Entrevista. Agnieszka Holland: “A classe política é medíocre e não está preparada”
A vida da polaca Agnieszka Holland dava um filme. Conheceu vários países com realidades distintas, sofreu a opressão de um regime de outro tempo, privou com alguns dos maiores cineastas polacos e conseguiu fazer uma autêntica carreira internacional, com produções para cinema e televisão no seu país e também na Alemanha, França e nos EUA. A sua obra é pontuada por filmes muito diferentes que têm, como ponto comum, um retrato realista do ser humano em tempos difíceis da História recente que, por vezes, não é fácil de digerir. Três dos seus filmes tiveram nomeações aos Óscares, sendo entre eles Europa Europa, o drama baseado na história verídica de um rapaz judeu que fingiu ser nazi para escapar ao Holocausto, o mais conhecido do público. Entre a sua vasta obra destacam-se ainda The Secret Garden, In Darkness e o mais recente Mr. Jones, que estreou em Portugal em Janeiro deste ano, bem como episódios emblemáticos de séries como The Wire e House of Cards.
O seu olhar de cineasta revela uma atenção especial às relações humanas nas suas mais variadas dimensões. Conseguiu um considerável sucesso ao embarcar no sistema de Hollywood e, em 2020, continua uma atividade prolífera entre o grande e o pequeno ecrã.
Nestes tempos de isolamento, a realizadora está na sua casa, na região francesa da Bretanha, que sempre a agradou. Rodeada de livros, filmes e projetos em desenvolvimento, não tem razões para se aborrecer. Mas está mais preocupada com o futuro da realidade do que com a ficção que tem para ler e ver em casa.
Aqui estão alguns dos momentos mais interessantes da conversa, que poderá ser escutada na íntegra no podcast À Beira do Abismo, disponível no próximo sábado.
Alguma vez esteve em Portugal?
Já estive há muito tempo, por isso tenho um conhecimento muito limitado do país. Em Portugal senti-me muito em casa. O som da língua é algo parecido com o polaco, também tem muitos sons “ch”. Lembro-me que estava a viajar de comboio para Lisboa, que adormeci, e que quando estava a acordar ouvi uma conversa… achava que era polaco, mas não estava a perceber nada! E Lisboa é muito bonita. Por outro lado, sei da vossa História, da Revolução que surgiu depois de um grande período de pobreza. Em relação ao cinema não vi muitos filmes, mas conheço obviamente Manoel de Oliveira, e vi o trabalho de outros cineastas consagrados.
Que filmes tem visto durante estes dias?
Na realidade não tenho visto muitos filmes, mas antes algumas séries, sem grande entusiasmo. A situação mundial é tão nova e interessante que a ficção parece estar desligada da realidade, que parece ser mais emocionante. Estou a tentar juntar informação, ver as reportagens, ouvir os comentários de pessoas estúpidas e inteligentes, para fazer na minha cabeça a imagem global da situação e ver as possíveis consequências.
Mas para uma pessoa que passou por tantos acontecimentos importantes da História, o que há de tão diferente nesta epidemia?
Nunca tinha acontecido algo que fizesse bloquear praticamente metade do mundo (e talvez em breve o mundo inteiro) a este ponto. E também veremos quão preparados estamos, mental e tecnicamente, para enfrentar este tipo de perigo. O meu conhecimento da História mostra que a resposta rápida será o medo, e o medo significa também o isolamento, a confiança nos líderes autoritários e totalitários, e a crença de que, se nos fecharmos atrás de muros, ficaremos mais seguros. Mas a humanidade tentará encontrar a nova vacina contra este novo mal. Não estou só a pensar na vacina para o vírus, mas também a vacina contra este tipo de tentações populistas e egoístas. Mas levará tempo, e receio que também terá muitas vítimas. São muitas coisas para mudar e pensar. E infelizmente, a classe política é medíocre e não está preparada para este tipo de desafios. Assim será de novo o tempo dos cientistas e dos artistas, porque será necessária intuição, imaginação e coragem.
Mas ao mesmo tempo, se a realidade é mais interessante que a ficção…
Para ter novas ideias para a ficção é preciso ligarmo-nos a esta realidade, compreender onde está a raiz do problema, como as pessoas podem reagir, e o que muda nas relações humanas e na linguagem da expressão artística. Estou curiosa para ver como é que a vossa geração vai reagir a este acontecimento global, que é o primeiro que testemunha. O que é interessante também é que esta epidemia está mais a matar pessoas mais velhas. As pessoas que estão no poder, nos EUA ou na China, são os mais velhos. De alguma forma, eles sentem um certo pânico, que os pode levar a reações irracionais. E por isso chegámos a este ponto em que a nova geração tem de tomar alguma responsabilidade em relação ao futuro. É óbvio que a geração dos líderes de hoje (de 50 a 80 anos) é incapaz de lidar com estes problemas.
Mas a nova geração será mesmo capaz de ultrapassar os políticos incapazes de hoje? Creio que grande parte da minha geração não se interessa muito pela política.
Não têm [interesse], mas chegou a hora em que têm de ter. Não podem delegar a responsabilidade e o governo às gerações mais velhas, que já mostraram a sua incapacidade. O que está a acontecer prova a fragilidade, artificialidade e arbitrariedade do sistema. Serão forçados a tomar a responsabilidade, mesmo que prefiram ficar no mundo virtual.
Estava a falar da necessidade de encontrar uma vacina para o medo e o populismo, mas haverá mesmo uma cura para isso?
A vacina resultou durante algum tempo. Tivemos a paz em praticamente toda a Europa (exceto a guerra na Jugoslávia) durante quase oitenta anos. A criação da União Europeia e de algumas instituições internacionais foi o efeito desta vacina. Nos últimos três, quatro, cinco anos, com a crise dos refugiados, sentimos que a vacina já não funciona. Na Alemanha ainda tem efeito porque há essa preocupação, por terem sido os culpados do Holocausto. A vacina não dura para sempre, mas ajudar-nos-ia a dar o passo em frente em relação, por exemplo, às alterações climáticas. Sem a solução para esse problema, não teremos futuro. Temos agora uma espécie de pequeno paraíso, em comparação com o que acontecerá na próxima epidemia, que será vinte vezes mais mortífera que esta. Uma grande parte da humanidade não irá sobreviver.
Em Janeiro vi o seu penúltimo filme, Mr Jones. Ficou contente com o resultado final?
Tenho orgulho nesse filme, e acho que é muito importante não só para mim. Talvez tenha sido lançado um ou dois anos mais cedo do que o suposto. Em França, com as antestreias, parecia que iria ter sucesso. Mas dois dias antes da sua suposta estreia [devido ao isolamento] os cinemas fecharam. Depois do período de quarentena talvez vá para poucos cinemas ou para o VOD, e o mesmo acontecerá provavelmente nos EUA, onde era para estrear a 3 de abril. O filme não teve sorte, mas ao mesmo tempo, para as pessoas que o viram, é uma experiência verdadeira que nos força a pensar sobre onde estamos e para onde vamos. Noutras plataformas encontrará o seu público.
Hoje, com os serviços de streaming e VOD, muitos filmes podem ter uma segunda vida. Tem-se falado que a experiência de ver cinema em sala ficará prejudicada com a epidemia. O que vai acontecer?
É difícil de dizer. A previsão geral é muito pessimista. A AMC, uma das grandes cadeias de cinemas dos EUA faliu há uns dias. As pessoas vão perder o hábito e terão medo de ir em conjunto com tantos desconhecidos para uma sala. Este tipo de medo vai permanecer. Em Itália, depois dos atentados nos anos 80, foram precisos quatro ou cinco anos para as pessoas voltarem aos cinemas sem pensarem que seria um percurso perigoso. E para a geração mais nova, o streaming e o VOD tornou-se mais atrativo que a sala. Em muitos países europeus, a idade média dos espectadores dos cinemas está entre os 35 e os 50, 60 anos. Novos hábitos irão aparecer. Eu presidi a Academia Europeia de Cinema até ao ano passado, e pensei que devíamos criar uma plataforma de streaming para promover e distribuir conteúdo maioritariamente europeu, algo diferente do mainstream de Hollywood. Mas nunca o fizemos. A Europa tornou-se incrivelmente preguiçosa.
Porquê?
Não sei. É um sinal de uma crise europeia profunda. Espero que haja uma forma de despertar. Senão tornamo-nos numa colónia remota da China ou dos EUA.
Revisão: Raquel Santos Silva