Entre amigos
Tempos estranhos estes, leitores. Mas por outro lado, terá havido alguns que o não tenham sido? Duvido. Mas é com estes dias que temos de lidar; e estes são os dias em que todos os dias existem “estudos”.
Sabeis do que falo. É difícil escapar a uma publicação que nos grita que um “estudo” decidiu que o pepino não existe; que respirar é perigoso; que usar pijama está por enquanto fora de moda; que ler crónicas de sujeitos com o apelido Guedes pode ser nocivo à saúde. E por aí fora.
A ideia que parece transversal às conclusões destes “estudos” é esta: “estudámos” o óbvio, e concluímos que o óbvio não apresenta grandes interpretações. É, como dizem os “estudos”, óbvio.
Mas pronto: toda a gente tem direito a “estudar” o que quiser, embora não me importasse nada de conhecer quem financia estas actividades. Dava um jeitão ser subsidiado para um “estudo” que concluísse que à noite temos sono, por exemplo.
Daí que sem surpresa tropecei em mais uma investigação rigorosíssima e essencial à humanidade que concluía que a amizade entre homens heterossexuais durava mais e melhor do que as relações românticas ou casamentos dos sujeitos estudados. Deixem-me colocar a coisa em termos modernos: o “bromance” – contracção entre ‘brother’ ou ‘bro’ (mano) e romance – é coisa mais perene do que namoros ou matrimónios. Ainda bem que alguém pagou a alguém este “estudo”, sob pena de vaguearmos nas trevas até ao fim dos tempos.
Mas pelo menos deu-me assunto, o que nem sempre é fácil. Numa altura em que existe uma fúria igualitária que chega mesmo ao modo de sentir, haja um “estudo” – por mais ocioso e parvo que seja – que lembre que há diferenças. E é nelas que devemos rejubilar. Não falo de hierarquias: a amizade masculina não é melhor, mais leal ou seja o que for do que a amizade entre mulheres. É apenas diferente. E sinceramente, se é ou não mais duradoura do que as “relações” é irrelevante.
Há muitos exemplos públicos e notórios deste fenómeno agora “estudado”: Sinatra e Dean Martin, Kingsley Amis e Philip Larkin, Lobo Antunes e Cardoso Pires. E tantos outros que vivem felizmente no quotidiano. Como é o meu caso e poderá ser o seu, leitor.
Eu conto, só como exemplo: há pouco tempo fiz uma longa viagem, cerca de cinco a seis horas de carro. Um terço desse período foi passado em completo silêncio, com a excepção da música que se fez ouvir na rádio. Os outros dois terços foram mais ruidosos: inventaram-se línguas estranhas para canções, partilharam-se escatologias sem pudor, disseram-se grosserias a sorrir, falou-se de cinema e de episódios marcantes da vida, lembraram-se lengalengas infantis e brejeiras. Rimos, rimos muito. O silêncio foi apenas um parêntesis necessário para tudo isto. E “isto” são quatro amigos em viagem. Nem sequer quatro amigos “íntimos”, de frequência constante e confidentes – apenas gente que se gosta e que circunstâncias profissionais junta de quando em vez.
Isto, para mim, que não tenho “estudos”, é a essência de uma amizade masculina (e pronto, no caso heterossexuais apenas porque calhou assim). A assiduidade nunca está em questão, nunca está à prova. O silêncio é suportado naturalmente e até bem-vindo. Partilhar o silêncio com uma amiga é muito mais difícil. E isto não é um julgamento, apenas uma constatação de quem tem grandes amigas mulheres.
Isso e esse regresso a uma adolescência artificial e efémera faz um pouco da amizade masculina.
Os homens adultos, quando se juntam, transformam-se em crianças velhas e livres. A escritora Iris Murdoch, que não era exactamente uma admiradora deste estado, definiu-nos bem: “ [a companhia masculina] é uma espécie de cumplicidade no crime, (…) de deglutir o presente de forma gulosa mesmo que o inferno esteja por todo o lado”. Terá razão. Mas ainda assim prefiro o que escreveu Montaigne após a morte do seu grande amigo La Boétie: “Se me obrigassem a dizer porque o amava, sinto que a minha única resposta seria: ‘Porque era ele, porque era eu’ ”.
Olho uma fotografia: mostra Humphrey Bogart a aninhar o seu grande e pequeno amigo Peter Lorre sob um enorme abraço, com o olhar benevolente de Lauren Bacall. E penso que este sim, é o mundo, e que se lixem os “estudos”.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.