Entender o português através do latim
Nós – portugueses, brasileiros, angolanos, moçambicanos, guineenses, cabo-verdianos e tantos outros que nos exprimimos em português – usamos dezenas de palavras cujo sentido original só o latim nos pode relevar.
Por isso digo sempre: como entender um ensino secundário lusófono de que o latim está ausente? Como chegámos ao ponto de quase exterminar o latim do nosso sistema de ensino? Que crime foi este contra as gerações futuras?
Um aluno português do ensino secundário desconhece por que razão ele diz «a minha mãe SABE fazer boas sobremesas» e «SABE bem uma boa sobremesa»(muito embora no Brasil esta segunda acepção do verbo «saber» não seja muito corrente, no sentido de «ter bom sabor», «ser aprazível», como no segundo exemplo, em que uma sobremesa «saber bem» significa que «é prazeroso comer uma boa sobremesa»). No entanto, um seu colega italiano, a frequentar o ensino secundário em Itália, conhece a razão pela qual (por exemplo) «saporito» e «sapienza» têm a mesma origem.
Como se explica então os dois usos aparentemente diferentes de «saber» em português? A resposta está no latim. É que, em latim, «sapientia» (sabedoria) vem do verbo «sapĕre» (e não do inexistente «sapīre», como nos diz o Dicionário da Academia das Ciências com chocante e vergonhosa ignorância; leiam antes o verbete sobre «saber» no brilhante dicionário do brasileiro Aurélio). Ora «sapĕre» significa à letra «ter gosto» e, também, «ter bom gosto». Chamar «sábio» a alguém implica dizer que essa pessoa tem bom gosto. Uma pessoa sábia gostará sempre de Maria Callas.
O latim mostra-nos a ligação entre as palavras. Abre-nos o horizonte completo do sentido da língua que falamos, todos os dias, nos vários países de expressão lusófona. O latim mostra-nos que «dócil» significa, na verdade, «ensinável», porque vem do verbo latino «docēre» (cujo particípio perfeito é «doctus», donde vem a palavra portuguesa «doutor», aquele que foi ensinado).
«Infância», por seu lado, é o estado em que não se consegue falar, pois é a negação de «fārī» em latim, verbo que significa «dizer». Ser criança é não ter direito a fala própria. Quantos de nós não vivemos isso! Chegar a adulto é, finalmente, ter voz.
E quantas vezes «falar» não equivale a «inventar» ou mesmo a «mentir» (como bem sabia Freud)? Isso é porque vem de «fābulārī», verbo que para os romanos antigos tanto significava «falar» como «efabular» (donde temos, em português, «fábula» e «falar»).
«Nádega» vem da palavra latina «natis» (com o mesmo sentido de «nádega»), que se relaciona com a palavra grega «nōton» (νῶτον), que significa «dorso». Para os antigos, pelos vistos, ver alguém de costas era olhar só para o traseiro. Quando Homero fala do «amplo dorso do mar», está a pensar, talvez, no mar como enormíssima bunda.
«Cutis» em latim significa «pele»; mas quantos de nós vemos a relação com «escudo» (em latim «scūtum»)? E quantos de nós sabemos que «peste» e «perda» vêm ambas do verbo latino «perdĕre», cognato do verbo grego para destruir («perthein», πέρθειν)?
Uma coisa «crua» é, na verdade, «dura» (veja-se em latim «crūdus», cognato tanto de «crustáceo» como de «cristal»).
Um «estúpido» é, na realidade, apenas alguém que está surpreendido ou espantado (lembremos a frase da ópera de Verdi «stupito io n’era per le udite cose», tão maravilhosamente pronunciada por esse génio da verbalização da língua italiana: a já mencionada Maria Callas). Vem do verbo latino «stupeo», cognato de «túptō» (τύπτω) em grego, que significa «percutir», «bater». A pessoa «estúpida» levou uma pancada metafórica que a pôs meio apardalada. Outra palavra com a mesma etimologia é «tímpano».
Uma pessoa «meticulosa» é, desculpem-me os compulsivos-obsessivos, uma pessoa cheia de medo, porque o étimo do adjetivo é «metus» (a palavra latina para «medo»). Por outro lado, a pessoa «curiosa» é uma pessoa «cuidadosa» (porque «curioso» vem da palavra latina «cūra», correspondente a «cuidado» em português, mas que, em latim, significa também «ansiedade»: ser curioso é, por definição, ser um pouco ansioso).
E o que são «lentilhas»? São legumes como aspecto de «sardas» (em latim «lentigines»). E, já que estamos na cozinha, talvez se os nossos irmãos brasileiros sonhassem que «alho-poró» e «porra» derivam ambos do substantivo latino «porrum» (cognato de «práson», πράσον, em grego: «alho-porro»), talvez preferissem dizer, como em Portugal, «alho francês». Alguns linguistas, descontentes com a ideia de que a palavra ordinária para sémen («esporra») vem da palavra que significa um vegetal de formato fálico, argumentam que deriva do grego σπέρμα («esperma»); mas «porra», «porrada» e «esporra» vêm, antes, do latim «porrum». Basta ir ao norte de Portugal por altura do São João para ver os alhos fálicos com seus bolbos iguais a testículos. Já agora, «colhões» derivam da palavra latina «cōleī» («testículos»), vocábulo que já na Roma antiga era usado com intuito real e intuito metafórico. Petrónio escreve no Satyricon «sī nōs cōleōs habērēmus» («se nós tivéssemos colhões») com o sentido «se fôssemos machos a sério». Mas Marcial fala em «depilātōs cōleōs» («colhões depilados»), o que nos indica que os antigos romanos já eram fãs do que se chama hoje, em inglês, «manscaping».
Na nossa língua, «facilidade» e «faculdade» são coisas muito diferentes, mas ambas as palavras vêm do mesmo étimo latino. Talvez assim se explique a razão pela qual hoje em dia a passagem por uma faculdade (pelo menos em Portugal…) seja tão estupidamente fácil. As faculdades têm a facilidade inscrita no seu ADN linguístico.
Quando falamos de uma chuva «torrencial» e falamos de estarmos de um sol «tórrido», pensamos erradamente que as duas palavras são intrinsecamente antónimas. Mas não são. Ambas provêm do verbo latino «torrēre», que significa «arder». A palavra latina «torrens», particípio de «torrēre» e donde vem a nossa palavra «torrente», designa algo que ardentemente fervilha. Uma torrente de água sugere, assim, um fervilhar borbulhante de líquido.
Finalmente: quem pronuncia mais corretamente? Os portugueses, que dizem «pénis»? Ou os brasileiros, que dizem «pênis»? De acordo com a origem latina da palavra, são os brasileiros que usam a pronúncia correta, já que se trata de um «e» longo em latim («pēnis»).
A palavra latina para «pénis» era originalmente «pĕsnis», que evoluiu para «pēnis». O étimo «pes-», com outra realização vocálica, está presente na palavra grega para o órgão genital masculino, «posthē» (πόσθη), que curiosamente é feminina. Tal como «piroca».
(na imagem: ruínas romanas na imaginação do pintor setecentista italiano Giovanni Paolo Pannini)