do congénere europeu. Em 1972, outro cubano, Severo Sarduy, sem saber que Campos já usara o termo, redescobriu-o no ensaio “El barroco y el neobarroco” e teorizou-o com os contributos político-identitários do seu conterrâneo Lima. Em meados da década de 1970, era já lugar-comum os latino-americanos julgarem-se os seus donos e utentes exclusivos. Desde então, o neobarroco e a literatura latino-americana estão fundidos num só.
Quando o barroco regressou do outro lado do Atlântico, os autores espanhóis ficaram de fora e à nora. É que, pace Saramago, eles odiavam há séculos este património ibérico como uma sogra odeia a nora. Daí um dos meus episódios favoritos do Boom Latino-Americano. O estilo rico, entusiasmado, brincalhão, vívido, transbordante de García Márquez, Cabrera Infante, Donoso, Vargas Llosa, agradou tanto ao leitor espanhol que rapidamente se tornaram vedetas e bestsellers. Quem não se riu com isso foram os autores, cujas vendas declinavam porque o público estava farto de secura neo-realista. Em 1970, um certo José María Gironella passou-se no polémico artigo “Viaje entorno al mundo literario español”, em que vergastou os críticos espanhóis por ungirem os latino-americanos por fazerem o que tinham aconselhado os espanhóis a nunca fazer. Gironella estava piurso porque andavam a elogiar o “barroquismo idiomático”, a “capacidade de fabulação”, o “localismo ou enraizamento telúrico, quase vegetal”, “a construção em planos diversos”. Além de Gironella não ver novidades nisto (com toda a razão), “se bem me lembro os nossos críticos tinham tachado de anacrónico o barroquismo, considerando-o incompatível com a plasticidade e a ‘rapidez expositiva’ impostas pelos modernos métodos audiovisuais. Igualmente, ‘fabular’ era tido por elemento fugitivo, de evasão e escamoteio, tendo em conta que a época em que vivemos exige temática frontal, denúncias concretas e não às escondidas.” Caminhava-se, lembrou, para a civilização planetária, o malabarismo estilístico não era tão importante como o conteúdo. Que aconteceu?, perguntou o apopléctico Gironella, confuso e furibundo com os críticos que andaram a impingir as tretas neo-realistas por lá, alienando os leitores, deixando-os sedentos de contadores de histórias empolgantes (41). A debandada para os latino-americanos encetou uma crise de vendas dos romancistas espanhóis que se estendeu até para lá do Franquismo.
Descontando o infeliz matiz nacionalista, a identidade barroca da América Latina é falsa, não passa duma posterior “invenção da tradição”, romantismo de rebotalho. Surtos neobarrocos ocorreram na literatura mundial a partir do pós-guerra, sem centro nevrálgico. Em 1952, tanto João Gaspar Simões como Murilo Mendes recorreram ao barroco para interpretar a exuberância poética de Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima. Em 1962, George Steiner aplaudiu o retorno do barroco n’ O Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrell (42). Dois anos depois, Irving Howe observou que o estilo de Saul Bellow em The Adventures de Augie March evoluiu para neo-baroque. Nada leva a crer que Steiner ou Howe acompanhassem teorias circulando em Português e Espanhol. E, claro, as obras precederam os críticos. Não faltam laivos barrocos nos romances de Nabokov desde os anos 40, ou Guimarães Rosa, Raymond Queneau, Günter Grass. Uma Laranja Mecânica, ao recriar um Inglês neológico misturado com Russo, relembra os poemas seiscentistas escritos em múltiplos idiomas.
Às vezes, porém, Saramago não sabia conter entreportas o amor ao barroco. Real cita-o asseverando a um jornal italiano (L’Unità, 03/09/86) que “A verdade é barroca”. Desconheço a resposta do entrevistador, mas talvez tenha respondido, Olha que giro, o senhor conhece um italiano chamado Carlo Emilio Gadda, é que ele dizia uma coisa assim. E quem sabe, o antigo editor da Estúdios Cor talvez o lera, talvez lhe ficara na memória um resíduo do prefácio de Gadda para O Conhecimento da Dor:
“O grotesco e o barroco circunscrevem-se a uma premeditada vontade ou tendência expressiva do Autor, mas ligados com a natureza e a história; veja-se a carranca do fanfarrão, ainda que trasfegado, ou o verso ‘que enorme soberta alteza’, e compreender-se-á que estas coisas não podem debitar-se À vontade perversa e ‘barroquizante’ do Autor, mas à real e histórica brincadeira de segundos ou de terceiros, ao seu comportamento ou dos seus septenários, de maneira que o grito-palavra de ordem ‘barroco é o G.!’ podia comutar-se naquele mais razoável e plácido asserto ‘barroco é o mundo e o G. limitou-se a percebê-lo e a retratá-lo.’ (43)”
Se a verdade é barroca, e se não há nada mais verdadeiro do que o mundo (“O mundo é tudo o que acontece”, L. Wittgenstein), Gadda e Saramago expressaram a idêntica conclusão de que a realidade é demasiado complexa para a velha lógica cartesiana/positivista a abarcar completamente. Simplesmente, Gadda adiantou-se vinte anos.
Aonde é que Saramago poderia ter ido buscar a idiótica ideia de que um país detém direitos identitários sobre o barroco? Que tal a Alejo Carpentier, papagueando os compatriotas nos palcos mundiais? Em 1975, no Ateneo de Caracas, leu a famosa palestra “Lo barroco y lo real maravilloso”, onde tentou irmanar o barroco ao real maravilhoso como aspectos duma inconsútil identidade latino-americana: “América, continente de simbiosis, de mutaciones, de vibraciones, de mestizajes, fue barroco desde sempre”. Mas, rebaterás, céptica leitora, Saramago andava demasiado ocupado em 1975 a sanear jornalistas para se inteirar destas bagatelas. Talvez não conhecesse este texto, mas Carpentier repetia-se como o calendário lunar. Em 1971 já estava em Português Literatura e consciência política na América Latina:
“A nossa arte sempre foi barroca: desde a esplêndida cultura pré-colombiana e dos códices até à melhor novelística actual da América, passando pelas catedrais e mosteiros coloniais do nosso continente. Até o amor físico se torna barroco na encrespada obscenidade do guaco peruano. Não temamos, pois, o barroquismo no estilo, na visão dos contextos, na visão do verbo e do ctónico, metida no incrível concerto angélico de certa capela (branco, ouro, vegetação, intrincados, contrapontos inauditos, derrota do pitagórico) que pode ver-se em Puebla de México, ou de uma desconcertantemente enigmática árvore da vida, florescida de imagens e de símbolos, em Oaxaca (44).
Para não alongar, fica só mencionada a probabilidade de Saramago se ter inspirado também nos latino-americanos para encontrar um modo de conciliar a experimentação e o engajamento político, que os nouveaux romanciers repudiavam.
Portanto, o barroco dimanou directamente de António Vieira para o Memorial do Convento? Tenho dúvidas a respeito disso. Atenção, não nego a honestidade da pública admiração pelo pregador; mas recentemente, ao pensar nisto, reparei que não conheço uma referência deslumbrada de Saramago a Vieira antes de Levantado do Chão. Apesar das crónicas, da artigalhada política, das opiniões do DL, Saramago só assume o patriótico amor ao barroco a partir de 1980. Real deu sumiço a uma passagem de 1973 (mas citada na p. 421 da biografia de Joaquim Vieira) em que afinal se mostra assaz anti-barroco, com cautelosas excepções para um Vieira apreciado sob reservas:
“Quando virá o tempo em que enfim começaremos a aprendizagem de uma expressão directa ao entendimento, em que mais nos preocuparemos com falar bem do que com falar difícil? Quando será que nos disporemos a deixar à literatura os artifícios e girândolas de estilo de estilo (àquela literatura que preferentemente os consuma) para no trato diário das questões usarmos uma linguagem que tenha na clareza a sua qualidade principal e a sua justificação? Quando será que deixará de pairar sobre a nossa fala e a nossa escrita essa incómoda herança de um barroquismo linguístico que só no padre António Vieira é (mas nem sempre) regalo e proveito? Quando enfim deixaremos de usar a palavra para rodear e tornar menos amargas verdades que nada têm de doce?”
Como é que Saramago logrou introduzir o neobarroco em Portugal se o barroquismo intrínseco ao indígena aparentava ser um dos mais profundos problemas sociais que urgia combater? Para mais, quando fez crítica literária na Seara Nova, referindo-se ao romance A Execução de Júlio Moreira em Maio de 1967, afirmou que o estilo “não serve eficazmente a narrativa. É intumescido, barroco, por vezes verborreico, roçando o mau gosto e o lugar-comum.” Se acreditasse à data que o barroco é património imaterial e sagrado da nação, decerto teria achado outro termo. Usar “barroco” em sentido pejorativo condizia mais com Cardoso Pires, Gaspar Simões, Sérgio, Teófilo Braga na I República.
Para alguém acostumado ao descrédito do barroco enquanto estética, não há mistério nenhum em tal antipatia vinda dum homem de Esquerda. Ele lembra-me Álvaro Salema, majestoso anti-fascista, deplorando o “barroquismo ficticiamente populista” de Dom Tanas de Barbatanas. (Há anos que tento perceber o que é que isto significa sequer, mas dá pra pressentir que não é uma abonação.) Este é um dos nada raros momentos em que para alumiar um escaninho da história literária portuguesa tenho de patujar um pouco em lixo extraliterário. Como o demais no Estado Novo, o Barroco foi uma frente de batalha partidária; pior, pertencia ao ideário da Direita, sendo um componente do século XVII, período nacional áureo idolatrado e idealizado em quadrantes conservadores, quando a mão firme da Inquisição manteve a identidade católica intacta, antes de o estrangeirado Marquês de Pombal a ter desvirtuado trazendo de fora a abominação do Iluminismo. Na trincheira oposta, a Esquerda protegia o Século das Luzes com baterias anti-aéreas. Antigamente, ser-se da Direita ou da Esquerda implicava downloadar um programa que formatava integralmente a identidade e o comportamento. O progressista não pensava apenas em cobrar mais impostos aos ricos; assumir-se à Esquerda forçava-o, filosoficamente, a acreditar na superioridade do positivismo (depois neopositivismo, mais tarde materialismo dialéctico), literariamente, a propugnar o realismo (naturalismo, populismo, behaviorismo, realismo socialista). Vivia em autovigilância constante, em coerência com uma série de crenças e referências que excluíam agressivamente a simpatia por heresias. Dentro das hostes progressistas, mostrar apreço pelo Barroco indiciava desnorte intelectual; o Barroco era afectação mental, sinal dum doentio espírito retrógrado. “Barroco” radiava retórica barata, palavreado, confusionismo, fogo-de-vista para esconder pobreza de ideias, verborreia. O progressista político estava com o reformador do ensino Luís António Vernei, com Pombal, os Liberais de 1821, os republicanos positivistas. Teófilo condenou o século XVII em Os Seiscentistas. (Antes de “barroco” entrar em circulação depois de 1945, em Portugal usava-se “gongorismo”, “cultismo” ou “seiscentismo”.) Por sua vez, o tópico ia custando a vida a Sérgio. Em 1923, o nacional-sindicalista salazarista Manuel Múrias publicou O Seiscentismo em Portugal, obra apologética. António Sardinha, doutrinador dos Integralistas Lusitanos, embeveceu-se numa recensão apoteótica. Pelo contrário, Sérgio criticou Múrias e Sardinha por desvalorizarem a decadência nacional durante o século XVII: “admirar o Seiscentismo é querer-nos manter no grande eclipse da cultural nacional; é querer adorar o maior cancro de que ainda sofre o Português: a mentalidade anti-científica, anti-crítica, que nos faz… ‘índios da Europa’ desde então.” Entretanto, Sardinha faleceu enquanto redigia esta resposta e quando veio a público os seus apoiantes interpretam-na como insulto à sua memória, pelo que fizeram uma espera a Sérgio com gás sulfídrico (45). Para que fique claro, o “barroco” não foi a razão principal para o atentado, mas é instrutivo que fosse um tópico que politicamente estremasse Sérgio e os Integralistas.
Antes de Saramago os primeiros autores elogiados por fulgores barrocos não foram por acaso em geral figuras ou à Direita, ou estetas indiferentes à política, ou em guerra com os progressistas literários. Em 1959, Gaspar Simões apelidou Agustina de barroca com o intuito de a desvalorizar. Por sua vez, Lourenço falou em 1966 do “gozo barroco de Ruben A.” em A Torre da Barbela (46). Quando Portela Filho iniciou o apostolado do nouveau roman para romper com o domínio do neo-realismo, não se cansou de insistir na imprensa que o barroco era português (47). A veemência desta afirmação não fará sentido se o leitor moderno desconhecer a repelência raivosa causada a certos críticos da época pelo barroco: Gaspar Simões caracterizava-o como uma ideia estranha a Portugal, um estrangeirismo importado de Espanha (48). Almeida Faria, associado a Vergílio, que queria limpar o sebo aos ex-camaradas da Vértice, foi também barrocamente carimbado por Portela Filho (49).
Se alguém defendeu uma estética neobarroca em Portugal, foi Tomaz. Numa crónica do seu “Dicionário Falado”, deixou a sua poética:
“Para que o romance português vogue, assim, quanto menos gaste da Língua Portuguesa melhor. Este romance pelintra, magro, defendem-no gordos campeões [alusão a Gaspar Simões]. Ao cabo, e é patusco, ao mesmo passo que se clama pelo Romance Português, que se exige que o haja, também se negam asas ao romancista que à Língua Portuguesa vá buscar o que precisa. Regra a seguir pelo romancista português, se pretende imprimir uns milheiros de exemplares, apurar uns cobres e passar fronteiras: fuja da Língua Portuguesa, e fuja a toque de caixa. Quando acotovele o Dicionário, diga ‘cruzes, canhoto!’ Melhor ainda será, que livra de tentações, salva do condenado ‘barroco’, saber o menos possível de Português. Mal vai ao romancista a quem a vida entranhou pela familiaridade da Língua Portuguesa, que se lhe apercebeu das possibilidades de expressão, que, sentindo-a, dela toda precisa na pintura de relances e de voos. Não deve pretender que até ele suba o leitor; deve, sim, humildemente, descer até às letras gordas do leitor (50).”
Está aqui tudo: simultaneamente a reclamação do barroco para si e o reconhecimento do seu desprestígio; a confiança na pujança da linguagem; o elogio da dificuldade (“Sólo lo difícil es estimulante”, Lezama Lima, 1959); a recusa em cortejar o leitor. A meu ver, uma das maiores desgraças de Tomaz foi a Editorial Verbo não ter reeditado Dom Tanas de Bartanas em 1982 para se aproveitar do êxito de Memorial do Convento, quando o ambiente mental já era receptivo às exigências que fazia ao leitor.
Que é sequer o neobarroco? Um estilo exuberante, a brincadeira da linguagem, o tratar as palavras não como meras unidades de sentido, mas como objectos em posse de corpo e som. É um modo de entender a linguagem enquanto linguagem. É pastiche, paródia, proliferação. É a mistura de géneros e estilos: Dom Tanas é um pastiche do panegírico ibérico; tradicionalmente o panegírico terminava com um poema dedicado ao morto, da autoria ou não do panegirista; mas em vez disso, Dom Tanas termina com um poema satírico, as vinte e quatro oitavas que restam de Tanasíada, escrito no calabouço por um fidalgo delatado por Tanas (à maneira pós-modernista, é a contra-narrativa da narrativa, a voz silenciada pelo Poder). O neobarroco é a desconfiança da capacidade do realismo em retratar a realidade. É o comprazimento do artifício e do preciosismo. O neobarroco propiciou a renascença do romance histórico, e ao pastichar um panegírico Tomaz recriou imaculadamente o estilo, a sintaxe, o léxico, até a ortografia da época, conferindo à narração um sabor arcaico. Houve uma voga disto. Carpentier terá dito a García Márquez que escreveu O Século das Luzes (1962) sem usar palavras que não existissem no século XVII; tão impressionado ficou que tentou fazer o Espanhol de Cem Anos de Solidão evoluir ao longo da narrativa (51). Numa homenagem a Shakespeare, Anthony Burgess imitou o Inglês isabelino em Nothing Like the Sun (1964). Menos dotado, Barth tentou reproduzir o Inglês das colónias americanas pré-independência em The Sot-Weet Factor (1960). Que mais? Sarduy falava em textos que produziam desperdício: o “neobarroco” de um dos mais citados teóricos nos meios universitários engloba tudo o que Real execra como “cultismo”: trocadilhos, antíteses, metáforas excessivas, e se isso produzir obscuridade, bem, não há lei que obrigue o escritor a descer ao nível do leitor. O barroco de Saramago, valha a verdade, é muito aguado, muito homeopático. No capítulo final de Dom Tanas de Barbatanas: O Magnífico e Sem Par, assistimos ao apogeu da exuberância. O Panegirista ergue uma catedral de figuras de estilo:
“Dom Tanas de Barbatanas foi o Dever, a Omnipotência, o Mérito, o Trabalho, o Amor, a Nobreza, a Amizade, a Sabedoria, a Devoção, a Eloquência, a Bondade, a Altura, a Rectidão, a Bravura, a Alegria, a Tolerância, a Audácia, a Naturalidade, a Abnegação, a Sublimação: palavras cujas iniciais, por felicíssimo e decerto providencial acaso, compõem o nome excelso de Dom Tanas de Barbatanas.”
Mas o Panegirista não se fica pelo acróstico: cada qualidade é acompanhada duma explanação: “Dom Tanas de Barbatanas foi o Dever”, “Dom Tanas de Barbatanas foi a Omnipotência”, etc. Isto é um epânodo: listar certas palavras juntas seguidamente e depois separadamente. Geralmente, os epânodos são curtos, como o de Garrett em Viagens na Minha Terra: “Sou sujeito a estas distracções, a este sonhar acordado. Que lhe hei-de eu fazer? Andando, falando, escrevendo, sonho e ando, sonho e falo, sonho e escrevo.” O epânodo de Tomaz ocupa vinte e oito páginas entre “Dom Tanas de Barbatanas foi o Dever” e “Dom Tanas de Barbatanas foi a Sublimação”. A repetição do “Dom Tanas de Barbatanas foi” é também uma anáfora. Mas dentro de cada uma das virtudes explanadas há outras figuras de estilo, especialmente a alusão e a comparação: era da praxe que no final do panegírico o morto glorificado fosse comparado aos maiores nomes da história, e o Panegirista desempenha delirantemente o seu dever:
“Dom Tanas de Barbatanas foi o Mérito.
Foi o mérito absoluto e o mérito relativo quem, na potente cabeça, albergou todos os ramos do saber humano. Pessoa, de bem nascida e de prodigiosamente herdeira de todas as possíveis e imaginárias virtudes, a Humanidade lhe prestou, por essas virtudes, o preito devido, sem que lhe fizesse favor. Pela suma ilustração, pudera ter assubido à cátedra das mais senhoras de si Universidades mundiais, regendo nelas tanto as ciências exactas como as especulativas, da suprema Filosofia e Teologia, da sublime Geometria e Matemática, da encantadora Física e Química, à amabilíssima e agradável literatura, indispensável nas horas vagas. E definiria o critério e o dogma, encontraria a Lei universal e, com ela, Deus. No banho, passaria Arquimedes, alcançando que, se um corpo metido na água se acha extremamente sujo, também a sujidade tem de ser tomada em consideração no peso total do volume. E, debaixo da macieira de Newton, por igual o avançara, resolvendo assisadamente comer a maçã. E, ao perceber que a Terra é que anda e o Sol não, calava-se muito calado e não dizia nada a ninguém, para que lhe não assucedesse o mesmo que a Galileu. E a pólvora, se ainda não inventada, ele a inventaria; e nesse caso sempre se atirava a conquistar o mundo, por saber que nenhum dos seus soldados, cuja vida sempre disse preciosa, levaria uma bacamartada. E compusera mais comovedores Prometeus Acorrentados, Édipos e Efigénias, Ilíadas e Batraquiomaquias. Tirteu, felizmente são das pernas ambas e duas, poetaria, bélico. Pindárico, amaria em odes mais mimosas do que as do Mestre. Épico Peninsular, retomaria a Farsália, por nada o comover Lucano; e originalmente sublimara os de Leónidas, ressurgidos em Numância. Arrependera-se Camões de não ter deixado ir ao fundo Os Lusíadas. E Alonso de Ercila rasgava a Araucânia. Cervantes, por sua vez, retomaria o Quixote, mas chamando-lhe O Tanas, por em Dom Tanas de Barbatanas topar mais alto modelo, com exclusão da Triste Figura. Os Calderons e os Vicentes, desesperados, deitariam ao lume os seus autos. E reconheceria a Vidente de Ávila que nada percebera de Deus. Garcilazos e Bernaldins sentiriam rubescer as orelhas. Gôngora estendera por fim a mão à palmatória, concorde em não ter sido o maior dos poetas. Que poderemos nós excluir? Que autores havidos por imortais salvaremos da segunda queima da Biblioteca da Alexandria? De Dom Tanas de Barbatanas, de quem a já nomeada tragédia Dido em Barbatanas assombrará todas as gentes, diremos que a obra imprimida e mesmo à manuscrita ele conhecia o andamento.”
Recapitulando: acróstico, super-epânodo, anáfora, alusão, comparação, hipérbole obviamente. E, claro, pastiche e paródia do panegírico. O neobarroco é isto.
Ao contrário de Saramago, nos escritos de Tomaz encontram-se referências a Vieira muito cedo; orgulhava-se até de ter ido para Coimbra estudar já com todos os sermões lidos. O primeiro artigo que publicou na imprensa versa a possibilidade de um conto de Eça ter extraído a ideia de Vieira. Citava amiúde História do Futuro. Não foi acidental se, antes de Faria, antes de Agustina, antes de Ruben, Tomaz foi agraciado com o título barroco em 1952, e logo pelo filósofo nacionalista António Quadros, mas não totalmente elogioso:
“Dizíamos antes que a arte de Tomaz de Figueiredo revela o defeito contrário: a abundância, a supervalorização do estilo. Não é senão natural que a memória, neste escritor, traduzindo-se em maravilhada visão de um passado saudoso, segregue um estilo barroco e luxuriante, eloquente e saboroso, vigoroso e pletórico de comovida recordação, de visível ascendência camiliana e fialhesca. O estilo de Tomaz de Figueiredo é dos mais fortes e mais puros da nossa literatura actual – mas o defeito atrás apontado representa de certo modo a vitória da forma sobre o conteúdo e destrói o necessário equilíbrio.”
Além disso, Quadros dizia que Ruben é “patriota e barroco (52)”. Para Quadros, o apanágio do barroco foi Agustina, se calhar porque não é barroca nem dá trabalho a ler. Quadros, como os demais portugueses, realmente não gostava de desmesura verbal.
Há contornos salazaristas no isolamento cultural dum Portugal barroco em relação a uma Europa racionalista; ainda pior é ter-se orgulho nisso. Quando Saramago diz, “Nós já não somos europeus (53)”, isso soa muito à posição de Quadros, António Telmo e Orlando Vitorino, filósofos que procuraram criar um enquadramento que justificasse o Estado Novo intelectualmente. Os anos 60 e 70 coincidiram com uma explosão mundial de estudos sobre o barroco. O Estudios sobre el barroco de Helmut Hatzfeld ia já na 3.ª edição em 1973; dois anos depois saía pelo punho de José Antonio Maravall o La cultura del barroco: análisis de una estructura histórica. Mas os primeiros estudiosos portugueses foram tendencialmente apoiantes da Ditadura, neutros ou esconjurados do neo-realismo.
António Banha de Andrade ganhou um prémio do regime pela biografia Verney e a cultura do seu tempo (1966), o pedagogo que deu mau nome aos “seiscentistas”. António José Saraiva, depois de ter desconchavado os autores palacianos do passado por se terem afastado do povo, quando se afastou dos neo-realistas subitamente descobriu que adorava a oratória de Vieira e dedicou-lhe vários estudos impecáveis, reunidos tardiamente em O discurso engenhoso (1996). Hernâni Cidade, que o diário do ministro Franco Nogueira indica como escritor da Direita (54), foi o compilador de A poesia lírica cultista e conceptista, com edições em 1942, 1958, 1963 e 1968. Além disso, organizou o Padre António Vieira. A Obra e o Homem para a Arcádia (1964). Vítor Manuel de Aguiar e Silva fez o Maneirismo e barroco na poesia lírica portuguesa (1971) e quando recebeu o Prémio Camões 2020 muitos ficaram furibundos por aprender que não foi um lídimo combatente anti-fascista, a que chegou o mundo! A Aníbal Pinto de Castro, autor de Retórica e Teorização Literária em Portugal (1973), um colossal estudo sobre a retórica barroca portuguesa, também deve ter faltado o pendor progressista, visto que foi saneado da Universidade de Coimbra durante o PREC (55). Por fim, Maria de Lourdes Belchior, autora de Frei António das Chagas – um Homem e Um Estilo do Sec. XVIII (1953) e Itinerário Poético de Rodrigues Lobo (1959). Porque ignorava a política, o regime deixou-a desempenhar o cargo de Conselheira Cultural na Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro e presidir ao Instituto de Alta Cultura.
Antes de quase todos, houve António Quadros, assumido salazarista e crente no Quinto Império, que por razões espirituais atribuía valor estético e intelectual ao barroco. Para ele, o Barroco constituía uma das pontes da cultura atlântica que ligaria Portugal e Brasil na criação do futuro Quinto Império. O apreço de Quadros ficou patente na revista Espiral, que dirigiu: no n.º 11/12 (1966) saiu o seu ensaio, “O barroco e o Eldorado (o barroco luso-brasileiro de Minas Gerais)”; no mesmo ano, a Revista de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis (Brasil), publicou-lhe a palestra “O Português e o Barroco (56)”. Quadros foi um dinamizador do Grupo da Filosofia Portuguesa, cujos membros acreditavam que há uma matriz identitária portuguesa eterna e o barroco é indissolúvel dela. Obviamente, tal tese causava repulsa à Esquerda, cosmopolita e internacionalista ideologicamente. Nesta sociedade dividida, Saramago teria que ser muito cuidadoso nas apreciações dum barroco publicamente conotado com a ideologia estado-novista.
Tardiamente, a Esquerda descobriu o Barroco. Um sinal decisivo foi A Experiência do Prodígio (1983) antologia de poesia visual barroca. Ana Hatherly, que a organizou, diria em 1992: “Há uma relação muito íntima entre a Poesia Experimental, a Poesia Visual e o Barroco. O meu percurso no sentido do Barroco começou precisamente pelo Experimentalismo Visual (57)”. Além disso, Hatherly fundou a revista Claro-Escuro, dedicada a estudos barrocos (1988-91). Depois abriram os diques: o Camões no barroco: a crítica camoniana na época barroca (1985), de Maria Lucília Gonçalves Pires, A Oratória Barroca de Vieira (1989) de Margarida Vieira Mendes. Por coincidência, no ano em que saiu Memorial do Convento Natália Correia organizou a Antologia da poesia do período barroco. O pesado, encastoado, filigranado, enrodilhado, perlado barroco voava pelo ar mais do que a passarola algum dia voou. Mas a Esquerda teve de aprender a acomodar um barroco à sua maneira.
Entre 1960 e 1980, o congénere internacional começou a emitir sinais ao progressista lusíada de que podia ser comunista/marxista/socialista e professar uma estética barroca sem parecer retrógrado. Escritores como Lezama Lima, que apoiavam a ditadura castrista, ou Carpentier, embaixador de Castro em Paris, disseminaram a boa nova. Em 1970, o Diário de Lisboa (Saramago ainda não trabalhava lá, mas decerto lê-lo-ia), publicou uma entrevista com Sarduy, onde dissertou com à-vontade sobre o assunto.
Depois, os franceses, que era aonde os Portugueses iam buscar as ideias e os carimbos, apoderaram-se do discurso pró-barroco. Roland Barthes teceu elogios ao romance de Sarduy, Écrit en dansant (1967), o famoso ensaio “A face barroca” que daria origem ao Prazer do Texto. Entretanto, Gérard Genette inseriu “D’un récit baroque” no Figures II (1969). Num rufo, a voga chegou a Portugal: sob o beneplácito do esquerdista Barthes, podias ser progressista e barroco ao mesmo tempo. Mas este lento processo foi entretanto obstado pelo 25 de Abril. Com o triunfo da Esquerda, voltou-se temporariamente ao elogio do primário realismo oitocentista que parecia estar nas últimas; os neos, que desde 1955 andavam em declínio, voltaram a brilhar no papel dos mártires do Estado Novo, recompensados com cerca de seis anos de serem levados a sério como ímpares escritores, os leitores pondo o asco no saco, fingindo que podiam com os livros deles. Mas não dava para voltar atrás, e quando finalmente o escritor se libertou da política, o neobarroco mostrou-se um dos caminhos viáveis a quem não quisesse enveredar pela repetição do realismo convencional.
Apesar de o neobarroco de Saramago ser claramente um derivado da invasão latino-americana (um entrevistador do Jornal do Brasil até o comparou ao Macondo) e da disseminação dos ensaios de Barthes e outros franceses nos anos 60 e 70, ele insistiu que não era influenciado pelos latino-americanos (58). Julgo ter mostrado porque é que isso é muitíssimo improvável. A partir de 1965, a sociedade engasgou-se de notícias sobre os latino-americanos. A imprensa publicou entrevistas a Sarduy, Borges, Miguel Angel Asturias, Cabrera Infante e outros nomes graúdos da América Latina. As traduções dos livros jorravam a rodos. João Palma-Ferreira, tradutor que muito os estimava, organizou um número especial no jornal A Capital intitulado “A Investida Latino-Americana” (59) – Saramago ainda fazia crónicas lá. E não esqueçamos o contributo brasileiro. A editora Livros do Brasil divulgou Guimarães Rosa, acolhido com louvores incríveis de Sena, Casais Monteiro, Óscar Lopes, Alexandre Pinheiro Torres. Ruben A. e Vitorino Nemésio eram admiradores. Lopes recomendou-o para o Prémio Internacional dos Editores (o prémio que fizera Borges famoso mundialmente em 1961). Em 1968, um ano depois de falecer, saiu em Portugal um voluminho em sua homenagem. A prosa de Rosa e a de Saramago denotam idêntica inclinação para léxico arcaico-popular e a estrutura da lista. Levantado do Chão:
“Que os trabalhos de homem são muitos. Já ficaram ditos alguns e outros agora se acrescentam para ilustração geral, que as pessoas da cidade cuidam, em sua ignorância, que é tudo semear e colher, pois muito enganadas vivem se não aprenderem a dizer as palavras todas e a entender o que elas são, ceifar, carregar molhos, gadanhar, debulhar à máquina ou a sangue, malhar o centeio, tapar o palheiro, enfardar a palha ou o feno, malhar o milho, desmontar, espalhar o adubo, semear os cereais, lavrar, cortar, arrotear, cavar o milho, tapar as craveiras, podar, argolar, rabocar, escavar, montear, abrir as covatas para estrume ou bacelo, abrir valas, enxertar as vinhas, tapar a enxertia, sulfatar, carregar as uvas, trabalhar nas adegas, trabalhar nas hortas, cavar a terra para os legumes, varejar a azeitona, trabalhar nos lagares de azeite, tirar cortiça, tosquiar o gado, trabalhar em poços, trabalhar em brocas e barrancos, chacotar a lenha, rechegar, enfornar, terrear, empoar e ensacar, o que aqui vai, santo Deus, de palavras tão bonitas, tão de enriquecer os léxicos, bem-aventurados os que trabalham, e que faria então se nos puséssemos a explicar como se faz cada trabalho e em que época, os instrumentos, os apeiros, e se é obra para homem ou para mulher e porquê. (60)”
Sagarana: (1946; 1.ª edição portuguesa, 1962):
“Alta, sobre a cordilheira de cacundas sinuosas, oscilava a mastreação de chifres. E comprimiam-se os flancos dos mestiços de todas as meias-raças plebeias dos campos-gerais, do Urucuia, dos tombadores do Rio Verde, das reservas baianas, das pradarias de Goiás, das estepes do Jequitinhonha, dos pastos soltos do sertão sem fim. Sós e seus de pelagem, com as cores mais achadas e impossíveis: pretos, fuscos, retintos, gateados, baios, vermelhos, rosilhos, barrosos, alaranjados; castanhos tirando a rubros, pitangas com longes pretos; betados, listados, versicolores; turinos, marchetados com polinésias bizarras; tartarugas variegados; araçás estranhos, com estrias concêntricas no pelame – curvas e zebruras pardo-sujas em fundo verdacento, como cortes de ágata acebolada, grandes nós de madeira lavrada, ou faces talhadas em granito impuro. (61)”
Como este é o tipo de prosa que me enche as medidas, são-me irrelevantes os corgos e azinhagas por que finalmente voltou a Portugal, desde que tenha voltado. Mas a bem da verdade histórica convém registar a relutância da Esquerda em fazer tréguas. Como vimos, Tomaz andava muito despreocupadamente em paz com ela pelo menos 1962.
No entanto, o barroco é um estilo muito exigente, logo não é de espantar o recuo no começo dos anos 90. Foi uma moda, no fundo, sem convicção interior, que encontrou outros adeptos em Mário Cláudio e Mário de Carvalho. Ao princípio, Lobo Antunes também se derretia pela escrita “toda muito carregada de metáforas, eu sinto-a realmente muito barroca (62).” Passada uma década, Saramago começou a enfadar-se com a anterior obsessão, julgando estar a assistir desde Ensaio sobre a Cegueira “a uma espécie de ressimplificação. Hoje verifico que há como que uma recusa minha de qualquer coisa em que eu me divertia, que era uma espécie de barroquismo, qualquer coisa que eu não conduzia, mas que de certo modo me levava a mim”, mas ultimamente sentia “uma necessidade maior de clareza (63).” Curiosamente, em 1999 dizia Lobo Antunes acerca de Exortação aos Crocodilos: “O livro continua barroco, mas o barroquismo reside agora na arquitectura, porque a frase é despojada, de um rigor austero (64).” E dizem que são o Egas e Becas das Letras Lusas! Floreios nacionalistas à parte, os portugueses não gostam do barroco, são molecularmente anti-retóricos. Em tempos, também Almeida Faria prometeu muito, mas de livro em livro foi-se descarnando até decair no heroicamente desenxabido O Conquistador, exercício de escrita criativa de primeiro ano possuído da sintaxe e léxico de escola primária.
Tomaz procedeu ao contrário: começou com contos simples, mas livro a livro foi-se tornando mais arrebicado, mais complexo, mais obscuro. Dom Tanas de Barbatanas foi o apogeu, mas os romances posteriores, Noite das Oliveiras, A Má Estrela, a póstuma novela A Túnica de Nesso mostram a intransigência com o simplismo que grassava nos contemporâneos. É-me incompreensível que a maioria dos leitores portugueses continue a desconhecer prosa assim tão bela:
“Tem-me custado a morrer. O tempo, comigo, custa-lhe a levar a melhor, e até hoje ainda não levou. Ponho-me a pino com ele. Reponto-lhe, desafio-o para a pancada. Há-de vencer, mas devagar. Chega um perfume, para que o vença. E um pássaro no beiral, o redondo loiro de uma nuvem, a baeta dum reposteiro, a chita duma colcha, uma xícara, o aço dum espelho que a humidade enfoscou, o quadro que sempre tende para entortar num papel de parede com uma pastorinha a fiar e ovelhas, e nem te falo em retratos. O timbre dum copo de cristal! O macio dum veludo! O oxidado duma espingarda! O cheiro duma pinha a assar à lareira, o dum jasmim-do-cabo! O rosado duma cereja, dum morango! Um rio: o meu rio! O que haverá, o que hás-de encontrar, para deitar fora, de recordações minhas, de que eu e mais ninguém sabe o significado, depois de eu morrer! Não queimes logo tudo, meu filho. Vê, primeiro, bem. Entre tantos jornais amarelos, entre tantas cartas delidas, tanta papelada, algum papelinho seria pena. Em tantos versos que deixo, nalgum teria sido poeta. E, em cada gaveta, ou entre as folhas dalgum livro, uma fotografia de tua mãe… Há – e já to mostrei, no escaninho duma prateleira – um botão de rosa que esteve na mão do cadáver de tua mãe. Não me ter ficado no gravador a voz da tua mãe! Que evidência viva, a da voz! A de uma fonte! (65)”
Dom Tanas de Barbatanas é também um romance histórico, por isso passemos a outro ponto.
5) O romance histórico metaficcional
“Em Portugal,” conta Real, “após a utilização propagandística do romance histórico por via de uma atmosfera ideológica de exaltação nacionalista durante o Estado Novo, esse tipo de romance ressurgiu com fortíssima pujança desde inícios da década de 80, porventura devido à necessidade de aprofundamento da compreensão da identidade nacional em pleno luto pela perda do Império, em 1975, após mais de quinhentos anos sob uma representação ideológica imperial.” Para variar, este relato está correcto, mas o descrédito antecedeu o Estado Novo. Sendo uma invenção do Romantismo, o romance histórico foi atacado pelos realistas por não corresponder às suas directrizes: retratar a realidade visível contemporânea. O romancista era um repórter, observava a sociedade arredor. Como podia ser “real” o passado remoto? Em 1888, Moniz Barreto chamou-lhe “género falso” porque afastava o romance do “seu verdadeiro terreno, a pintura dos costumes e dos caracteres sob o nome de romance analítico (66).” Idêntica opinião emitiram Sampaio Bruno e Gaspar Simões. Em 1940, Raul Sequeira falou pelos neos: “O neo-realismo transforma todo o romance em romance histórico. O romance que tem por objecto o passado não se distingue do romance que tem por objecto o presente, porque o objecto do romance é sempre a realidade social (67).” Curiosamente, por volta de 1984 Leonor Xavier terá ouvido Saramago dizendo que, “afinal, não há romance que não seja histórico, porque nada há fora da História (68)”. As conclusões, porém, não podiam ser mais díspares: ao passo que Saramago entendia que nesse caso o passado era pelouro do romancista, Sequeira realmente queria retirar ao romance histórico qualquer razão de ser: “Com o neo-realismo, o romance é hoje o que um escritor do século XIX queria que ele fosse: ‘um espelho que se passeava ao longo de um caminho (69).’”
Tirando Aquilino, os contemporâneos de Tomaz não tocaram no romance histórico. O romancista responsável e amadurecido não inventava, reportava a realidade que recolhia pelas retinas adentro. O feroz Gaspar Simões, de férula na mão, não deixou dúvidas quanto a isso. Em 1936, descompôs o romance histórico, que encantava graças a pormenores exóticos e façanhas heróicas: “O homem comum desinteressou-se do passado. Visto que a história já não lhe contava lendas e façanhas, alguma coisa deveria suprir a sua curiosidade insatisfeita.” Por exclusão de partes, restava o realismo: “O romance era bem o género que lhe convinha. Porque já não há heróis, dispensa a epopeia; o poema fatiga-o. Tem a imaginação cansada; a alma, em contacto com uma vida muito positiva, perdeu a faculdade de maravilhar; é o dia a dia que o arrebata, a luta das paixões, o homem em contacto com o próprio homem. Não se explica de outra maneira o aparecimento, no decurso de um mesmo século – o XIX – de um Balzac, de um Tolstoi, de um Stendhal, de um Dickens, de um Dostoiévski – verdadeiros criadores do romance moderno.” Isto é um chorrilho de tolices: os romances histórico e de aventuras nunca perderam favor junto do público. O tal homem comum de imaginação cansada e que perdeu a faculdade de maravilhar foi o mesmo que trinta anos depois fez de Cem Anos de Solidão um êxito planetário. Os intelectuais é que os desprezavam. Nesta clivagem, o realismo tornou-se apanágio do leitor “sério” e “inteligente” e o romance histórico juntou-se à “literatura ligeira” consumida por um estereotipado leitor boçal.
Contudo, a partir do pós-guerra houve um gotejar tímido de obras que anunciam as características do Novo Romance Histórico (NRH) de cariz metaficcional, isto é, um romance que não se limita a reconstruir o passado como uma versão verdadeira dos eventos, mas que critica a ideia de que é possível contar a verdade histórica, pois a história e a ficção são o mesmo, a História oficial é a versão dos vencedores. O NRH apareceu em todo o lado: The Sot-Weed Factor (1960), A Amante do Tenente Francês, de John Fowles (1969), Concerto Barroco (1974) e A Harpa e a Sombra (1979), Terra Nostra (1977), cujo enredo sobre a construção do Escorial de Filipe II de Espanha lembra a construção no Memorial do Convento. Em A Ilha dos Jacintos Cortados (1981), Gonzalo Torrente Ballester faz um protagonista viajar ao passado para provar que Napoleão nunca existiu, foi inventado por vários estadistas do século XIX (tese aliás satiricamente explorada por Richard Whately em 1819). A desmistificação da história interessava a GTB desde o segundo romance, El Golpe de Estado de Guadalupe Limón (1946), em que os eventos duma revolução são narrados incluindo as mitificações e deturpações populares posteriores.
Segundo Real, o NRH assenta na “reconstrução histórica do espaço social e do tempo humano” em vez de “reconstituição histórica”. Assume-se como “subversor da própria História”. Noutra ocasião diz que expandiu as possibilidades, “inventando factos historicamente inexistentes mas que, na lógica da realidade social do tempo, poderiam ter acontecido” Isto não é exactamente tão radical quanto parece: até um romance histórico oitocentista tinha de inventar, pelo menos personagens e enredo em redor de factos oficiais. Aventura Maravilhosa inventa acontecimentos inexistentes que a história oficial não pode contestar por causa de zonas sombrias do conhecimento: como ninguém sabe ao certo o que aconteceu ao rei D. Sebastião após a batalha de Alcácer-Quibir, Aquilino pôde descansadamente mandá-lo em penitência pelo mundo, em aventuras picarescas com piratas e princesas e raptos, antes de o fazer voltar à Ibéria para exigir a Filipe I que lhe devolva a coroa, ficando subentendido que espanhol o vai mandar assassinar para reter o poder. Na tal lógica da realidade social do tempo, se calhar foi o que aconteceu, quem sabe.
No entanto, Aquilino não questionou a versão oficial, apenas preencheu lacunas para efabular uma aventura nas suas entrelinhas. No seu relato, a história redunda no conhecido desenlace: Filipe II de Espanha torna-se o I de Portugal, etc. Mas o NRH mina a versão autoritária e implementa estratégias que nos fazem ver a construção do discurso histórico enquanto ficção. Várias técnicas atingem esse fim: em The Sot-Weed Factor, são citados fragmentos dum diário secreto do lendário Capitão John Smith, que relata a colonização dos EUA com mais sangue. Há a técnica dos anacronismos deliberados: no Flight to Canada (1976), de Ishmael Reed, o tempo da Guerra Civil Americana é contemporâneo da televisão, da rádio, do avião e do helicóptero. Foi muito usado o recurso a um narrador infiável, que tanto pode ser um narrador-personagem ou no caso de Saramago um narrador identificado com o próprio autor. O meio importa menos do que o fim: fazer o leitor entrever a História enquanto discurso construído e parcial. Em Portugal, a tese de que a História é um discurso criado pelos poderosos a que o escritor deve resistir com uma contra-História dos fracos e sem voz, ganhou popularidade graças a pensadores franceses: Barthes dizia que a linguagem veicula a ideologia das classes dirigentes; e para Foucault, só há relações de poder entre os indivíduos.
O NRH começou por surgir sob a capa de alegoria: O Físico Prodigioso (1966) passa-se num Idade Medieval esbatida que permitiu a Sena criticar Salazar através do inquisidor Frei Antão de Salzburgo. Em A Torre da Barbela (1965), Ruben juntou os membros imortais da família Barbela de vários períodos, divertindo-se com os anacronismos resultantes dos choques de mentalidades antiquadas e às avessas de aspectos do mundo moderno, alegoria dum país parado no tempo. “Em Levantado do Chão, a verdade histórica é envolvida e iluminada pela ficção narrativa”, diz Real, mas alguns portugueses sabiam-no há uns vinte anos.
Em 1946, à beira de publicar A Toca do Lobo, até Tomaz afirmou que “o género era falso, até nas unhas do pai Scott (70)”. Este repúdio em sintonia com a opinião popular torna mais empolgante a viragem para o romance histórico metaficcional com Procissão dos Defuntos (1954). Mas Dom Tanas de Barbatanas é um exemplo melhor. Através da alegoria, transpôs o Estado Novo e Salazar para o governo do Marquês de Pombal. Tomaz optou por um narrador posterior aos eventos, relatando-os a partir de documentos e testemunhos; mas depressa fica estabelecido que este narrador sem nome a quem o trato por Panegirista é muito suspeito e parcial. O pastiche do género dá uma pista sobre as suas motivações: a estrutura do panegírico ibérico seiscentista não mudou substancialmente desde o tempo dos romanos. A função do panegírico é elogiar um morto, engrandecê-lo. Segundo os preceitos da retórica antiga, o panegirista era até obrigado a deformar a história caso contar a verdade desfavorecesse o panegirando. Não lhe competia fazer história, mas competir com ela. O panegirando tem que ser comparado favoravelmente aos epítomes e superá-los até. O panegírico não é a biografia sem as partes mesquinhas ou desagradáveis, é uma fantasia sem biografia: “Dom Tanas, se formos a ver, antes de existir já existia, porque reclamava o equilíbrio da humanidade e a consciência dela toda que existisse; e deve ser acomparado, nos domínios do saber, a um Messias simbólico.”
Isto produz ocasiões excelentes para o choque entre a mentira e a verdade:
“A vida de Dom Tanas, se por uma banda é luminosa, também pela outra é escuríssima, e somente um historiador futuro e sem paixão e admiração por ele, possível daqui a uns dous ou dous mil e quinhentos anos, porque ainda não é certo, dela poderá colher e aproveitar algum facto que seja limpo, tintim por tintim surgindo nesse dia na verdadeira proporção e grandeza que por enquanto se lhe não enxerga (71).”
O Panegirista não quer esperar dois mil anos, porém, por isso começa já a glorificação. Fica subentendido que trabalha a soldo do filho de Tanas, Dom Badanas (já agora, para amantes de aliteração, antes de Baltasar, Blimunda e Bartolomeu houve Barbatanas, Badanas, a prima Branca com quem tem um caso, a esposa Belisária, os antepassados Dona Basilissa e Dom Bertoldo: a aliteração dos nomes era comum em romanços de cavalaria, pormenor que não escapou à enciclopédia de toda a ficção ibérica que foi Tomaz – não podes ser perito em pastiches se não souberes a história do que estás a pastichar). Claro que o Panegirista se assume como imparcial, mas a sua imparcialidade está comprometida e o contraste constante entre a baixeza das acções de Tanas e a interpretação enobrecedora que lhes confere não deixa dúvidas quanto ao cepticismo que Tomaz quer provocar no leitor sobre a veracidade do registo histórico.
O relato é duvidoso porque a principal fonte são os próprios Tanas, gente claramente falsa: “Contra a força não há resistência, ao que afirmam severos filósofos, tanto como estulto seria sequer duvidar-se do sangue azul dos Barbatanas, afiançado dos Barbatanas que nunca mentem, excepto se lhes convém, o que até à data ainda não se deu (72).” O romance inculca dúvidas quanto à nobreza dos Tanas: a dada altura, Tanas é interpelado por um guarda por andar de espada ao cinto, privilégio que só os nobres possuem; quando responde que ele é de nobre família, o guarda afirma nunca ter ouvido falar desse apelido.
A dúvida quanto à veracidade do relato histórico é também induzida pela confissão de que há lacunas no registo:
“Muito esclarecido e honrado rico-homem da corte de um rei que não se sabe foi Dom Matias Come-Gente, alcaide proverbialmente invicto, por suas armas, da nunca entrada e hoje arrasada praça de Além-Touro, cuja exacta situação procuram determinar os que da História se ocupam (73)”.
Outro antepassado também está envolto em dúvidas:
“De feição também acomparável à do rei escocês, dormia descuidada a hoste de Dom Fuas, o qual e sem parança parecia ter bichos-carpinteiros em buscar-se ardorosas pelejas, como Barbatanas que era, sem que todavia e até hoje possível haja sido clear que inimigos profligava, se moiriscos ou cristãos, se filisteus e nos tempos bíblicos, se hereges de Calvino, hipóteses todas verosímeis (74).”
Tomaz usou ainda o anacronismo oculto. Saramago usava anacronismos, como chamar “aeronave” à passarola, às claras, para acentuar a estranheza. Mas Tomaz já usara essa técnica em Procissão dos Defuntos e não gostava de se repetir de livro para livro. Mais discretamente, alterou a ordem de eventos verdadeiros para testar a atenção do leitor. No relato, Tanas completa parte dos estudos no Real Colégio dos Nobres, aberto por Pombal para formar quadros entre a nobreza. Os estudos são relatados em O Doutor Geral; no segundo volume, O Magnífico e sem Par (1964), já completos os estudos, dá-se de seguida o Terramoto de Lisboa de 1755 (o Panegirista atribui a Tanas a famosa frase de Pombal: “O preciso é enterrar os mortos, se morreram, e cuidar dos vivos, se ainda vivem.”). Esta ordem de eventos é incongruente porque o Real Colégio dos Nobres só abriu em 1761, após o Terramoto; aliás, o local outrora serviu o Colégio de Santo Antão, vago após a expulsão dos Jesuítas em 1759. Tomaz sabia-o: além de ser estudante da história pátria (como todo o monárquico assisado) e de conhecer bem o reinado de Pombal, por quem não nutria amores (como todo o monárquico ressabiado), estudou num colégio jesuíta dirigido por um tio que foi figura cimeira da história jesuíta do século XX.
À época, nenhum resenhista deu por estes anacronismos, provando que a “história” é apenas uma narrativa na qual acreditamos acriticamente se relatada por uma figura de autor-idade. Devemos dar um desconto aos desatentos resenhistas; é que ainda não estavam treinados para duvidar da honestidade do narrador ou do autor. Se, como a opinião popular dizia, o romance era um relatório verdadeiro da realidade, o tal espelho subindo a rua, reflectindo sem deformar, então era preciso um romancista ser muito infantil, abandonar-se a requintes de malvadez, ter muito mau gosto para ludibriar leitores de boa-fé com joguinhos frívolos. Sim, Tomaz exerceu a coragem do mau gosto sem o qual nenhuma forma de arte muda antes de isso ser popular. Ao criar o Panegirista, um dos mais extraordinários narradores do romance português de sempre, Tomaz fez sem saber o que Wayne C. Booth baptizou de unreliable narrator e que eu traduzi como “narrador infiável”: um narrador que não conta a verdade, que nos obriga a ler activamente, cepticamente, interpretando, duvidando, procura nas entrelinhas pistas de intenções secretas. Um ano antes, Booth nomeou esta técnica no já clássico A Retórica da Ficção porque desde o pós-guerra que estava a alastrar pela ficção como formigas à volta duma pastilha. O narrador infiável sempre existiu, nos anos 30 Nabokov já o usava regularmente, mas a sua maciça utilização num tão curto espaço de tempo depois da II Guerra Mundial finalmente forçou os críticos a isolar este fenómeno para aprofundar o seu estudo. Rapidamente, tornou-se uma das características principais da ficção pós-modernista. Chegou a ser tão popular que os primeiros ensaios sobre o pós-modernismo, como Partial Magic: The Novel as a Self-Conscious Genre (1975), de Robert Alter, o Narcissistic Narrative: The Metafictional Paradox (1980), de Linda Hutcheon, The Metafictional Muse (1982), de Larry McCaffery, praticamente não deslargam esta técnica.
A ficção pós-modernista desconfia da certeza e transparência do narrador realista. Houve até um renascimento da picaresca no pós-guerra porque o pícaro é tradicionalmente um intrujão que usa astúcia e lábia para se desenrascar de sarilhos. Foi por isso que Camilo José Cela retornou ao Lazarilho de Tormes em Nuevas andanzas y desventuras de Lazarillo de Tormes (1944) e que o romance final e inacabado de Thomas Mann é As Confissões de Félix Krull, um trapaceiro. Mas já não bastava o honesto relato de como buscões burlam outras personagens; o alvo tornou o próprio leitor. Revoltando-se contra os antepassados, a nova safra de autores deleitou-se com narradores mentirosos, ambíguos, manipuladores: o Humbert Humbert de Lolita, o Charles Kinbote de Fogo Pálido, o Hermann Karlovich de Desespero, o misterioso homem do Dom Juan de GTB que pode ser ou não o verdadeiro Dom Juan, o Ronnie Sukenick que no final de Up admite estar a inventar factos sobre a própria vida. Tomaz estava no centro desta fascinante evolução do romance.
Contudo, embora o narrador infiável seja deveras útil no NRH para minar a autoridade do relato, numa ficção histórica anterior Tomaz usou outras técnicas hoje em dia associadas a Saramago. Que é o narrador saramaguiano?
6) O Narrador Metaficcional
É um narrador que se assume como o próprio autor, livre do tempo do relato, deambulando acima dos eventos, usando o ponto do presente como uma omnisciência que interliga passado e presente abruptamente e por vezes parecer fazer futurologia. Embora eu nunca tenha visto outrem a usar esta técnica exactamente como Saramago, no essencial é o usual narrador metaficcional auto-consciente de que está dentro duma obra de ficção. Muito antes, outros ficcionistas já tinham usado o anacronismo surpreendente para derrubar a barreira ente passado e presente. Em A Amante do Tenente Francês, um narrador classicamente ausente, após cem páginas normais, do nada põe-se a falar de Alain Robbe-Grillet, uma incongruência em relação à Inglaterra vitoriana até então afanosamente reconstruída. Em Concerto Barroco, Carpentier permite que a estreia da ópera de Antonio Vivaldi, Motezuma (1733), seja assistida por Wagner, Stravinski e Louis Armstrong. Este anacronismo, que implica misturar elementos de tempos diferentes no mesmo plano temporal (ou frase, que em literatura é o mesmo), fora também usado por García Márquez, que em O Outono do Patriarca põe as caravelas de Colombo ancoradas ao lado dos navios de guerra dos EUA, como se eventos separados por 500 anos fossem contíguos (Lobo Antunes reusou esta imagem em As Naus). O famoso dito de Saramago, “o tempo é todo um”, que tanto impressionou Marcelo G. Oliveira e Real, é afinal tão-só outra característica que andava no ar e que provavelmente foi buscar aos latino-americanos que insistia não o terem influenciado. Ou talvez até paragens mais próximas. Talvez eu esteja a ver mais do que está lá, mas não dá para ler a frase de Saramago, “Auschwitz ao lado de Homero, por exemplo; ou o homem de Neandertal ao lado da Capela Sistina”, sem pensar no romance de Gonzalo Torrente Ballester, A Saga/Fuga de J.B.. Embora passado na era presente, o enredo faz digressões no passado e há até uma conversa entre dois homens das cavernas, um deles pintor rupestre, muito cioso da sua arte. A meio da conversa lê-se o que é para mim uma das maiores frases da história do romance: “Todos desprezam o realismo do paleolítico superior. Dizem que é uma arte ultrapassada.” Ficou-me gravada na mente e socorro-me dela quando preciso de me lembrar de que a ficção não impõe limites à imaginação. Tendo em conta que Saramago era fã de GTB e até assinou o prefácio da tradução francesa, pergunto-me se a sua justaposição da Capela Sistina e do Cro-Magnon não será um vestígio desta passagem. Mas é mera especulação, estas justaposições temporais caracterizam toda um período,
Tomaz também acreditava que o tempo é todo um, a pontuação que inventou para A Toca do Lobo foi justamente uma tentativa de pôr no mesmo plano frásico o presente de Diogo Coutinho e o passado relembrado, sem distinções nem distâncias. Foi precisamente por ser um nostálgico lírico fascinado pelo tempo (“O tempo, comigo, custa-lhe a levar a melhor, e até hoje ainda não levou.”), que chegou mais cedo do que os compatriotas à compreensão de que o passado é essencialmente um construto subjectivo que só existe na mente, ou seja, no presente. O que hoje em dia nos parece uma obviedade, porém, em tempos esteve vedado a escritores por razões políticas. É precisa outra reconstrução arqueológica para fazer o leitor moderno perceber os constrangimentos à criatividade dependendo da inclinação política do autor. À Esquerda, o autor professaria o positivismo ou o racionalismo, acreditaria na objectividade, para ele só existia o tempo mecânico do relógio, linear e unidireccional, e qualquer ideia com um travo de misticismo apontava às trevas do obscurantismo. Os “filósofos do tempo” eram literalmente acusados de barbaridades, com o ainda neo-realista Vergílio explicando em 1948 que Hitler só chegou ao poder porque o ambiente social foi preparado pelo “irracionalismo com todas as variantes de Bergson, Husserl ou Heidegger (um grande da cultura nazi…)”. Só para assegurar que estamos alinhados, leitor, este é o mesmo Heidegger de que seria um fiel divulgador assim que abandonasse o neo-realismo. Filosoficamente, o progressista batia-se pelo materialismo, a crença de que o pensamento tem origem material, por oposição ao execrando idealismo, segundo o qual a mente cria a realidade. O idealismo incomodava o progressista porque via nele um subterfúgio para a religião regressar ao mundo moderno depois de expelida pela ciência. Literariamente, porém, o idealismo fertilizou o modernismo, foram os grandes modernistas, Proust, Joyce, Woolf, Faulkner, quem praticamente descobriu o Tempo enquanto tema literário e mostrou que o tempo mecânico é uma forma falsa de percepção. Na Europa, estava no pico o interesse pela filosofia idealista de Bergson, que visiona a mente como um agente dinâmico e divagante perpetuamente moldando um tempo pessoal de plasticina:
“O que realmente percepcionamos é uma certa espessura de duração que consiste em duas partes: o nosso passado imediato e o nosso futuro iminente. Neste passado estamo-nos apoiando, neste futuro estamo-nos inclinando; apoiar-se e inclinar-se dessa maneira é característico de um ser consciente. Então, digamos, se quiserem, que a consciência é um elo entre o que foi e o que será, uma ponte lançada entre o passado e o futuro.”
Como ninguém prevê o futuro, os modernistas focaram-se exclusivamente em apreender o passado do protagonista, suscitando as futuras condenações de evasão ou ensimesmamento. A Esquerda revolucionária não podia nem queria dar Prousts nem Woolfs porque agia em prol dum futuro colectivo. Para os neos, o tempo progridia linearmente e culminaria num futuro triunfante, mas o importante é a acção no presente que o produzirá. Os seus ataques a Bergson são demasiados para enumerar, mas se queres, impaciente leitor, uma introdução rápida ao que pensavam de Bergson, remeto-te para um artigo de Pinheiro Torres de 1963. Dom Tanas saíra há um ano, era nesta sociedade que Tomaz estava a tentar fazer o romance evoluir. Tal como há vestígios e ecos e afinidades com Bergson em Proust, Joyce, Woolf e Nabokov, há-os em Tomaz, Ruben, Vergílio e Agustina. Novamente, o progresso literário deveu-se ou à Direita ou a uma Esquerda anti-neo-realista. Para Tomaz, era fácil explorar terreno que aos neos estava ideologicamente vedado: era nostálgico, suspirava por uma mitificada monarquia, era católico, tinha uma veia espiritual acentuada, acreditava naturalmente num mundo invisível e inexplicável pela ciência, criticava o cartesianismo desde 1946, em suma vivia virado para o passado. Paradoxalmente, Tomaz foi pioneiro na ficção porque foi antiquado nas crenças. O tempo é o tema central de A Toca do Lobo: o tempo passado, o modificado, o que poderia ter sido. Chegou demasiado tarde “o tempo é todo um” de Saramago para ter qualquer impacto. Se o tivesse proclamado em 1947, ou 1954, ou 1962, afrontando uma opinião pública altamente hostil ao idealismo, bergsonismo e a qualquer vestígio de misticismo nas artes, isso teria sido corajoso e pioneiro. Mas depois dos modernistas e da primeira vaga pós-modernista é tão cómico como alguém hoje em dia se achar controverso por se opor à escravatura. Atenção: Saramago, lido nos precursores, nunca insistiu que a sua concepção do tempo fosse pioneira, são Marcelo Oliveira e Miguel Real que a tentam caracterizar assim, produzindo má história literária como resultado.
Que tem isto que ver com anacronismos e narradores auto-conscientes do seu estatuto ficcional? Procissão dos Defuntos usou o narrador saramaguiano uns 40 anos antes. Não digo que o inventou, este tipo de narrador é mui velho e venerando. No ensaio A Estátua e a Pedra, Saramago caracterizou a sua arte poética demarcando-se dos romances históricos de Alexandre Herculano, os quais são “tentativas de reconstituição de uma época e mentalidade determinadas, sem qualquer intromissão do presente”, “onde o autor finge ignorar o seu tempo para colocar-se no momento do Passado que pretende reconstituir (75)”. Na carreira de todos os escritores aclamados em vida como extraordinários há uma fase em que começam a acreditar no próprio mito. Depois de muito incensado, é fácil acreditares que trouxeste algo de novo à ficção, especialmente se obnubilares os antepassados. Por exemplo, reduzes o romance histórico a Herculano e calas-te a respeito de Almeida Garrett. Mas O Arco de Santana, passado no reinado de D. Pedro (1357-67), é o Viagens na Minha Terra se Viagens fosse um romance histórico. Tens o mesmo narrador, divagante, parodiando clichés, fazendo montes de referências anacrónicas sem sentido para os eventos relatados no passado: “É essa espécie que os modernos Rabelais designam hoje pela tão característica denominação – l’épicier: espécie rara dantes, mas que actualmente constitui a maioria das grandes cidades, dos grandes focos de população civilizada.”
Queres ver alguém a brincar com os lugares-comuns do romance histórico?
Que não era o paço do bispo do Porto, no tempo de el-rei D. Pedro em que isto se passa, o que hoje é no tempo do duque D. Pedro em que se conta, já o leitor está esperando ouvir. E mais esperará ele decerto, que é uma descrição, em todas as regras d’arte, do palácio como ele era, com uma sapiente dissertação sobre os diversos géneros de arquitectura gótica, a algum dos quais forçosamente havia de pertencer – que é gótico por força todo o palácio de romance ou novela antiga – inda que o construíssem os Abencerrages de Granada ou el-rei a Almansor de Vila-Nova.
Queres a mensagem de que é espúria a autoridade dos historiadores?
E bem pudera eu agora, amigo leitor, fazer-te aqui pomposa resenha dos pergaminhos que revolvi no cartório da nossa câmara, do censual do cabido cuja letra quadrada soletrei, e dar-te mil outras provas de fácil erudição com que te secaria de morte, sem nenhum proveito meu nem teu, e o que mais é, da nossa história. Contenta-te pois, assim como eu me contento, com a autoridade irrefragável do nosso manuscrito. E que se livre alguém de o atacar, por que já temos apalavradas para uma tremenda defesa as eruditas colunas de três jornais literários que ninguém lê, e de outros tantos jornais políticos que todos lêem – quando lhes faz conta.
O fabuloso narrador de Santana foi analisado magistralmente por Maria Fernanda de Abreu em Cervantes no Romantismo Português. A total ausência de cotejo dos estilos de Saramago e de Garrett é um dos mais burlescos falhanços da biografia de Miguel Real.
Adoro o narrador temporalmente desancorado de Saramago, indo aonde lhe apetecer. Plana livremente, julga o sucedido duma posição no presente. “De certo,” diz Real, “o narrador identifica-se como uma espécie de cruzamento teórico e prático entre vox populi, vox historii e consciência moral individual (o daimon socrático), que lhe permite (ao narrador) tanto descrever o acontecimento, como julgá-lo, quanto, ainda, inscrevê-lo numa ordem histórica segundo o pressuposto dum futuro prenunciado.” Penso compreender o seu raciocínio e até simpatizo com ele, mas “futuro” é somente o presente do autor. Um autor pode saber mais do que um narrador, mas um narrador não consegue prever mais do que um autor. O que eu julgo empolgante, retoricamente, neste narrador é o Saramago às vezes lhe coarctar a omnisciência acerca do presente para o pôr a fazer profecias da perspectiva de alguém limitado ao conhecimento do passado. Isto vai para lá de anacronismos como chamar “aeroporto” ao local onde a passarola aterra. “Já antes tinha inspeccionado o interior da passarola, descendo por uma abertura do convés, escotilha desta nave aérea, ou aeronave, nome facilmente formável no futuro, quando for preciso (76).” É claro que o narrador de 1982 sabe que um dia se chamarão aeronaves, não é exactamente o Nostradamo. Como O Ano da Morte de Ricardo Reis foi o meu primeiro Saramago, e eu era um leitor mais inexperiente, há uma cena que me perdura na memória:
“Lembra-se de que Lídia esta grávida, de um menino, segundo ela de cada vez afirma, e esse menino crescerá e irá para as guerras que se preparam, ainda é cedo para as de hoje, mas outras se preparam, repito, há sempre um depois para a guerra seguinte, façamos as contas, virá ao mundo lá para Março do ano que vem, se lhe pusermos a idade aproximada em que à guerra se vai, vinte e três, vinte e quatro anos, que guerra teremos nós em mil novecentos e sessenta e um, e onde, e porquê, em que abandonados plainos, com os olhos da imaginação, mas não sua, vê-o Ricardo Reis de balas trespassado, moreno e pálido como é seu pai, menino só da sua mãe porque o mesmo pai o não perfilhará (77).”
Em tempos, achei-a incrível, encantadora, uma amostra da absoluta liberdade da ficção. Ainda a estimo muito, mas hoje me dia o que retoricamente me fascina é o funcionamento da técnica: isto é uma “profecia” porque o narrador de repente fingiu esquecer-se de que é o autor em 1984, contrariando a posição de Saramago de que autor e narrador são o mesmo. Na verdade, o narrador saramaguiano é idêntico ao narrador metaficcional de tanta ficção pós-modernista. José Donoso já escrevia à Saramago em Casa de Campo (1978), ou se calhar Saramago escrevia à Donoso: Real menciona uma passagem em que o biografado analisa a obra do seu congénere chileno, mas não tira as devidas inferências.
Metaficção é simplesmente ficção ciente do seu estatuto ficcional. Em vez do narrador realista que reporta o real, este narrador sabe que está a fabricar uma ficção. Essa perspicácia confere-lhe a liberdade para divagar para assuntos extrâneos ao enredo, intrometer-se na vida das personagens e comentar o processo de construção do texto. O narrador-enquanto-autor foi até um lugar-comum do pós-modernismo, que tentou exterminar o narrador objectivo. Encontramos um Ronnie Sukenick a narrar o Up (1968), de Ronald Sukenick. Em Fragmentos do Apocalipse (1977), Torrente Ballester não esconde que é ele o narrador: estando dentro dum livro do qual é criador, portanto Deus, GTB compraz-se a demonstrar superpoderes como o voo, e trava amizade com um dragão. É fabuloso.
Em Portugal, pelo menos três narradores antes de Saramago se identificaram como autores: um é o autor-narrador de O Delfim, que numa nota de rodapé informa ter escrito O Anjo Ancorado (1958), que sabemos ser da autoria de Cardoso Pires. Em 1843, o narrador de Viagens na Minha Terra lista as obras que já escreveu, e são os títulos do próprio Garrett:
Já me disseram que eu tinha o génio frade, que não podia fazer conto, drama, romance sem lhe meter o meu fradinho.
O Camões tem um frade, Frei José Índio;
A Dona Branca três, Frei Soeiro, Frei Lopo e San’-Frei Gil—faz quatro;
A Adozinda tem um ermitão, espécie de frade—cinco;
Gil-Vicente tem outro—isto é, verdadeiramente não tem senão meio frade, que é André de Rezende, demais a mais, pessoa muda—cinco e meio;
O Alfageme três quartos do frade, Froilão-Dias, chibato da ordem de Malta—seis frades e um quarto;
Em Frei Luiz de Sousa tudo são frades: vale bem n’esta computação, os seus três, quatro, meia dúzia de frades—são já doze e quarto:
Alguns, não eu, querem meter nesta conta o Arco-de-Sant’Anna, em que há bem dous frades e um leigo:
E aqui tenho eu às costas nada menos de quinze frades e quarto.
Com este Frei Diniz é um convento inteiro.
Pelo meio houve duas novelas que Tomaz publicou na imprensa nos anos 40. Em “A Bruxa” (1945), o narrador, um romancista, faz alusão a outro conto de Tomaz publicado em 1934 no semanário Fradique (78).
Em 1942, iniciou uma novela, “A Casa da Cobra”, onde subverteu pela primeira vez o narrador realista omnisciente mas ausente, ressuscitando o de Garrett e Camilo e antecipando-se a Saramago. A novela veio depois a constituir a segunda parte de Procissão dos Defuntos. Acrescentou-lhe a primeira parte, “Insónia”, relatada no registo realista por que Tomaz era conhecido, na minha opinião para baixar as defesas do leitor antes do momento maravilhoso da página 106:
“O desfiar desta mui verídica e acontecida história vai a tomar tal correr, que ao narrador lhe dá agora para nela meter bico, atentando contra os cânones da objectividade e seguintes.
Não sabe que é! O estilo atrás do assunto, o cálamo empós do estilo, a nascer-lhe uma procaz sucessão de maneiras e dizeres obsoletos, e termos que o leitor quiçá deixou de o ser.
O assunto, enfim, de rançoso, o parece pedir, e nem porventura a quem estende a massa tocará grande culpa, só a tendo por não deixar que em paz e humidade se esfarelem os autos donde o colhe e outros alfarrábios.
Desenfadadamente aqui lhe deu para se libertar de ambições literárias, volvendo-se à primitiva ingenuidade novelesca, e de tal singeleza irão saindo estas páginas. Protesta, por penitência, não escrever no final outra narrativa que muito belamente poderia acometer, e a qual, se não fora Alexandre Dumas ter existido, com certeza chamaria Vinte Anos Depois.
Protesta, isso protesta, conquanto não seja de fiar em protestos de escritores, a quem determinados assuntos afiam a gula. A ver vamos, portanto, já que a pena dos escritores acontece também instrumento da justiça de Deus.
Cobras e Lagartos poderia igualmente chamar-se a narrativa complementar, visto que nela se contariam casos de pôr os cabelos em pé.
No estilo estará o dói, assim quase visigótico, e há-de acusar a crítica o autor de mais velho que a Sé de Braga. Tem ele todavia para o seu gosto que iguais tintas não são de empregar ao dizer da largada, rumo ao Brasil, do Príncipe Regente D. João, que Deus Nosso Senhor tenha, e da aterragem na Portela de Sacavém, da passarola que nos traga o esqueleto sorridente duma estrela ou qualquer politicão viageiro (79).
Os “cânones da objectividade e seguintes” derivam da regra instituída por Flaubert na famosa carta a Louise Colet (09/12/1852): “O autor, na sua obra, deve ser como Deus no universo, presente em tudo e visível em nenhuma parte.” É de aqui que parte o famoso diktat do show, don’t tell que reinou no realismo anterior ao pós-guerra. Assim, em 1926, Ford Madox Ford asseverava com autoridade inquisitória: “Porém o objectivo do romancista é manter o leitor inteiramente abstraído do facto de que o autor existe – até do facto de que está a ler um livro.” Mas o narrador-autor sabe que está a fazer um pastiche, antecipa-se aos raspanetes dos críticos e conhece até a estrutura interna do livro, pois “Cobras e Lagartos” é justamente o título da terceira parte de Procissão dos Defuntos. Continuando as brincadeiras metaficcionais, na página 166 o narrador faz alusão a um “Manuel Cerqueira”, que além de ser uma personagem de A Toca do Lobo (primeira camada metaficcional: anota, atenta leitora, chama-se intratextualidade quando um escritor referencia a sua obra dentro doutra obra sua), para complicar foi também uma pessoa real que Tomaz conhecia na zona dos Arcos de Valdevez (segunda camada metaficcional: esfumar a fronteira entre ficção e facto). Mas técnica à parte, o pormenor que para mim eleva esta passagem a magia é a referência à passarola, é como se tivesse adivinhado que este narrador um dia reapareceria num romance acerca dela. Isto, sim, é uma profecia.
“Cobras e Lagartos” é um divertimento. É simultaneamente homenagem e pastiche de Camilo. Como disse, Tomaz não inventou nada, apenas ousou subir ao sótão para brincar como uma criança por entre tralha misteriosa descartada pelos realistas como ferro-velho inútil. Uma personagem chamada lorde pára numa localidade onde investiga indícios dum crime (relacionados com as novelas anteriores), pensando em colher dados tétricos com os quais o seu amigo Camilo poderá fazer um romance. Acertadamente, Real descreve o narrador saramaguiano: “É um narrador que autoimprovisa a cada momento, oral, coloquial (dialoga directa ou indirectamente com o leitor e com o discurso histórico consagrado)”. Mais: “É igualmente um narrador desconstrutor da ordem clássica do romance, introduzindo apartes que lhe evidenciam as costuras ou as ligações”. Agora presta atenção, expectante leitor: isto foi Tomaz a desconstruir e a mostrar as costuras vinte e seis anos antes de Levantado do Chão:
A chegada à Melancia da célebre menina Inocência, palpitava-lhe ao lorde que havia de dar um capítulo cheio ao seu amigo Camilo.
Se ao portão a apresentasse por fosco dia de chuva, logo desse mau tempo se podiam tirar agouros e prenúncios. Até o céu chorava, de saber o que viria…
Mas, se a apresentasse ao portão por famoso dia de sol, daí podiam igualmente colher-se várias filosofias sobre quanto as aparências são falazes (80).
Cá está: ficção enquanto ficção. A oficina às escâncaras. O falar sobre a escrita da cena torna-se a própria cena. Tomaz, que foi um incansável rescritor mais do que escritor, acreditando no perpétuo despioramento do texto, goza porém com a ideia da mot juste, a palavra certa e inamovível. Para ele, o escritor pode sempre relatar a mesma cena de múltiplos modos, cada um acentuando outros pormenores e gerando outras interpretações.
Este narrador (eu trato-o por Investigador) está num romance histórico. Uma das ironias fora do alcance do leitor da 1.ª edição é de que Procissão dos Defuntos realmente relata uma “mui verídica e acontecida história” a partir de documentos que Tomaz obteve enquanto desempenhava o cargo de Presidente da Câmara de Ponte da Barca. Como os crimes se passaram nos arredores dos Arcos um século antes, Tomaz novamente esbate a linha entre ficção e facto quando o Investigador informa que andou pela zona recolhendo informação oral:
“A que em todo este novelo andou maroteira de polpa, cremos que já muitos irão inclinados. E que a tal D. Madalena ‘valente marafona foi’, tal como já ao famoso Deão do Hissope lhe pareceu bem dizer da celebrada Helena, causa da guerra de Tróia (no tempo em que eram possíveis guerras por um palminho de cara, sem constar que as movessem por via do petróleo), que a tal dona o foi, e marafona de três assobios, aqui o atesto eu, embora a não haja conhecido, consoante é compreensível.
Caramba, que o garanto, visto que andei num corrupio a perguntar quantas velhas possam ter ainda recebido tradições de tão negro crime. E embora muito vão já rareando as velhas que ao menos saibam o romance da Dona Silvana, que ainda cheguei a ouvir de uma santa criada que tive, morta aos oitenta anos, depois de servir mais de setenta sob as telhas que me cobrem, o certo é que algo colhi do resto de velhas verdadeiras que ainda há (81).”
Como já tinha o enredo mais ou menos pré-feito, Tomaz concentrou o seu contributo em brincar com o modo de contar. Assim, o Investigador está sempre a trazer para a narrativa a perspectiva do presente, gerando anacronismos:
“Supõe o narrador não serem ainda os juristas do tempo obrigados ao seu curso de Medicina Legal, que de muito aos de agora serve, motivo por que funda admiração está sentindo pelo Meritíssimo Juiz Dr. Alexandre Fortunato Vilaça, o qual, sem esse complemento, nem assim menos argucioso passou a mostrar-se.”
(Alexandre Fortunato Vilaça foi juiz nos Arcos ao tempo dos crimes.)
Noutra ocasião escreve:
“Não tenho memória se à data fora já abolida a forca, nem estou para ir averiguá-lo, que teria de levantar-me. E, santa paciência, lá isso não levanto, pois, ao passo que escrevo, depois de ter parado para ouvir de cabo a rabo, transmitida de Londres a mágica de Humperdink Haensel e Gretel (à qual provavelmente os meus netos, daqui por cinquenta anos, assistirão em São Carlos), estou de momento a saborear uns trechos de opereta.”
O Investigador está ciente do seu controlo sobre a narrativa: “Eu sei que poderia inventar aqui de pronto qualquer trapalhice – era fácil – e todos ficavam satisfeitos.” Ainda que o fizesse, nunca o saberíamos; sem consultar os documentos originais (já os tive nas mãos, mas estão muito deteriorados), o leitor não tem forma saber o que é inventado ou reportado; este livro é subversivo porque, passando-se por romance policial, é afinal um anti-romance policial pois sugere que a verdade é inatingível e parcelar e só nos chega em fragmentos. (Se Tomaz fosse conhecido como merece, a esta hora já haveria estudos sobre as muitas e preocupantes afinidades entre Procissão dos Defuntos e o seu remake O Delfim.) Não por acaso, o crime de “A Casa da Cobra” não tem um móbil, tem dois para acentuar a ambiguidade e pluralidade da verdade; o leitor é livre de escolher a razão para o homicídio. Passado um século sobre os eventos, já não se consegue chegar à verdade, há só especulações. O que Saramago fazia com o histórico, Tomaz fez com o policial.
A crítica da época não se encantava quando alguém subvertia o romance “bem feito”. Mas Tomaz sabia que estava a recuperar técnicas desusadas e mal vistas. Quando “A Casa da Cobra” saiu num jornal de 1942, frisou a atitude desafiante dando-lhe o subtítulo “Narrativa fora de moda”, isto é, pastiche de técnicas antiquadas com as quais o bom gosto realista se irritava. Isto provou-se profético quando João Pedro de Andrade encrespou as “maneiras desenvoltas do escritor superior ao seu tema” (o narrador revelando-se). Antipatizou com “o comentário exterior, a ironia ou o sarcasmo”. Idem com o “desarticulado técnico da novela” e “as digressões e divagações”. Precocemente, Pedro Andrade usou a palavra “pastiche” na sua resenha, mas sem a conotação neutra que assumirá mais tarde em estudos pós-modernistas; em 1954, não compreendia porque é que Tomaz, “com um estilo seu, compraz-se em dada altura em pastichar o do autor do Amor de Perdição (82).” Para mais Camilo, que os bem-pensantes do Chiado consideravam tecnicamente ultrapassado, sem nada a ensinar aos contemporâneos. Era demasiado cedo: Garrett e Camilo estavam na mó de baixo. Anos depois, Gaspar Simões ainda insistia que “seria impróprio considerar romance as Viagens na Minha Terra, quando é certo que, neste livro digressivo e como que improvisado sobre o joelho, o que há é uma história, tão digressiva como o resto, e que de romance quase nada tem (83).” À sua maneira trapalhona, estava correcto: não é um romance, é um romanço.
O rótulo pós-modernismo é enganador porque os pós-modernistas não quiseram ir além do modernismo, quiseram recuar. Além disso, é simplista o esquema que pospõe o pós-modernismo ao Modernismo, sem nada de permeio. Mas o Modernismo literário estava praticamente extinto por volta de 1929, as obras principais já tinham saído ou pelo menos estavam escritas – Em Busca do Tempo Perdido, Ulisses, Mrs. Dalloway, Rumo ao Farol, O Processo, O Castelo, O Som e a Fúria – e o que saiu depois nada acrescentou. Com o Crash da Bolsa de Nova Iorque e o começo da Grande Depressão, iniciou-se outro ciclo da história da ficção, o retorno ao realismo. Entre 1929 e 1945, o anti-modernismo espalhou-se à medida que se impôs a ficção de cariz político. Nós conhecemo-la em Portugal por neo-realismo, mas foi um movimento mundial com epígonos em Espanha e França, onde se chamou populisme. Em Itália, Elio Vittorino e Cesare Pavese iniciaram o neorealismo. No Brasil, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Lins do Rego, Erico Veríssimo, Lygia Fagundes Telles, Rachel de Queiroz inspiraram os seus congéneres portugueses. Tal e qual os americanos Caldwell, Runyon, Saroyan, Steinbeck, amplamente traduzidos pelos neos. Impelidos pela doutrina do realismo socialista, oficializada no I Congresso dos Escritores Soviéticos (1934), o romancista que aderisse ao Partido e pusesse a escrita à sua disposição era instado a adoptar os modelos do Oitocentos, tratando o Modernismo como uma anomalia passageira. A ascensão do Fascismo e do Nazismo, a Guerra Civil Espanha, propiciaram o ambiente para o escritor lutar por um mundo melhor através da escrita. Devia-se entregar ao colectivo, abjurar o individualismo burguês, renegar Joyce e Woolf e Proust e Kafka, ensimesmados decadentes mais preocupados com pífios dramas pessoais do que com os dilacerantes problemas colectivos. O Modernismo, muito elitista e metafísico, focou-se na experiência subjectiva em vez de social, reportando estados mentais através de sintaxe tortuosa e pontuação anárquica, o que atingiu o apogeu no capítulo final de Ulisses. Eram joguinhos burgueses degenerados que não apoiavam nenhuma causa urgente. O crítico marxista Georg Lukács proibia Joyce e Kafka e aconselhava antes os sadios Balzac e Thomas Mann, exemplos de escrita séria, madura, responsável, compenetrada com as questões sociais. Em menos de nada, havia matilhas e quadrilhas de Lukács em França, Itália, Argentina, Espanha, EUA, Portugal. O espírito concentracionário que os realistas trouxeram à ficção ficou testemunhado no prefácio à 2.ª edição de Procissão dos Defuntos (1967):
“O Século XIX e o Naturalismo, os legisladores da Literatura, impuseram, por decreto-lei (por decreto-lei, depois de queimada e arrasada a Bastilha), a objectividade, a ausência do escritor, conquista de pedra e cal da arte literária, e ficámos nisto: herético é e chamuscado seja até aos ossos quem recuse a albarda e, gato bravo, ateime até no direito de criar e de compor consoante lhe dê na que foi real gana e deixou de real ser, para ser o que será o antónimo de real (84).”
Portanto, quando a ficção pós-modernista surgiu no pós-guerra, estava a reagir a este realismo grosseiro e não ao Modernismo. (Gass, o pai da “metaficção”, denominava-se “modernista decadente”.) O termo “pós-modernista” não me agrada de todo porque é omisso nas características deste tipo de ficção. Para mim, o pós-modernismo partiu de uma necessidade psíquica, sem origem nem doutrinador, para salvar o escritor, o leitor e a própria ficção da morte da imaginação decretada pela insistência rígida no realismo. O pós-modernismo é na verdade pré-realismo.
Pondo de lado Dom Quixote, a típica história do romance reza que nasceu em Inglaterra no século XVIII, filho do Iluminismo. Inevitavelmente, influiu-lhe na matriz o empirismo circundante, assumindo-se como um instrumento para relatar o mundo objectivamente, tal como os cientistas que estavam a dar ao século XVIII razões para se chamar a Era da Razão. Como Ian Watt mostrou em The Rise of the Novel (1957), Daniel Defoe e Samuel Richardson acreditavam que estavam a inventar um género novo. Para trás ficaram géneros narrativos que não tinham que ver com o romance – o épico, a picaresca, a cavalaria, a pastoral – porque não contribuíam para um entendimento objectivo da sociedade.
Na língua portuguesa, ao contrário da inglesa, não há distinção entre novel e romance, que diferencia entre narrativa realista e narrativa fantástica. Para uso pessoal, traduzo o novel inglês pelo nosso romance, e romance por romanço, que em Português significa um longo poema narrativo; como actualmente ninguém usa romanço para nada, não faz mal nenhum dar-lhe uso. Mas agora dizes, estafada leitora, mais jargão? Na verdade, esta distinção não é produto do rarefeito mundo académico. Em 1785, a autora inglesa de romanços Clara Reeve reagiu a este rival em The Progress of the Romance. Para Reeve, o romanço é “uma fábula heróica, que trata de pessoas e coisas fabulosas.” O romance é “um retrato de vida real e costumes, e dos tempos em é escrito.” O romanço usa “linguagem elevada” e descreve “o que nunca aconteceu nem é provável que aconteça.” O romance dá um “relato familiar das coisas que passam todos os dias diante dos nossos olhos, coisas que podem acontecer ao nosso amigo, ou a nós”. Além disso, o romance é “perfeito” quando representa as cenas numa maneira “fácil e natural” (o futuro minimalismo de Balzac, Hemingway, Cardoso Pires, etc.) de modo a nos persuadir de que “tudo é real, até sermos afectados pelas alegrias ou problemas das pessoas na estória como se fossem as nossas.” (A doutrina da “autenticidade” e da “identificação” do leitor com a personagem.) Com o tempo, a distinção deformou-se em hierarquia. Com o prestígio da ciência superando o Trivium focado em retórica, os géneros incompatíveis com o relato realista que passou a dominar a partir dos anos 1830 entraram na categoria desvalorizada do romanço. Esta demarcação encontra-se em H. G. Wells: o subtítulo de O Homem Invisível é “A Grotesque Romance”, ao passo que A Máquina do Tempo é “An Invention”. Para os parâmetros da época, não podiam ser romances porque relatavam eventos em contramão da realidade – o que nunca aconteceu nem é provável que aconteça.
Quem estuda o pós-modernismo, a dada altura encontra sempre uma lista de características mais ou menos longa. Não costuma faltar a erosão entre cultura alta e cultura baixa, se calhar seguida duma citação de Susan Sontag. Mas o porquê é raramente satisfatório. Na explicação de alguns especialistas, com o triunfo da democracia, a cultura popular perdeu a vergonha face ao Modernismo; além disso, o aumento da literacia, a democratização do acesso à cultura, mais uma geração de escritores que cresceram já vidrados em cinema, TV e banda desenhada, demoliram o que restava da estrita separação de alta e baixa cultura que caracterizou o Modernismo. Mas tal explicação sociológica é insuficiente: Nabokov, um aristocrata russo tão rico antes da Revolução de Outubro que viajava num comboio privado, foi um insuportável elitista e pedante que adorava misturar as duas culturas. Do quadrante marxista dizem que foi uma reacção ao Modernismo, elitista e paranóico acerca da cultura popular e da “revolta das massas” profetizada por Gasset. Os marxistas, sempre a tentar converter todos em escritores engajados a título simbólico, explicam que este nivelamento é uma crítica ao capitalismo, ou à burguesia, ou à autoridade das narrativas dos poderosos, forma de minar o poder da classe vigente. Tendo em conta que Hollywood faz biliões a misturar alta e baixa culturas, esta explicação parece-me herculeamente errada.
Como o pós-modernismo é um fenómeno literário, só me interessa uma explicação literária. Já ficou estabelecido que os pós-modernistas não estavam a reagir ao moribundo Modernismo, mas à onda nova de realismo. O pós-modernismo pode ser entendido como o desespero pelo fim da ficção provocado pelo excesso de realismo que interdita a imaginação. Disse Umberto Eco: “O romance pós-moderno ideal deverá superar as diatribes existentes entre realismo e irrealismo, formalismo e ‘conteudismo’, literatura pura e literatura comprometida, narrativa de élites e narrativa de massas… (85)” No prólogo a Dom Juan, GTB disse que ficou com “um empacho de realismo” após a trilogia realista Os Prazeres e as Sombras. Realmente, o pós-modernismo é a nostalgia pela perdida herança do romanço que se tornou um pária após a ascensão do romance realista. Nos estudos do ocultismo, um historiador muito conceituado chamado James Webb certa vez disse que depois do Iluminismo a “magia” se tornou rejected knowledge, conhecimento rejeitado. Analogamente, o romanço é conhecimento rejeitado de como fazer ficção. A analogia não é de todo descabida, pois o pós-guerra simultaneamente assistiu ao retorno do romanço e ao florescimento de movimentos espirituais contra o racionalismo iluminista, scilicet as drogas psicadélicas de Timothy Leary, a joco-religião do Discordianismo, o espiritualismo oriental de Alan Watts, o adorável embuste iaque de Carlos Castaneda, o “realismo fantástico” d’ O Despertar dos Mágicos, todo o New Age. O narrador de Saramago não contém apenas características da filosofia bergsonista execrada pelos materialistas dialécticos: o simultaneamente conhecer o presente, passado e futuro pouco mais é do que a realização literária dos registos akáshicos dos adeptos da teosofia. Os escritores do pós-guerra, vendo a ficção enfiada num escuro túnel sem saída, dando cabeçadas na parede de historietas de adultério de chacha em que só mudam os nomes e o local, fizeram marcha-atrás até à tradição do romanço. Mas onde vibrava ainda o romanço no mundo moderno? No romance policial, de aventuras, de guerra, sentimental, humorístico, de espionagem, fantástico, de terror, de ficção científica. Os pós-modernistas não foram à cultura baixa porque quiseram ir à cultura baixa; foram à cultura baixa porque o romanço foi escorraçado para um gueto chamado cultura baixa. Portanto, o pós-modernismo define-se melhor como um neo-romanceirismo, uma vontade de recuperar meio conscientemente meio inconscientemente modos narrativos anteriores ao realismo.
O pós-modernismo é um alargado guarda-chuva sob o qual cabem rótulos precisos que fogem para um passado pré-realista/racionalista. Houve o “fabulismo” de Robert Scholes (1967), óptimo termo que infelizmente caiu na valeta empurrado pelo menos interessante “realismo magico”. “Vivemos em tempos góticos”, exultou Angela Carter no prefácio ao livro de contos Fireworks (1974). Ishmael Reed, pesquisador do marginalizado imaginário da cultura afro-americana, inventou uma estética chamada NeoHooDoo, NeoVuDu (1970). Fábula, magia, gótico, vudu – curioso como o vocabulário dos pós-modernistas é teimosamente pré-moderno. O neobarroco, outro retrocesso, foi só mais um dos estuários deste rio atávico. Apanhemos uma canoa até ao próximo ponto.
7) Os escritores divertem-se
Outra forma de definir o pós-modernismo é dizer que houve um período em que os romancistas tinham vergonha de fazer romances, por isso faziam romances que se pareciam com tudo menos romances. Foi por isso que a prática do pastiche assumiu proporções descomunais. O pastiche tem sempre uma componente performativa, imitadora. Os limites do pastiche são os limites dos géneros existentes. Houve romancistas que queriam fazer textos semelhantes a géneros pré-realistas: Procissão dos Defuntos assemelha-se a novelas de Camilo. Italo Calvino recuperou o romanço de cavalaria em O Cavaleiro Inexistente. Em 1957, o espanhol Juan Perucho lançou o romance Libro de caballerías. Cela continuou as aventuras de Lazarilho de Tormes, o pai do romanço picaresco. John Fowles fez A Amante do Tenente Francês, pastiche do romance vitoriano inglês. John Barth fez The Sot-Weed Factor para ver se o Tom Jones de Henry Fielding ainda era viável em tempos modernos.
Houve também a nostalgia por géneros caídos em desgraça. O romance epistolar, cuja morte anunciam há dois séculos, mostrou que ainda tinha selos para algumas remessas caricatas. Saul Bellow injectou-lhe vida em Herzog (1963), e o austríaco Wolfgang Bauer em 1966 com Der Fieberkopf. Barth foi ainda mais longe em LETTERS (1979), no qual personagens dos seus seis livros anteriores trocam cartas entre si.
Quando não estavam a pastichar géneros pré-realistas, estavam a pastichar géneros não-narrativos. Dom Tanas de Barbatanas simula um panegírico. Fogo Pálido (1962) é um poema de 999 versos mais o comentário verso a verso. Nos EUA, há um género conhecido como slave narrative, memórias de escravos fugitivos escritas quando assentavam nos estados abolicionistas: em 1976, Ishmael escreveu Flight to Canada, a que chamou neo-slave-narrative. Em 1987, Malcom Bradbury fez um joco-ensaio, Mensonge: My Strange Quest for Henri Mensonge, Structuralism’s Hidden Hero, paródia esplendorosa da moda estruturalista.
Mas foram os géneros baixos que receberam mais atenção. Procissão dos Defuntos é um pastiche policial. O policial foi muito estimado pelos pós-modernistas: Entre Dois Tiros, Aquela Confusão Louca da Via Merulana, Mumbo Jumbo, O Delfim, O Nome da Rosa, A Trilogia de Nova Iorque. Boquinhas Pintadas, de Manuel Puig, reproduz as convenções dum folhetim radiofónico. Na mesma onda, metade de A Tia Júlia e o Escrevinhador é dedicada a narrar os episódios duma radionovela. O Western não foi esquecido: Richard Brautigan misturou o gótico e o Western em The Hawkline Monster: A Gothic Western. Reed fez um western intitulado Yellow Back Radio Broke-Down. O contributo de Paul West chama-se OK: The Corral, the Earps and Doc Holliday.
A ficção científica surge em Uma Laranja Mecânica, nos romances de Kurt Vonnegut, Thomas Pynchon e Joseph McElroy. Burgess usurpou os romances do 007 de Ian Flemming em A Tremor of Intent. Angela Carter voltou ao gótico e ao conto de fadas. Julio Cortázar fez um híbrido de BD e novela de protesto em Fantomas contra os vampiros das multinacionais. Em The Cat in the Hat for President (1968), Robert Coover satirizou as eleições presidenciais americanas usando a personagem dos livros infantis do Dr. Seuss. E houve o Poema a fumetti (1969): onde já se viu um reputado escritor como Dino Buzzati fazendo banda desenhada?
Houve também nostalgia pelos respectivos mitos literários nacionais. No Dom Juan de GTB, o narrador vivendo na Paris moderna conhece um homem e seu criado afirmando ser os verdadeiros Dom Juan e Leporello. Por vezes, os textos pré-existentes dos clássicos serviam de base para novas obras. John Steinbeck, depois duma vida dedicado ao realismo social, morreu a tentar completar um romanço inspirado na lenda do Rei Artur. Mas os galegos Álvaro Cunqueiro e Ballester regressaram aos mitos celtas da infância e realmente fizeram livros em que o mito arturiano desempenha papel fulcral. Viagens de Marco Polo transformou-se em Cidades Invisíveis, Pinóquio em Pinóquio. Um Livro Paralelo, de Giorgio Manganelli, O Satyricon em II giuoco del Satyricon. Un’imitazione da Petronio, de Edoardo Sanguineti. O francês Voldemar Lestienne voltou ao universo de Alexandre Dumas em Furioso (1972) O Físico Prodigioso é inspirado na obra religiosa medieval Horto do Esposo. Novas Cartas Portuguesas parte das cartas alegadamente escritas por uma freira portuguesa. A novela de Mário de Carvalho, O Conde de Jano, é a rescrita do romanço popular “Conde Yanno”. O bosque harmonioso, de Augusto Abelaira, é uma paródia de O Bosco Deleitoso, obra religiosa medieval. O realismo partia da observação do mundo para a escrita, mas outra definição de pós-modernismo é literatura nova feita a partir de literatura velha. Em vez de escrever sobre o que leu no jornal, o pós-modernista escreve sobre os livros que leu na infância. Porque não? Como dizia Gass, há escritores para quem a maior experiência foi terem lido Dom Quixote, por isso em vez de escreverem sobre o amor da adolescência, escrevem sobre o amor a Dom Quixote (86).
O apelo dos géneros baixos leva-nos a um quebra-cabeças chamado realismo mágico, um tópico enrolado em montes de confusões. No começo, foi um termo da pintura usado por Franz Roh em 1925. Mais tarde, o venezuelano Arturo Uslar Pietri desviou-o para a literatura. Infelizmente, foi quase uma apostilha que mal explicou coisa alguma: “O que veio a predominar no conto e a marcar a sua impressão de uma maneira perdurável”, escreveu em 1948, “foi a consideração do homem como mistério no meio dos dados realistas. Uma adivinhação poética ou uma negação poética da realidade. O que, por falta de outra palavra, poderia chamar-se realismo mágico (87).” É só isto. Assim parca e sibilinamente nasceu um mito que já encheu milhares de páginas a tentar explicá-lo. Destaque para Pietri não falar nada sobre fantástico, mas antes para a tentativa de transfigurar o mundano através dum tratamento poético que não tem necessariamente de enveredar pela suspensão das leis da física. Uma visão poeticamente ampliada. Mas como os historiadores têm descoberto, o termo já andava em uso na Europa no período entreguerras. Stefan Zweig aplicou-o ao Léviathan (1926) de Julien Green, que mereceria tal nome por causa dum lirismo que infundiria estranheza a um romance de resto realista.
No ano seguinte, Carpentier forneceu mais dados na tentativa de definição do seu “real maravilho”, ajudando a complicar ainda mais. Os ingredientes, para ele, são a fé e o milagre: “Para começar, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé. Os que não crêem em santos não podem curar-se com milagres de santos, nem os que não são Quixotes podem meter-se, em corpo, alma e bens, no mundo de Amadís de Gaula ou de Tirante-o-Branco (88).” Na América Latina, diz, ainda há comunidades que acreditam piamente em magia, e a função do escritor é retratar por dentro essa mundividência. É claro que isto só funciona em comunidades rústicas, razão por que tanta ficção mágico-realista se passa fora das grandes urbes, onde a população está essencialmente europeizada. Carpentier ilustrou-o no seu romance O Reino deste Mundo (1949), romance histórico sobre a revolução dos escravos do Haiti. A sociedade pró-independência está dividida em colonos franceses racionalistas e escravos negros e mulatos atreitos à feitiçaria. Carpentier não retrata nada que quebre as leis da física, o que ele faz é mostrar eventos através da perspectiva de pessoas que acreditam em magia. Isso vê-se no episódio da execução do feiticeiro vudu Mackandal. Os franceses condenam-no à fogueira. Mas os escravos que testemunham a execução não acreditam que morra, porque o vêem transformar-se numa animal e fugir: “Caíram as cordas que o atavam, e o corpo do negro esfogueteou no ar, voando por cima das cabeças, antes de mergulhar nas ondas da massa de escravos.” Delirantes, é “a confusão e o estrépito.” Os soldados repelem-nos violentamente. “E a tal ponto chegou o barulho e a gritaria e a turbamulta, que muito poucos viram Mackandal, agarrado por dez soldados, ser metido no fogo, e que uma chama crescendo pelo cabelo incendiado, afogava o seu último grito (89).” Tal como na sibilina definição de Pietri, não há aqui nenhuma rejeição das leis da física, apenas um complemento à realidade, uma deformação assinaladamente poética, subjectiva. Mas nesse caso, não dá trabalho achar exemplo de realismo mágico português anterior. Em Andam Faunos pelo Bosque (1923), uma comunidade rural aonde a civilização mal chegou e que ainda se entrega a crendices, recorre à fé no mundo invisível para fazer sentido de eventos inexplicáveis, os ataques a mulheres nos bosques por um ente desconhecido, que o imaginário da comunidade atribui ao fauno do título. Tal como Carpentier nunca determina que a magia de Mackandal é real, Aquilino também não esclarece a natureza dos ataques. Nesse sentido, no princípio o realismo mágico partia da ambiguidade entre o natural e o sobrenatural. Vários contos de Tomaz publicados no semanário Fradique ao longo do ano de 1934 cabem nesta categoria. Em “O Destino”, um faquir prediz a morte de Honório. O seu amigo, o narrador, manda “à fava os bruxedos”, tal como os colonos franceses, mas Honório possui a fé dos escravos negros. À medida que a data exacta da morte profetizada se aproxima, a excitação de Honório aumenta. A dois minutos do prazo, farto de esperar, saca duma pistola e rebenta os miolos. Isto gera um paradoxo interessante: ele matou-se na hora exacta porque era o destino, logo o sobrenatural é validado, ou foi a fé dele que tornou a profecia real?
Mais tarde vieram outros refinamentos. Na ânsia de inventarem um ismo puramente autóctone, os latino-americanos foram acrescentando elementos que só aumentaram a confusão. Por exemplo, diziam que o seu realismo mágico difere do tradicional fantástico europeu porque um insere o sobrenatural no quotidiano, normalizando-o, ao passo que no o fantástico europeu causa espanto quando se manifesta. Ainda assim, Kafka já se adiantara com A Metamorfose. A definição do realismo mágico e as diferenças com o fantástico são coca-bichanices inconsequentes que não me interessam tanto quanto o facto de ter havido um fenómeno anti-realista abrangente que tomou de assalto a ficção a seguir a 1918: quer se chame realismo mágico, real maravilhoso, surrealismo, fabulismo, neogótico, neovudu, o crucial é que o realismo de Austen, Flaubert, Eça e James desabou por aí abaixo.
Todavia, ainda que nenhum continente o possa reclamar como seu, dá para discutir se Saramago chegou espontaneamente ao seu realismo mágico (ou “real sobrenatural”, como preferia, ecoando o real maravilhoso de Carpentier), ou se lhe adveio directamente dos latino-americanos. Saramago rejeitou sempre esta paternidade, mera coincidência, mas nunca explicou porque é que nesse caso apenas eclodiu depois de estarem disseminadas em Portugal as suas obras, em vez de em 1977 quando as circunstâncias políticas do recém-terminado PREC e do 11 de Novembro ainda tornavam deplorável a incursão no fantástico, ou 1953 com Clarabóia, ou 1947 com Terra do Pecado. Chegaram a ser tocantemente hilariantes as tentativas posteriores de Saramago de inventar uma tradição fantástica solidamente lusitana, mas quanto mais tentou mais expôs o modelo estrangeiro. No Discurso de Estocolmo, falou dos avós contadores de estórias:
Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: “E depois?” Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas.
Também o galego GTB contou que sempre que o racionalismo do avô materno o puxava, era empurrado pelas avós “na obscuridade, na desordem, no descomedimento (90).” Entretanto, García Márquez orgulhava-se dos avós galegos: “Os meus avós eram descendentes de galegos, e muitas das coisas sobrenaturais que me contavam provinham da Galiza (91)”. (Se vais imitar, imita os melhores.) Disto depreendo que se Austen, Tolstoi, Balzac, Hardy, Flaubert foram realistas foi porque não tiveram avós que lhes contassem histórias da carochinha. Claramente, falta fazer o levantamento da responsabilidade que os avós, abençoados sejam, têm pelo estado da literatura moderna, apurar se todo o espanhol, português, alemão, inglês, italiano, americano que fez fantasia também tinha avós, galegos ou não, ou, quem sabe, se é possível chegar à fantasia sem essa muleta genética. Talvez. Mas uma explicação mais sensata é de que depois de 200 anos de realismo estavam fartos e queriam fazer coisas diferentes.
Discorda Real, ele repudia a injustiça de derivar dos latino-americanos o real sobrenatural, e para provar que Saramago andava há muito com ganas de embargar o realismo cita palavras que julga peremptórias. Numa entrevista ao Diário de Notícias, 19/01/67, Saramago aparece dizendo que o “realismo não tem fronteiras”, o que estabeleceria a autonomia da sua visão a respeito do fantástico (92). Mas se Real fosse o historiador de ideias literárias que pensa que é, saberia que em 1963 um militante do Partido Comunista Francês chamado Roger Garaudy, para escândalo dos colegas partidários, publicou um livro advogando uma interpretação mais lata do “realismo” nas artes, que permitisse até englobar Franz Kafka e Pablo Picasso, figuras ingratas aos progressistas da época, atreitos a uma rígida definição. Este manifesto era uma resposta indirecta a outro que o consagrado teórico marxista Georg Lukács publicara um ano antes, Significado Presente do Realismo Crítico. Perante a perda de popularidade do realismo, Lukács não queria ouvir falar de comunistas inspirando-se em Joyce e Kafka, por isso reiterou intransigentemente o realismo apoiado em Thomas Mann e Balzac. Porque acredito piamente em deixar os autores enforcarem-se no laço das próprias palavras, passo o megafone ao camarada:
“Não pretendemos dizer, evidentemente, que os escritores mais notáveis da decadência estejam pessoalmente ligados à política hitleriana ou à da guerra fria. Ninguém ignora que um Joyce ou um Kafka escreveram as suas obras – imensamente significativas – muito antes dos acontecimentos que acabamos de referir, que Musil era pessoalmente antifascista, etc. Mas se não pretendemos imputar-lhes uma tomada de posição directamente política, devemos notar, no entanto, a sua responsabilidade, na medida em que a sua concepção do mundo serviu de quadro a toda uma literatura, enquanto reflexo da realidade efectiva, e particularmente desta realidade actual, onde a sua maneira de reflectir sobre o mundo e de o julgar ocupa um lugar tão importante (93).”
A celeuma causada pelo livro de Garaudy foi tanta em Portugal que antes sequer de haver tradução a Seara Nova reuniu uns quantos neos numa mesa-redonda de emergência para discutir as suas implicações. Em 1966, prefaciada por Alexandre Pinheiro Torres, saiu a tradução intitulada Um Realismo Sem Fronteiras.
Tal como os comunistas tiveram de aprender a amar o barroco outrora interdito, a adesão ao fantástico precisou dum processo de pacificação. É por isso que portugueses menos politicamente activos lograram muito antes produzir obras que podemos caracterizar de mágico-realistas. Dinossauro Excelentíssimo (1972), narrado como uma espécie de livro infantil, só surgiu quando Cardoso Pires renegou em parte a estreita interpretação do realismo que usara até ao Delfim. Ruben A., que nunca sofreu de complexos neo-realistas, adiantou-se com A Torre da Barbela. O fantástico enforma os contos de Novas Andanças do Demónio. Aliás, a expressão “realismo mágico” foi usada por Sena no prefácio de Andanças do Demónio, datado de 1960 (94). (Saramago foi o editor da Estúdios Cor que publicou este livro.) Em 1966, Sena teve de avançar de fininho, defendendo-se num prefácio que pouco sentido fará ao leitor actual: “Nestas andanças novas, como em metade das anteriores não acontecia, predomina uma inactualidade aparente, ou pelo menos o realismo fantástico ou o historicismo imaginoso.” Basicamente, pedia que não se ofendessem por fazer ficção histórica e por relatar eventos às avessas realidade visível. Depois canhoneou dogmas caros à esquerda neo-realista: “Aquele realismo mais ou menos tradicional, não o creio válido, hoje, se não for subjectivo, isto é, se não brotar de uma revolta das nossas memórias pessoais, às quais se aplique a crítica sociofilosófica da criação estética consciente.” (Realismo subjectivo é o que Tomaz fez em A Toca do Lobo.) E Sena continuou: “As grandes máquinas realísticas, considero-as hoje impossíveis e falsas, se não foram feitas da fragmentação ignominiosa do mundo que nos é dado. O que sobretudo importa é que a estrutura estética em que essa fragmentação seja organizada se nos não apresente como a estrutura de uma realidade social que reputamos falsa (95).” Se quiseres, colaborante leitora, podes ir à estante passar os olhos pelo prefácio que Saramago pespegou ao Memorial de Convento, e quando te fartares de procurar volta cá para eu te dizer que esse prefácio não existe porque não havia mais necessidade de defender o fantástico da turbamulta neo-realista. A Universidade até hoje ainda não soube digerir o facto de que a vanguarda encabeçada por Tomaz, Sena e Ruben lutou menos contra o Estado Novo do que contra o neo-realismo, estorvo maior à liberdade criadora.
Contudo, esta extraordinária batalha por direitos básicos à imaginação é totalmente irrelevante para Real. Saramago é, para ele, o ponto central de toda a ruptura com o realismo na ficção portuguesa e mais além. Há uma passagem delirante (p. 308) em que afirma que O Ano de 1993 se antecipa ao conceito do “cyborg” e ao filme The Matrix, deixando claro o quão mal conhece a antiguidade destas ideias. Na verdade, Saramago era fã de ficção científica e podia sê-lo porque em Portugal havia colecções de ficção científica, como a lendária “Argonauta” da Livros do Brasil. 1993 é um livro fraquíssimo, uma mopa de lugares-comuns de FC: cidades sitiadas, invasores, criaturas meio homem meia máquina, humanos usados como fonte de energia. Mas Real, na ânsia de fazer Saramago florescer num deserto, omite que havia uma vibrante corrente de FC portuguesa. Só por alto:
Romeu de Melo: AK: a Tese e o Axioma
Romeu de Melo: Não lhes faremos a vontade
António da Cruz Rodrigues: Anti-Razão
Manuel de Seabra: O Fogo Sagrado
Manuel de Seabra: Os Sobreviventes
José Fernandes Fafe: Venusique
Maria Judite de Carvalho: Os Idólatras
Reis Ventura: Um Homem De Outro Mundo
Virgílio Martinho: O Grande Cidadão
Maria Isabel Barreno: Os Outros Legítimos Superiores
Em princípio, Saramago não precisava dos latino-americanos graças à quantidade de modelos locais, mas a verdade é que o seu amor ao fantástico só despontou muito depois de estarem traduzidos Carpentier, Borges, Fuentes e García Márquez e de estar limpo o caminho de obstáculos sociopolíticos ao escritor comunista que se atravesse a adentrar na fantasia. Por contraste, a simpatia de Tomaz pelo fantástico brilhava desde os anos 30, quando começou a misturar ambiguamente a subjectividade e o fantástico. O Homem que Sonhou é um agradável livro de contos de loucura e fantasia sobre estados psíquicos extremos (homicídio, suicídio, obsessões) e eventos misteriosas inexplicáveis pelas leis da física. O conto “O Gavião” foi incluído na 1.ª edição da pioneira Antologia do Conto Fantástico Português (1967), das Edições Afrodite de Fernando Ribeiro de Mello. Na biblioteca pessoal de Tomaz, há uma cópia do ensaio de Émile Schaub-Koch, Contribuição para o Estudo do Fantástico no Romance (Lisboa, 1957), sobre o escritor austríaco Maurice Sandoz, o que mostra a persistência do seu interesse neste tópico.
Apesar de o esquema organizador ser o panegírico, Dom Tanas de Barbatanas é uma mistura de pastiches com vestígios da picaresca e do romanço de cavalaria, ao que não faltam traços mágico-realistas, ou pelo menos um exagero da realidade que lembra as teorias de Mikhail Bakhtin sobre o grotesco que seriam conhecidas fora da Rússia poucos anos depois. (Dom Tanas é o mais rabelaisiano dos romances portugueses.) O exagero é dado com tanta naturalidade que parece normal, instanciando o que que Tzvetan Todorov chamaria mais tarde de “maravilhoso” ou “maravilhoso hiperbólico”. No primeiro caso, os “elementos sobrenaturais não provocam qualquer relação especial nem nas personagens nem no leitor implícito.” No segundo, os “fenómenos não são aqui sobrenaturais senão pelas suas dimensões, superiores às que nos são familiares (96).” Graças ao tom hiperbólico do Panegirista, que engrandece a estirpe dos Barbatanas, a natureza resulta exageradamente deturpada. Um antepassado de Tanas, Dom Hermenegildo, cai duma arriba mas em vez de morrer racha o penedo no fundo com a dureza do crânio. A trança de Dom Pêro é forte o suficiente para aguentar o peso dum traidor na qual é enforcado. A linhagem dos Tanas é tão vetusta e mirabolante que há apóstolos cristãos antes de Cristo. Outro antepassado é tão colossal que morre com um osso de baleia entalado na garganta. O sono do bebé Tanas é literalmente vigiado por fadas (um dos topoi, ou traços, do panegírico é a obrigação de haver sinais sobrenaturais da excepcionalidade do panegirando). O bebé Tanas é tão insaciável que esgota o leite de várias amas-secas. O Cartório dos Tanas aparenta ser um poço sem fim de papelada capaz de competir com a Biblioteca de Babel. Todorov, que se interessou pelo estudo do fantástico nos anos 60, afirmou que “O exagero leva ao sobrenatural (97).” A confiar no Panegirista, os Tanas inventaram todos os provérbios em uso na língua portuguesa (e usam-nos tanto quanto o narrador saramaguiano), uma possessão linguística não menos fantástica do que o conto de Gabriel García Márquez em que a Mamã Grande é dona de “as cores da bandeira”, “os direitos do homem”, “as rainhas de beleza”, “a pureza da linguagem”, “os exemplos para o mundo”, “a opinião pública”, “as mensagens de adesão (98).” Num dos momentos em que Dom Tanas pisca o olho ao romanço de cavalaria, Tanas usa um unguento mágico para progredir na carreira. Os cavaleiros andantes usavam poções mágicas para curar feridas incríveis, até braços decepados. Mas já não vivemos em tempos maravilhosos, por isso o unguento de Tanas é mais humilde: esfrega-o nas hemorróidas de Pombal, graças ao que obtém o cobiçado emprego na corte. Este unguento está na família desde que Dom Porfírio, “Galante cavaleiro” da antiga Babilónia, o recebeu duma fada. Um dos ingredientes é “banha de cobra”. Incrivelmente, este pormenor não é inventado, é possível que Tomaz o tenha extraído duma biografia de Mário Domingues, Marquês de Pombal: O Homem e a sua Época (1955), onde lemos que Pombal tomava um remédio feito com “caldos de víbora, adubados com uma cebola branca, um cravo e uma pitada de canela (99).” Tomaz terá visto nesta mistela uma forma de transfigurar a realidade, associando o unguento às poções mágicas dos romanços de cavalaria.
Um ano antes, Wayne C. Booth mostrava-se muito nervoso quanto ao avanço do fantástico na ficção contemporânea. Booth crescera a aceitar o realismo como o patamar insuperável da narrativa, o estágio final da evolução, a plena maturidade da ficção. Agastado com os sinais de rebelião, advogou a manutenção do bom-senso: “Felizmente, a alternativa ao realismo dogmático não é o anti-realismo dogmático (100).” Booth não teve culpa de não possuir poderes divinatórios, mas depois veio Dom Tanas e Uma Laranja Mecânica e V. e Giles Goat-Boy e The Magic Toyship e Cem Anos de Solidão e Ada or Ardor e Palinuro de México e A Saga/Fuga de J.B. e Cidades Invisíveis e mais lá prá frente até veio Saramago, demasiado tarde para fazer qualquer diferença, mas uma estelar adição. Poupado a enfrentar o ciclope Bom Gosto, quando Saramago voltou ao romance o panorama melhorara muito, batalhas pela liberdade criativa já não faziam sentido porque triunfara o lado da criatividade, e em menos de nada até se esqueceu que houve sequer uma batalha e recuos e baixas. Hoje em dia, damos por barato que sempre se pôde escrever como Saramago, mais, pensamos que se pode escrever à Saramago por causa de Saramago. Fico feliz pelas facilidades que teve: é mais gratificante criar em liberdade do que perder tempo a obter o direito a criar em liberdade. Poupa tempo, evita inimigos, não causa desgaste nem intrigas, nem ódios nem rancores que sitiaram a vida de Tomaz.
Hoje em dia, só através duma reconstrução arqueológica é que sabemos apreciar o quão recente é o direito a gostar do fantástico. Todas as semanas vamos ver um filme da Marvel com super-heróis que soltam garras dos punhos, voam, disparam lasers dos olhos, e não damos conta de que só há muito pouco ganhámos o direito de o fazer sem nos passarem atestados de imbecilidade. Isso deveu-se à vitória do pós-modernismo em arrasar a espúria divisão entre alta e baixa culturas, conceito que nem existia antes de o Iluminismo trancar tudo o que não fosse realismo no gueto do mau gosto. Depois da longa tirania realista dos neos, o fantástico de Saramago encontrou depressa o êxito porque as batalhas já tinham sido travadas décadas antes por Sena, Ruben e sobretudo Tomaz.
Com o fantástico regressou o outrora menosprezado enredo. O romance realista por força restringe a natureza dos eventos narrados. O romance fantástico pode incluir o real, mas o realismo é hostil ao que escapa à percepção visual. Mas apesar desta restrição de mundos imaginários, os leitores andavam com sede de aventuras, peripécias, suspense, só que em vez disso recebiam centenas de páginas de introspecção sobre sentimentos e motivações. O romance precisou de reaprender a divertir-se e a divertir. Segundo Umberto Eco, “Esta ligação, assim como a redescoberta, não só do enredo mas também do prazer, viria a ser efectuada pelos teóricos americanos do Pós-Modernismo”, mas foi realmente um esforço internacional sem um comando central (101).
Um dia Eco ofereceu uma explicação sucinta para a génese de O Nome da Rosa: “Escrevi um romance porque me apeteceu. Acho que é uma razão suficiente para alguém se pôr a contar uma história. O homem é um animal fabulador por natureza (102).” Esta simples afirmação já perdeu o tom provocador de outrora. Um pensador da estirpe de Eco fazer romance porque sim? Mas porque é que quer fabular, contar uma história, ambição tão infantil? Não, impossível; nos anos 30, escreviam-se romances para alertar contra o fascismo, para culpar os banqueiros, para denunciar os falangistas espanhóis, para evitar a guerra vindoura, para apelar às boas intenções da humanidade. O escritor escrevia para ser a bússola moral da comunidade.
Eco continua: “Não há dúvida que o romance moderno procurou abafar o divertimento do enredo em prol de outros tipos de divertimento. Ora, eu grande admirador da poética aristotélica, sempre achei que, apesar de tudo, um romance deve divertir também e sobretudo através do enredo (103).” Em 1972, Il Ritorno Dell’intreccio. Almanacco Bompiani ofereceu aos leitores uma selecção de textos baseados no “retorno ao enredo”. A versão francesa apelidou-se de retour du récit, após trinta anos de nouveau roman a esvaziar o relato. O espanhol Ricardo Gullon saiu-se com García Márquez o el olvidado arte de contar (1970). Parte considerável do pós-modernismo envolveu recuperar e respeitabilizar a “esquecida arte de contar”, lembrando que a ficção é também divertimento e prazer. Mas em Portugal não podia haver literatura de divertimento: era de mau tom o escritor pensar em diversão quando havia ditadura, o Tarrafal, assassínios políticos, sopas de pobres e latifundiários. Apesar dos esforços de Tomaz, Sena e Ruben, a lugubridade lutuosa das letras lusas manteve-se imutável por muito tempo. Finalmente em 1977, o crítico Júlio Conrado reparou que O Que Diz Molero teria aberto “caminho a uma literatura bem-disposta, porreira, de grande êxito popular (mesmo quando sibilina, malcriada)” na qual a prioridade era “afirmar-se plena e hegemonicamente o prazer.” Surgiram romances com o tom de sem-cerimónia, o descaro às vezes um tanto cínico, um certo culto do nonsense e do sarcasmo, o condimento bem doseado da ironia”, augurando “algo ainda indefinido na literatura portuguesa”. O declínio do neo-realismo, que por anos barrara a liberdade criativa, e mudanças sociais (o fim do PREC entre outras) “deixam entender que o ciclo das grandes obras acerca dos pobrezinhos e dos pequenos burgueses comunistas está por ora encerrado, não justificando mais gastos em papel, esferográficas, bicas, tipografias, sessões de autógrafos (104).”
Como Tomaz nunca foi neo nem nunca sentiu a tentação do engajamento político, foi um defensor do divertimento muito antes desta data. Para começar, o facto de ter feito dois romances tão cómicos como Procissão dos Defuntos e Dom Tanas de Barbatanas punha-o num grupo muito selecto de autores portugueses que não se reviam no humanitarismo lírico-piegas. Tomaz queria que a leitura de Dom Tanas divertisse: “Se maçadora, a leitura de duas páginas desta crónica servirá de veronal. Se viva e jocosa – e quem me diz que não? – oporá a um dia amofinado um quarto de hora pacificador, talvez até de sorrisos, talvez dalguma gargalhada salutar (105).” No já citado prefácio a Procissão dos Defuntos, desabafou sobre a má vontade duma crítica virada exclusivamente para a sofredora seriedade: “A liberdade, o direito de brincar a sério, o direito lúdico, respeitado e até celebrado, por vezes, de quem joga as cristas com a melancolia, esse mal da paixão, foi-me, pela Crítica, seu tanto contestado (106).” Isto não quer dizer que os livros de Tomaz não sejam atravessados por um espírito ético, mas para ele não havia incompatibilidade entre divertir e denunciar. Poucos anos depois, e noutras paragens, Anthony Burgess respondia a um entrevistador: “Todos os meus romances pertencem a uma única categoria – planeados para ser, por assim dizer, entretenimento sério, nenhum âmbito moral, nenhuma solenidade. Quero agradar (107).”
Os pós-modernistas foram escritores artisticamente ambiciosos e iconoclastas, mas nem por isso perderam de vista o prazer da escrita e da leitura. Defendiam o direito do regresso ao enredo. O ano de 1967 foi extraordinário. Além do prefácio de Tomaz, John Barth publicou o famoso ensaio “The Literature of Exhaustion”, no qual defendeu a primazia do contar estórias. Entretanto, Robert Scholes publicava The Fabulators, defesa dos novos fabuladores que se afastavam do realismo para enfatizar o prazer de contar. Na Itália, Giorgio Manganelli publicava La Letteratura come Menzogna, um manifesto da literatura enquanto jogo intelectual. A ideia de que o romance pode ser um jogo foi desenvolvida por Torrente Ballester no ensaio El Quijote como juego (1975). Um dia perguntará GTB, “Será assim tão difícil admitir que isto de escrever não passa de um jogo? (108)” Em França, há vários anos que Raymond Queneau e outros membros do grupo OuLiPo expunham uma visão da literatura enquanto brincadeira intelectual. Mas o mais importante evento de 1967 foi a publicação de Cem anos de Solidão, que deixaria os leitores mundiais rendidos ao redescoberto prazer de contar estórias. Humildemente, Tomaz estava no meio deste redemoinho de mudanças.
8) Mas não viveu feliz para sempre
Entre 1947 e 1962, num ambiente hostil, Tomaz inventou parte considerável do pós-modernismo português. Mas ninguém lhe dá nenhum crédito por isso. Para os portugueses, é como se nunca tivesse existido. Nas raras ocasiões em que a Universidade se ocupa dele, trata-o como um desinteressante e serôdio regionalista. As escassas linhas que a História de Óscar Lopes e António José Saraiva lhe dedica tiram a vontade de o ler a qualquer um. Mas a visão dum Tomaz tradicionalista deriva somente do juízo sobre o homem, não sobre o escritor.
Este preconceito que ignora a obra está patente no ensaio de Eduardo Lourenço, o qual o seu redundante discípulo, Miguel Real, repetiu em Geração de 90, afincando em Tomaz duas palavras como se fossem as presas duma cobra: “nacionalista-regionalista (109)”. Para um encartado entendido, é uma análise demasiado mísera a respeito de um escritor que demonstrei com ampla evidência que foi um pioneiro décadas à frente de Saramago, fulcral em introduzir em Portugal o romance histórico metaficcional, o narrador metaficcional, o pastiche, a pontuação pessoal, o neobarroco, o fantástico. Contudo, ao sr. Real mereceu só uma execução rasteira. Ninguém, muito menos ele, realmente aguenta o neo-realismo, mas o seu espírito concentracionário ainda dita como avaliamos a literatura em Portugal. Os escritores são julgados ainda por opiniões políticas, não pelo talento e a ousadia com que afrontaram ideias feitas de bom gosto e bom senso. Espero que os meus compatriotas um dia aprendam a desencalhar a liberdade de espírito a meio caminho entre o Estado Novo e o PREC, mas vai sendo difícil manter a esperança viva.
A Universidade tem sérios problemas actualmente. Há décadas que não há um livro de história literária que produza surpresas. As narrativas são sempre as mesmas, com as mesmas personagens e os mesmos desenlaces. Ninguém apresenta teses novas que corram o risco de destabilizar ideias feitas. Isso tornou-se sobretudo claro na voga de biografias dos últimos sete anos. A biografia literária no estrangeiro desempenha uma função revisionista e subversora, trazendo ao público atenção sobre figuras esquecidas, marginalizadas, que merecem um novo olhar. Ninguém dava nada por Herman Melville quando Raymond Weaver lhe dedicou a primeira biografia (Herman Melville: Mariner and Mystic, 1921). A. J. A. Symons escreveu The Quest for Corvo: An Experiment in Biography (1934) precisamente porque Frederick Rolfe, o auto-denominado Baron Corvo, foi um genial excêntrico falhado de quem ninguém ouvira falar. O contraste não podia ser mais diferente com os biografados portugueses, as super-vedetas das Letras Lusas: Alexandre O’Neill (2007), Luiz Pacheco (2011), José Saramago (2018, 2022), Sophia de Mello Breyner (2019), Mário Cesariny (2019), Agustina Bessa-Luís (2019), José Cardoso Pires (2021), Fernando Pessoa (2022). A Contraponto tem na calha bios de Maria Teresa Horta e Herberto Helder. Antes de lermos, já sabemos como acabam; aliás, lemo-las porque não contêm mistérios nenhuns. Estas biografias não existem para repensar a história, mas para lucrarem com a familiaridade afectiva dos biografados. Não deixa de ser, por isso, surpreendente que várias destas biografias partam de convites de editores, de olho em bons negócios, em vez da vontade do biógrafo de remediar uma injustiça ou desatenção. Por essa razão, a biografia mais espiritualmente estrangeira entre nós é a que Cláudia Clemente dedicou à poeta Leonor de Almeida, que estava praticamente esquecida antes de ter sido resgatada em Tatuagens de Luz (2020). A biografia de Clemente não partiu dum convite de editor, mas dum episódio pessoal que se tornou demanda para conhecer outra pessoa.
Isto traz-nos de volta ao porquê deste ensaio. O desprezo votado à obra de Tomaz, embora lamentável, não é único. Até os contributos de Ruben A., Jorge de Sena e Cardoso Pires, que até há poucos anos pareciam inabaláveis, andam a ser apagados de modo a que Saramago se torne o exclusivo progenitor do pós-modernismo. No fundo, os historiadores não acreditam valer a pena lutar por os inserir num retrato mais fidedigno da história. Estão-se a habituar a um relato pré-formatado e não despegam dele. A questão não é saber quem é melhor; deixo a produção de cânones por fiat ao sr. António Feijó e seus parceiros ociosos. A questão é apurar que tipo de história literária queremos fazer em Portugal: hagiografia e panegírico rotineiros e perfunctórios; ou história rigorosa, metódica, fruto de temporadas em espólios e arquivos, situada no alargado contexto internacional, cheia de comparações ousadas e revalorizações de autores menosprezados, feita em boa fé mas também apaixonada, entusiasmante e motivada pela sensação de que vem colmatar uma lacuna acrescentar saber.
1 – Miguel Real, Filomena Oliveira, As 7 Vidas de José Saramago, Lisboa: Companhia das Letras, 2022, p. 33
2 – Umberto Eco, Porquê ‘O Nome da Rosa’?, Lisboa: Difel, 1984, p. 54
3 – Liberto Cruz, “Viragem do romance português”, em Arquivos do Centro Cultural Português, Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 3, 1971, p. 621
4 – Petar Petrov, “Literatura e cinema: a propósito dos contos de Jogos de Azar, de José Cardoso Pires”, pp. 99-106, acedido aqui.
5 – Carlos Reis e Fernando Martinho, “Literatura Portuguesa no século XX”, em Panorama da literatura universal, vol. 2, Lisboa: Círculo de Leitores, 1991, pp. 269-270
6 – Luís Mourão, “As polémicas de Vergílio Ferreira”, Estudos Literários, vol. 2, 2012: Literatura no Século XXI, pp. 526-530, acedido aqui.
7 – As 7 Vidas de José Saramago, p. 35
8 – Ana Paula Arnaut, Post-Modernismo no Romance Português Contemporâneo: fios de Ariadne, máscaras de Proteu, Coimbra: Livraria Almedina, 2002, p. 82
9 – Marcelo G. Oliveira, Modernismo tardio: os romances de José Cardoso Pires, Fernanda Botelho e Augusto Abelaira, Lisboa: Edições Colibri, 2012, p. 15
10 – Jorge de Sena, Entrevistas 1958-1978, edição de Mécia de Sena e Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa: Guimarães Editores, 2003, p. 358
11 – E. M. de Melo e Castro (ed.), Experiência de Liberdade: Antologia de textos publicados no suplemento ‘Artes e Letras’ do Diário de Notícias de Maio a Novembro de 1975, Lisboa: Diabril Editora, 1976, p. 230
12 – Entrevistas 1958-1978, p. 320
13 – Manuel do Nascimento, Encontros, Lisboa: Edição do Autor, 1961, p. 55
14 – Marcelo G. Oliveira, “O pós-modernismo saramaguiano e o neorrealismo de Levantado do chão”, Convergência Lusíada, n.º 30, Jun.-Dez. 2013, p. 74
15 – Alexandre O’Neill, Já Cá Não Está Quem Falou, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p. 160
16 – As 7 Vidas de José Saramago, p. 418
17 – As 7 Vidas de José Saramago, p. 33
18 – Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo, Lisboa: Ática, 1947, p. 76
19 – A Toca do Lobo, p. 78
20 – A Toca do Lobo, p. 87
21 – Nathalie Sarraute, A Era da suspeita, Lisboa: Guimarães Editores, 1963, p. 94
22 – Carta de Tomaz de Figueiredo a Carminé Nobre. Sem data mas anterior à publicação A Toca do Lobo nos meses finais do ano de 1947.
23 – Victor Falcão, “Um romance diferente dos outros”, Diário de Notícias, 19/11/47, pp. 1, 2
24 – Claude-Edmonde Magny, La era de la Novela Norteamericana, Buenos Aires, Juan Goyanarte Editor, 1972, pp. 209 e 210
25 – Citado em José Jorge Letria, Conversas com Letras, Lisboa: O Escritor, 1995, p. 110
26 – José Cardoso Pires, Os Caminheiros, Lisboa, Centro Bibliográfico, 1949, p. 11
27 – Tomaz de Figueiredo, “Sala de Jantar”, Diário Popular, 24/12/53, p. 11
28 – Tomaz de Figueiredo, Nó Cego, Lisboa: Guimarães Editora, 1950, p. 55
29 – Tomaz de Figueiredo, Dom Tanas de Barbatanas – O Doutor Geral, Lisboa: INCM, 2010, pp. 59-30 – Dom Tanas de Barbatanas – O Doutor Geral, p. 75
31 – Dom Tanas de Barbatanas – O Doutor Geral, p. 179
32 – A confissão de Eduardo Lourenço encontra-se em Viviane Ramond, A revista Vértice e o neo-realismo português, Coimbra: Angelus Novus, 2008, p. 51
33 – As 7 Vidas de José Saramago, p. 291
34 – As 7 Vidas de José Saramago, p. 420
35 – António Sérgio, Ensaios, Tomo V, 2ª ed., Lisboa: Publicações Europa-América, 1955, p.120
36 – Alfonso Reyes, “Sabor de Góngora” [1928], incluído em Obras completas, VII, Mexico City: Fondo de Cultura Económica, 1958, pp. 171-98. Andrés Sánchez Robayna, Nuevas cuestiones gongorinas, Madrid: Biblioteca Nueva, 2018
37 – As 7 Vidas de José Saramago, p. 464
38 – As 7 Vidas de José Saramago, p. 443
39 – Fernando Venâncio, “José Saramago e a iberização do português. Um estudo histórico”, em Burghard Baltrusch (ed.), “O que transforma o mundo é a necessidade e não a utopia” Estudos sobre utopia e ficção em José Saramago, Berlim: Frank & Timme, 2014, p. 98,
40 – Isabel Lucas, “Tenho um medo permanente de isto ter acabado”, Público, 07/1172014, acedido aqui.
41 – José María Gironella, “Viaje entorno al mundo literario español”, ABC Madrid, 22-02-1970, p. 120
42 – George Steiner, Linguagem e Silêncio, Lisboa: Gradiva, 2014, pp. 447-459
43 – Carlo Emilio Gadda, O Conhecimento da Dor, Lisboa, Ulisseia, 1966, p. 44
44 – Alejo Carpentier, Literatura e consciência política na américa latina, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1971, p. 45
45 – António Sérgio, O Seiscentismo, Lisboa: Edição da Seara Nova, 1926, pp. 38 e 15
46 – Eduardo Lourenço, “Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos”, O Tempo e o Modo, 1.ª série, n.º 42, Outubro de 1966, p. 930
47 – Artur Portela Filho, “Robbe-Grillet em Lisboa ou o sermão aos tractores”, Diário Popular/Quinta-Feira à Tarde, 16/04/64, p. 5
48 – João Gaspar Simões, “Gôngora na poesia portuguesa”, Diário Ilustrado, 04/08/61, p. 14, col. 1
49 – Artur Portela Filho, “Unidade e diversidade no Novo Romance português”, Jornal do Fundão/Nova Literatura, 02/06/63, pp. 7, 9
50 – Tomaz de Figueiredo, Dicionário Falado, Lisboa: INCM, 2009, p. 75
51 – Álvaro Santana-Acuña, Ascent to Glory: how One Hundred Years of Solitude was written and became a global classic, Columbia: Columbia University Press, 2020, p. 134
52 – Citado em Liberto Cruz e Madalena Carretero Cruz, Ruben A. Uma biografia, Lisboa: Editorial Estampa, 2012, p. 158.
53 – As 7 Vidas de José Saramago, p. 450
54 – Franco Nogueira. Um Político Confessa-se (Diário: 1960-1968), Porto: Livraria Editora Civilização, 1986, p. 291
55 – Eugénio Lisboa, Aperto Libro: Páginas de Diário 1 – 1977-1990, Guimarães: Opera Omnia, 2018, pp. 218-219
56 – Ambos os textos estão incluídos em O espírito da cultura portuguesa, Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural, 1967
57 – Citada em José Jorge Letria, Conversas com Letras, p. 173
58 – Joaquim Vieira, José Saramago: Rota de Vida: Uma Biografia, Lisboa: Livros Horizonte, 2018, p. 422
59 – “A investida da literatura latino-americana”; A Capital/Literatura e Arte, 20/05/70, pp. 1-12
60 – José Saramago, Levantado do Chão, 16.ª edição, Lisboa: Editorial Caminho, 2002, pp. 89-90
61 – Guimarães Rosa, Sagarana, 41.ª edição, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984, p. 19
62 – Ana Paula Arnaut (ed.), Entrevistas com António Lobo Antunes 1979-2007: Confissões do Trapeiro, Coimbra, Almedina, 2008, p. 27
63 – José Saramago em Carlos Reis, Diálogos com José Saramago, Lisboa: Caminho, 1998, p. 43
64 – Entrevistas com António Lobo Antunes 1979-2007: Confissões do Trapeiro, p. 307
65 – Tomaz de Figueiredo, A Má Estrela, Lisboa: INCM, 2007, p. 316
66 – Moniz Barreto, A literatura portuguesa no século XIX, Lisboa: Editorial Inquérito, 1940, p. 58
67 – Raul Sequeira (pseudónimo de Armando Bacelar), “O romance histórico”, Síntese, n.º 5, Abr. 1940, p. 21, col. 2
68 – Leonor Xavier, Falar de Viver, São Paulo: Difel, 1986, p. 207
69 – Leonor Xavier, Falar de Viver, São Paulo: Difel, 1986, p. 207
70 – Tomaz de Figueiredo, “Três glosas sobre o romance”, Rumo, n.º 5, Out. 1946, p. 128
71 – Dom Tanas de Barbatanas – O Doutor Geral, p. 234
72 – Dom Tanas de Barbatanas – O Doutor Geral, p. 58
73 – Dom Tanas de Barbatanas – O Doutor Geral, p. 53
74 – Dom Tanas de Barbatanas – O Doutor Geral, p. 59
75 – Esta passagem é citada em As 7 Vidas de José Saramago, p. 467
76 – José Saramago, Memorial do Convento, Benfica: Círculo de Leitores, 1999, p. 289
77 – José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 16.º edição, Lisboa: Editorial Caminho, 2003, p. 382
78 – Tomaz de Figueiredo, “A Bruxa”, Aléo, 22-09-45 p. 16
79 – Tomaz de Figueiredo, Procissão dos Defuntos, Lisboa: Guimarães Editora, 1954, pp. 106-108
80 – Procissão dos Defuntos, p. 231
81 – Procissão dos Defuntos, p. 127
82 – João Pedro de Andrade, “Crítica”, Diário Popular/Artes, 19/05/54, p. 13
83 – João Gaspar Simões, Almeida Garrett, Lisboa: Editorial Presença, 1964, p. 115
84 – Tomaz de Figueiredo, “Umas poucas palavras do autor”, Procissão dos Defuntos, Lisboa: Editorial Verbo, 1967, p. xiv
85 – Porquê ‘O Nome da Rosa’?, p. 58
86 – Theodore G. Ammon (ed.), Conversations with William H. Gass, Jackson, University Press of Mississippi, 2003, p. 16
87 – Arturo Uslar Pietri, Obras Selectas, Caracas: Edime, 1977, p. 960
88 – Alejo Carpentier, Literatura e consciência política na América Latina, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1971, p. 115
89 – Alejo Carpentier, O Reino deste Mundo, Lisboa: Editorial Presença, 1971, p. 43
90 – Gonzalo Torrente Ballester, “Prólogo a Obra Completa”, Obra completa, Barcelona: Destino, 1977, p. 31
91 – Citado em Plinio Apuleyo de Mendoza, O Aroma da Goiaba, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005, p. 88
92 – As 7 Vidas de José Saramago, p. 242
93 – Georg Lukács, Significado Presente do Realismo Crítico, Lisboa: Cadernos de Hoje, 1964, p. 82
94 – Jorge de Sena, Antigas e Novas Andanças do Demónio, Lisboa: Guimarães Editores, 2015, p. 231
95 – Antigas e Novas Andanças do Demónio, pp. 234 e 236
96 – Tzvetan Todorov, Introdução à Literatura Fantástica, Lisboa: Moraes Editores, 1977, pp. 51, 52
97 – Introdução à Literatura Fantástica, p. 71
98 – Gabriel García Márquez, Os Funerais da Mamã Grande, Lisboa: Quetzal Editores, 2001, p. 154
99 – Mário Domingues, Marquês de Pombal: o homem e a sua época, Lisboa: Prefácio, 2002, p. 282
100 – Wayne C. Booth, A Retórica da Ficção, Lisboa: Arcádia, 1980, p.174, p. 81
101 – Porquê ‘O Nome da Rosa’?, p. 54
102 – Porquê ‘O Nome da Rosa’?, p. 16
103 – Porquê ‘O Nome da Rosa’?, p. 48
104 – Júlio Conrado, Olhar a Escrita, Lisboa: Vega, 1986, pp. 95 e 96
105 – Tomaz de Figueiredo, “‘Tenho seis romances para publicar’ – diz-nos Tomaz de Figueiredo”, Diário Ilustrado/Diálogo, 28/12/61, p. 14, col. 2
106 – Tomaz de Figueiredo, “Umas poucas palavras do autor”, Procissão dos Defuntos, p. xiv
107 – Earl G. Ingersoll e Mary C. Ingersoll (ed.), Conversations with Anthony Burgess, Jackson: University Press of Mississippi, 2008, p. 64
108 – Gonzalo Torrente Ballester, Cotufas en el golfo, Barcelona: Ediciones Destino, 1987, p. 12
109 – Miguel Real, Geração de 90: romance e sociedade no Portugal contemporâneo, Porto, Campo das Letras, 2001, p. 110