Entrevista. “A deficiência não define ninguém”: Tomás Delfim e a urgência de um jornalismo acessível e plural

Esta entrevista foi realizada no âmbito do curso de Jornalismo da NOVA FCSH.
Em Portugal, são ainda raros os rostos com deficiência nos meios de comunicação – não por falta de talento, mas por ausência de oportunidade. Tomás Delfim, jornalista, atleta e voz ativa pela acessibilidade, rejeita ser definido pela deficiência – e abre caminho para que outros também não o sejam.
Mesmo com a correria das gravações do seu novo projeto Era Uma Voz, lançado no dia 1 de junho, Tomás manteve-se sempre disponível. O podcast, que explora os bastidores das dobragens que marcaram gerações, tem sido bem recebido. No início, pediu para ser tratado por “tu”, corrigindo com um sorriso sempre que escapava o “você”. Após concluir a licenciatura em Jornalismo, começou a colaborar com a Mensagem de Lisboa. Em 2024, iniciou uma nova etapa no Expresso, integrando a equipa de podcasts – “uma dimensão à qual não estava habituado”, admite. Nos primeiros meses, sugeriu cobrir os Jogos Paralímpicos de Paris. A experiência foi marcante não só pela oportunidade profissional, mas também por estar dos dois lados da notícia – como jornalista e protagonista de uma cobertura inédita. Pela primeira vez, uma televisão portuguesa transmitiu em direto reportagens conduzidas por um jornalista com deficiência visual. Apesar da visibilidade, prefere manter-se fora do centro das atenções e concentrar-se no trabalho. Aos 23 anos, oferece uma perspetiva única sobre acessibilidade nos media e na comunicação – ou, muitas vezes, sobre a sua ausência. Enquanto grava o seu podcast Era Uma Voz, Tomás faz ouvir a sua – não apenas em nome da acessibilidade, mas em defesa de um jornalismo que representa, inclui e transforma.
Entre escolhas, barreiras e conquistas: o caminho até uma voz própria no jornalismo
Como decidiste seguir jornalismo?
No fim do secundário, estava indeciso. Cheguei a pensar em psicologia, mas optei pela área da comunicação com um amigo, que também é cego e partilhou grande parte do meu percurso. Foi uma escolha intuitiva. O talento que lhe reconheci deu-me o impulso para tentar também. A minha primeira opção foi Ciências da Comunicação, mas acabei por entrar em Jornalismo, que era a segunda. Nunca senti que estivesse no curso errado. Desde que comecei, em setembro de 2020, senti que estava no lugar certo.

Como foi a tua integração nas redações? Que desafios enfrentaste no início e que mudanças propuseste para melhorar a acessibilidade?
A minha primeira experiência numa redação ocorreu em 2023, logo após a licenciatura, na Mensagem de Lisboa. Antevia algumas dificuldades, sobretudo por ter deficiência visual. Fui bem acolhido desde o começo, com atenção e adaptações às minhas necessidades. Mais tarde, entrei para o Expresso, onde, por ser uma redação maior, surgiram novos desafios. Propus, por exemplo, etiquetas em braille nas portas e ajustes nas ferramentas de edição. No início, enfrentei obstáculos, mas hoje o caminho está mais preparado. Quem vier depois, não terá de subir os mesmos degraus. Se eu ainda cá estiver, tenho todo o gosto em ajudar.
Desde 2024, estás na equipa de podcasts do Expresso e tens agora um novo desafio – o podcast Era uma Voz. Como é que tem sido essa experiência?
Desde a faculdade, sempre quis criar um espaço meu. O formato auditivo do podcast atraía-me pela acessibilidade que oferece. Cada formato tem vantagens e desvantagens: por exemplo, embora o podcast seja ótimo para pessoas com deficiência visual, reconheço que pode ser limitador para quem tem deficiência auditiva. O podcast surgiu como um desafio e uma oportunidade de crescimento pessoal e profissional. Ter um produto jornalístico assinado por mim, com a minha voz, tem sido importante.
Como é que as relações com entrevistados e colegas te influenciam pessoal e profissionalmente?
Todas as pessoas com quem nos cruzamos têm algum tipo de influência, seja a nível pessoal ou profissional. Enquanto pessoa com deficiência, acabo por ser um elemento diferente na equação. Interajo com muitas pessoas normativas, sem deficiência, que raramente têm contacto com quem a tem. Essa diferença costuma impactar mais os outros do que a mim. Foi o que senti, por exemplo, quando apareci em direto durante os Jogos Paralímpicos. Tenho tido a sorte de trabalhar num meio, o jornalismo, onde geralmente encontro pessoas de mente aberta.
Muito para ver além do ecrã: representações, estigmas e o impacto da invisibilidade
Consideras que o facto da tua cobertura dos Jogos Paralímpicos [em 2024] ter sido tão mediatizada reflete, de certa forma, a falta de normalização da presença de pessoas com deficiência nos media?
Sim, penso que evidencia isso. O facto de ser uma pessoa com deficiência visual a fazer essa cobertura deu maior visibilidade aos Paralímpicos, algo positivo. O futebol masculino sénior domina a atenção mediática, ofuscando quase todas as outras modalidades. O desporto adaptado permanece marginalizado nos media. Acredito que, se eu não tivesse ido, a cobertura poderia nem sequer existir. Ainda assim, recebi mensagens de pessoas com deficiência que se sentiram representadas e renovaram a esperança ao ver alguém como elas na televisão.

A presença de jornalistas com deficiência em reportagens ou diretos televisivos continua a ser muito rara. O que pode explicar essa ausência?
Grande parte deve-se a preconceitos enraizados entre quem decide contratar e criar oportunidades. Há uma sub-representação de pessoas com deficiência nos media, tal como acontece com pessoas negras ou com mulheres em cargos de liderança. O percurso ainda é longo e desafiante. Quando alguém com deficiência surge, destaca-se justamente por ainda ser raro. Como há poucos exemplos, há a tendência a achar que os obstáculos vão ser muitos, embora, na prática, muitos são perfeitamente superáveis. Surpreende-me que a presença de intérpretes de língua gestual ainda cause estranheza. É urgente normalizar. Quanto mais natural for essa presença, mais fácil será incluir. A inclusão começa dentro das redações. O critério de entrada deve ser sempre o mesmo: valor e qualidade do trabalho.
As pessoas com deficiência são, de forma geral, ouvidas e representadas nas próprias peças jornalísticas? Que espaço lhes é atribuído e como é que costumam surgir nos media?
Elas continuam a lutar pelo espaço justo nas redações e nas reportagens. Há muitos temas para abordar, mas por falta de conhecimento, acabam por não ser tratados ou são abordados de forma inadequada. Quem faz a cobertura muitas vezes não está preparado para tratar esses assuntos corretamente, porque não recebe formação adequada. É fundamental começar a abordar estes temas, mesmo que cometam erros no processo. Esses erros servirão para mostrar o que não fazer e ajudar a criar bons exemplos. O essencial é dar o primeiro passo para que a evolução se torne inevitável.
Muitos programas de entretenimento, ou até mesmo informativos, recorrem a histórias com forte carga emocional para criar um vínculo com a audiência. Quando envolvem pessoas com deficiência nestes formatos, qual é o tipo de representação que prevalece?
Qualquer pessoa que participa nesses formatos acaba por transmitir uma imagem moldada pela lógica do programa. Ainda assim, existe sempre a possibilidade de quem está nesse lugar contrariar a narrativa esperada, usando o espaço para afirmar a sua voz. A questão é saber se a audiência está disponível para ouvir ou se limita a olhar e a pensar “coitadinho”. As pessoas que veem alguém com deficiência como um “herói” deviam perguntar-se: “Será que eu iria querer que as pessoas me achassem um herói só porque faço a minha vida normal?”. A resposta seria não. Essa perceção nasce muitas vezes de uma falsa empatia, que se alimenta da ideia de inspiração, mas que é, no fundo, sensacionalismo. É muito fácil puxar para o sensacionalismo nestes assuntos e essa tentação deve ser travada, porque está em causa a dignidade das pessoas. Quem vive com deficiência tende a valorizar o oposto: o direito de passar despercebido. Quanto menos heroísmo se associar à deficiência, melhor. Já participei em formatos deste tipo, mas não voltaria se fosse a minha deficiência, e não eu, a verdadeira convidada.

Para quem está do outro lado do ecrã, quais são os riscos de uma representação mediática distorcida ou simplista das pessoas com deficiência?
O risco é exatamente aquilo que já acontece. A imagem que passa nos ecrãs acaba por moldar a perceção social e manifesta-se no dia a dia, quando nos cruzamos com alguém num transporte público, na rua ou no supermercado. Claro que há pessoas simpáticas, informadas e com bom senso, mas infelizmente são uma minoria. Muitas pessoas adotam posturas destrutivas, não de forma violenta, mas através daquilo a que se chamam microagressões. Esta realidade repete-se constantemente. A ausência de representatividade realista, somada à divulgação de ideias redutoras ou pejorativas sobre a deficiência, afeta-nos diretamente. Quem consome essas imagens forma ideias erradas e age com base nesses preconceitos.
Acessibilidade é para todos: mudar mentalidades e tornar os media verdadeiramente inclusivos
A acessibilidade pode ser vista como algo exclusivo para pessoas com deficiência. Como podemos desconstruir essa ideia e mostrar que beneficia todos?
Ainda se associa a acessibilidade apenas a rampas, elevadores ou semáforos sonoros – o lado físico. Ela começa muito antes disso: está na forma como as pessoas se relacionam connosco. É raro alguém saber abordar uma pessoa com deficiência sem paternalismo. A acessibilidade começa na cabeça das pessoas. Esse trabalho, embora menos visível, é tão ou mais urgente do que qualquer adaptação física.
Ainda persiste muito a ideia de que, se a maioria entende, então não vale a pena mudar?
Acho que falta cuidado com termos que podem ferir suscetibilidades. As pessoas agarram-se a certas palavras por teimosia, mesmo quando existem alternativas mais inclusivas. Um exemplo é o uso de “invisual” – que nem é um termo correto – e que ainda persiste, apesar das conotações negativas associadas. Muitas vezes, considera-se que “está bom assim” e, por isso, não vale a pena mudar. No entanto, há formas legítimas e necessárias de rever e atualizar o vocabulário para refletir respeito e inclusão. Esse tipo de mudança ainda gera resistência.
Como é que se pode promover uma verdadeira literacia sobre deficiência dentro das redações e junto do público?
Ter pessoas com deficiência nas redações é fundamental. Não acredito que só eu tenha querido ser jornalista – há certamente mais, mas continuam fora desses espaços. A presença de alguém com essa vivência é essencial, nem que seja para consultar ao tratar certos temas. Existem guias de linguagem inclusiva, como os da Access Lab, mas raramente são usados – ou quando o são, é de forma incorreta. Tudo acaba por depender do bom senso de quem escreve. Falta divulgação dessas ferramentas e vontade real de aprender a tratar estes assuntos com rigor e respeito.

A acessibilidade na comunicação é frequentemente vista como um custo extra ou uma obrigação legal. Como é que se pode inverter esta perceção?
Tudo depende de quem toma as decisões. Enquanto se pensar que comunicar para todos é secundário ou demasiado caro, continuamos presos a uma lógica ultrapassada, que é um entrave ao progresso. A comunicação tem de incluir todas as pessoas, não só aquelas a quem achamos que estamos a falar. Cada pessoa é diferente. Quanto mais cedo houver essa consciência, melhor.
A ideia de que a comunicação acessível é cara é realmente verdadeira ou um exagero por desconhecimento?
Imagino que existam custos, sim. É preciso pagar intérpretes de língua gestual, quem faça legendas descritivas… São serviços que têm de ser remunerados. Mas isso é tão necessário quanto pagar o salário a um jornalista, a um cameraman ou a um editor. Não são custos extra – já deviam estar incluídos no orçamento habitual. Só parecem adicionais porque ainda não o estão. Eu acho que, enquanto a acessibilidade não fizer parte da cultura e da responsabilidade de quem contrata, ferramentas como as quotas de admissibilidade são úteis. Num mundo ideal, a inclusão estaria assegurada e elas deixariam de ser necessárias.
Portugal tem leis e convenções sobre acessibilidade, mas como avalias a aplicação prática dessas normas nos media?
Apesar dos avanços legislativos, a representatividade ideal ainda não se reflete nos media, mostrando que não são cumpridos na prática. Falta maior parceria e comunicação entre os meios para dar mais visibilidade a estas questões. A fiscalização é complicada, porque quem deve fiscalizar precisa de sensibilidade para isso. A ausência de fiscalização efetiva acaba por ser uma forma de complacência com a exclusão, o que perpetua a falta de acessibilidade nos meios de comunicação.
Abrir caminho para quem vem a seguir
O que gostarias de mudar na cultura jornalística nos próximos anos?
Apenas gostaria que o meu trabalho mostrasse que o jornalismo é acessível a quem quiser, incluindo pessoas com deficiência. Espero que isso sensibilize quem decide. Ter mais representatividade e uma visão mais ampla nos media seria muito positivo. A deficiência não define ninguém. A deficiência não é um traço de personalidade.
Se um dia criasses um podcast sobre ti, como se chamaria?
Provavelmente não o faria (risos). Como jornalista, prefiro não ser o assunto. Gostava de ver um podcast que desse oportunidade a pessoas com deficiência de falarem das próprias experiências e envolvesse também quem não a tem – para mostrar que esses temas dizem respeito a todos. Seria importante criar espaços de contacto e diálogo, para desmistificar a ideia de que só quem vive com deficiência pode falar sobre ela. Desmistificar começa por incluir, não por separar.