Entrevista. “A deficiência não define ninguém”: Tomás Delfim e a urgência de um jornalismo acessível e plural

por Guilherme Pinto,    30 Junho, 2025
Entrevista. “A deficiência não define ninguém”: Tomás Delfim e a urgência de um jornalismo acessível e plural
Podcast “Era Uma Voz”, de Tomás Delfim e Expresso / DR
PUB

Esta entrevista foi realizada no âmbito do curso de Jornalismo da NOVA FCSH.

Em Portugal, são ainda raros os rostos com deficiência nos meios de comunicação – não por falta de talento, mas por ausência de oportunidade. Tomás Delfim, jornalista, atleta e voz ativa pela acessibilidade, rejeita ser definido pela deficiência – e abre caminho para que outros também não o sejam.

Mesmo com a correria das gravações do seu novo projeto Era Uma Voz, lançado no dia 1 de junho, Tomás manteve-se sempre disponível. O podcast, que explora os bastidores das dobragens que marcaram gerações, tem sido bem recebido. No início, pediu para ser tratado por “tu”, corrigindo com um sorriso sempre que escapava o “você”. Após concluir a licenciatura em Jornalismo, começou a colaborar com a Mensagem de Lisboa. Em 2024, iniciou uma nova etapa no Expresso, integrando a equipa de podcasts – “uma dimensão à qual não estava habituado”, admite. Nos primeiros meses, sugeriu cobrir os Jogos Paralímpicos de Paris. A experiência foi marcante não só pela oportunidade profissional, mas também por estar dos dois lados da notícia – como jornalista e protagonista de uma cobertura inédita. Pela primeira vez, uma televisão portuguesa transmitiu em direto reportagens conduzidas por um jornalista com deficiência visual. Apesar da visibilidade, prefere manter-se fora do centro das atenções e concentrar-se no trabalho. Aos 23 anos, oferece uma perspetiva única sobre acessibilidade nos media e na comunicação – ou, muitas vezes, sobre a sua ausência. Enquanto grava o seu podcast Era Uma Voz, Tomás faz ouvir a sua – não apenas em nome da acessibilidade, mas em defesa de um jornalismo que representa, inclui e transforma.

Entre escolhas, barreiras e conquistas: o caminho até uma voz própria no jornalismo

Como decidiste seguir jornalismo?

No fim do secundário, estava indeciso. Cheguei a pensar em psicologia, mas optei pela área da comunicação com um amigo, que também é cego e partilhou grande parte do meu percurso. Foi uma escolha intuitiva. O talento que lhe reconheci deu-me o impulso para tentar também. A minha primeira opção foi Ciências da Comunicação, mas acabei por entrar em Jornalismo, que era a segunda. Nunca senti que estivesse no curso errado. Desde que comecei, em setembro de 2020, senti que estava no lugar certo.

Tomás Delfim no estúdio do Expresso

Como foi a tua integração nas redações? Que desafios enfrentaste no início e que mudanças propuseste para melhorar a acessibilidade?

A minha primeira experiência numa redação ocorreu em 2023, logo após a licenciatura, na Mensagem de Lisboa. Antevia algumas dificuldades, sobretudo por ter deficiência visual. Fui bem acolhido desde o começo, com atenção e adaptações às minhas necessidades. Mais tarde, entrei para o Expresso, onde, por ser uma redação maior, surgiram novos desafios. Propus, por exemplo, etiquetas em braille nas portas e ajustes nas ferramentas de edição. No início, enfrentei obstáculos, mas hoje o caminho está mais preparado. Quem vier depois, não terá de subir os mesmos degraus. Se eu ainda cá estiver, tenho todo o gosto em ajudar.

Desde 2024, estás na equipa de podcasts do Expresso e tens agora um novo desafio – o podcast Era uma Voz. Como é que tem sido essa experiência?

Desde a faculdade, sempre quis criar um espaço meu. O formato auditivo do podcast atraía-me pela acessibilidade que oferece. Cada formato tem vantagens e desvantagens: por exemplo, embora o podcast seja ótimo para pessoas com deficiência visual, reconheço que pode ser limitador para quem tem deficiência auditiva. O podcast surgiu como um desafio e uma oportunidade de crescimento pessoal e profissional. Ter um produto jornalístico assinado por mim, com a minha voz, tem sido importante.

Como é que as relações com entrevistados e colegas te influenciam pessoal e profissionalmente?

Todas as pessoas com quem nos cruzamos têm algum tipo de influência, seja a nível pessoal ou profissional. Enquanto pessoa com deficiência, acabo por ser um elemento diferente na equação. Interajo com muitas pessoas normativas, sem deficiência, que raramente têm contacto com quem a tem. Essa diferença costuma impactar mais os outros do que a mim. Foi o que senti, por exemplo, quando apareci em direto durante os Jogos Paralímpicos. Tenho tido a sorte de trabalhar num meio, o jornalismo, onde geralmente encontro pessoas de mente aberta.

Muito para ver além do ecrã: representações, estigmas e o impacto da invisibilidade

Consideras que o facto da tua cobertura dos Jogos Paralímpicos [em 2024] ter sido tão mediatizada reflete, de certa forma, a falta de normalização da presença de pessoas com deficiência nos media?

Sim, penso que evidencia isso. O facto de ser uma pessoa com deficiência visual a fazer essa cobertura deu maior visibilidade aos Paralímpicos, algo positivo. O futebol masculino sénior domina a atenção mediática, ofuscando quase todas as outras modalidades. O desporto adaptado permanece marginalizado nos media. Acredito que, se eu não tivesse ido, a cobertura poderia nem sequer existir. Ainda assim, recebi mensagens de pessoas com deficiência que se sentiram representadas e renovaram a esperança ao ver alguém como elas na televisão.

Tomás Delfim ao lado de José Cedovim Pinto. Os jornalistas do Expresso venceram o Prémio de Jornalismo Desportivo pela cobertura dos Jogos Paralímpicos de Paris

A presença de jornalistas com deficiência em reportagens ou diretos televisivos continua a ser muito rara. O que pode explicar essa ausência?

Grande parte deve-se a preconceitos enraizados entre quem decide contratar e criar oportunidades. Há uma sub-representação de pessoas com deficiência nos media, tal como acontece com pessoas negras ou com mulheres em cargos de liderança. O percurso ainda é longo e desafiante. Quando alguém com deficiência surge, destaca-se justamente por ainda ser raro. Como há poucos exemplos, há a tendência a achar que os obstáculos vão ser muitos, embora, na prática, muitos são perfeitamente superáveis. Surpreende-me que a presença de intérpretes de língua gestual ainda cause estranheza. É urgente normalizar. Quanto mais natural for essa presença, mais fácil será incluir. A inclusão começa dentro das redações. O critério de entrada deve ser sempre o mesmo: valor e qualidade do trabalho.

As pessoas com deficiência são, de forma geral, ouvidas e representadas nas próprias peças jornalísticas? Que espaço lhes é atribuído e como é que costumam surgir nos media?

Elas continuam a lutar pelo espaço justo nas redações e nas reportagens. Há muitos temas para abordar, mas por falta de conhecimento, acabam por não ser tratados ou são abordados de forma inadequada. Quem faz a cobertura muitas vezes não está preparado para tratar esses assuntos corretamente, porque não recebe formação adequada. É fundamental começar a abordar estes temas, mesmo que cometam erros no processo. Esses erros servirão para mostrar o que não fazer e ajudar a criar bons exemplos. O essencial é dar o primeiro passo para que a evolução se torne inevitável.

Muitos programas de entretenimento, ou até mesmo informativos, recorrem a histórias com forte carga emocional para criar um vínculo com a audiência. Quando envolvem pessoas com deficiência nestes formatos, qual é o tipo de representação que prevalece?  

Qualquer pessoa que participa nesses formatos acaba por transmitir uma imagem moldada pela lógica do programa. Ainda assim, existe sempre a possibilidade de quem está nesse lugar contrariar a narrativa esperada, usando o espaço para afirmar a sua voz. A questão é saber se a audiência está disponível para ouvir ou se limita a olhar e a pensar “coitadinho”. As pessoas que veem alguém com deficiência como um “herói” deviam perguntar-se: “Será que eu iria querer que as pessoas me achassem um herói só porque faço a minha vida normal?”. A resposta seria não. Essa perceção nasce muitas vezes de uma falsa empatia, que se alimenta da ideia de inspiração, mas que é, no fundo, sensacionalismo. É muito fácil puxar para o sensacionalismo nestes assuntos e essa tentação deve ser travada, porque está em causa a dignidade das pessoas. Quem vive com deficiência tende a valorizar o oposto: o direito de passar despercebido. Quanto menos heroísmo se associar à deficiência, melhor. Já participei em formatos deste tipo, mas não voltaria se fosse a minha deficiência, e não eu, a verdadeira convidada.

Tomás Delfim no estúdio do Expresso

Para quem está do outro lado do ecrã, quais são os riscos de uma representação mediática distorcida ou simplista das pessoas com deficiência?

O risco é exatamente aquilo que já acontece. A imagem que passa nos ecrãs acaba por moldar a perceção social e manifesta-se no dia a dia, quando nos cruzamos com alguém num transporte público, na rua ou no supermercado. Claro que há pessoas simpáticas, informadas e com bom senso, mas infelizmente são uma minoria. Muitas pessoas adotam posturas destrutivas, não de forma violenta, mas através daquilo a que se chamam microagressões. Esta realidade repete-se constantemente. A ausência de representatividade realista, somada à divulgação de ideias redutoras ou pejorativas sobre a deficiência, afeta-nos diretamente. Quem consome essas imagens forma ideias erradas e age com base nesses preconceitos.

Acessibilidade é para todos: mudar mentalidades e tornar os media verdadeiramente inclusivos

A acessibilidade pode ser vista como algo exclusivo para pessoas com deficiência. Como podemos desconstruir essa ideia e mostrar que beneficia todos?

Ainda se associa a acessibilidade apenas a rampas, elevadores ou semáforos sonoros – o lado físico. Ela começa muito antes disso: está na forma como as pessoas se relacionam connosco. É raro alguém saber abordar uma pessoa com deficiência sem paternalismo. A acessibilidade começa na cabeça das pessoas. Esse trabalho, embora menos visível, é tão ou mais urgente do que qualquer adaptação física. 

Ainda persiste muito a ideia de que, se a maioria entende, então não vale a pena mudar?

Acho que falta cuidado com termos que podem ferir suscetibilidades. As pessoas agarram-se a certas palavras por teimosia, mesmo quando existem alternativas mais inclusivas. Um exemplo é o uso de “invisual” – que nem é um termo correto – e que ainda persiste, apesar das conotações negativas associadas. Muitas vezes, considera-se que “está bom assim” e, por isso, não vale a pena mudar. No entanto, há formas legítimas e necessárias de rever e atualizar o vocabulário para refletir respeito e inclusão. Esse tipo de mudança ainda gera resistência.

Como é que se pode promover uma verdadeira literacia sobre deficiência dentro das redações e junto do público?

Ter pessoas com deficiência nas redações é fundamental. Não acredito que só eu tenha querido ser jornalista – há certamente mais, mas continuam fora desses espaços. A presença de alguém com essa vivência é essencial, nem que seja para consultar ao tratar certos temas. Existem guias de linguagem inclusiva, como os da Access Lab, mas raramente são usados – ou quando o são, é de forma incorreta. Tudo acaba por depender do bom senso de quem escreve. Falta divulgação dessas ferramentas e vontade real de aprender a tratar estes assuntos com rigor e respeito.

Tomás Delfim ao lado da equipa do podcast da Tribuna Expresso intitulado “No Princípio Era a Bola”

A acessibilidade na comunicação é frequentemente vista como um custo extra ou uma obrigação legal. Como é que se pode inverter esta perceção?

Tudo depende de quem toma as decisões. Enquanto se pensar que comunicar para todos é secundário ou demasiado caro, continuamos presos a uma lógica ultrapassada, que é um entrave ao progresso. A comunicação tem de incluir todas as pessoas, não só aquelas a quem achamos que estamos a falar. Cada pessoa é diferente. Quanto mais cedo houver essa consciência, melhor.

A ideia de que a comunicação acessível é cara é realmente verdadeira ou um exagero por desconhecimento?

Imagino que existam custos, sim. É preciso pagar intérpretes de língua gestual, quem faça legendas descritivas… São serviços que têm de ser remunerados. Mas isso é tão necessário quanto pagar o salário a um jornalista, a um cameraman ou a um editor. Não são custos extra – já deviam estar incluídos no orçamento habitual. Só parecem adicionais porque ainda não o estão. Eu acho que, enquanto a acessibilidade não fizer parte da cultura e da responsabilidade de quem contrata, ferramentas como as quotas de admissibilidade são úteis. Num mundo ideal, a inclusão estaria assegurada e elas deixariam de ser necessárias.

Portugal tem leis e convenções sobre acessibilidade, mas como avalias a aplicação prática dessas normas nos media?

Apesar dos avanços legislativos, a representatividade ideal ainda não se reflete nos media, mostrando que não são cumpridos na prática. Falta maior parceria e comunicação entre os meios para dar mais visibilidade a estas questões. A fiscalização é complicada, porque quem deve fiscalizar precisa de sensibilidade para isso. A ausência de fiscalização efetiva acaba por ser uma forma de complacência com a exclusão, o que perpetua a falta de acessibilidade nos meios de comunicação.

Abrir caminho para quem vem a seguir

O que gostarias de mudar na cultura jornalística nos próximos anos?

Apenas gostaria que o meu trabalho mostrasse que o jornalismo é acessível a quem quiser, incluindo pessoas com deficiência. Espero que isso sensibilize quem decide. Ter mais representatividade e uma visão mais ampla nos media seria muito positivo. A deficiência não define ninguém. A deficiência não é um traço de personalidade.

Se um dia criasses um podcast sobre ti, como se chamaria?

Provavelmente não o faria (risos). Como jornalista, prefiro não ser o assunto. Gostava de ver um podcast que desse oportunidade a pessoas com deficiência de falarem das próprias experiências e envolvesse também quem não a tem – para mostrar que esses temas dizem respeito a todos. Seria importante criar espaços de contacto e diálogo, para desmistificar a ideia de que só quem vive com deficiência pode falar sobre ela. Desmistificar começa por incluir, não por separar.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.