Entrevista. Alex Couto: “Sinto que entrei numa linguagem que os escritores não ousam usar”
Alex Couto acaba de publicar o primeiro romance, «Sinais de Fumo» (Suma de Letras, 2024), em que tem Setúbal como pano de fundo. Nascido e criado no Bairro do Viso, retratou a vida do bairro com base na premissa de que um grupo de amigos começa uma startup que quer legalizar a erva. A partir dessa empresa, tudo se desenrola.
Este romance já valeu a Alex o elogio dos pares — incluindo uma carta adereçada por Alberto Manguel, que se provou ser fã da linguagem utilizada no livro. Nesta conversa no podcast «Ponto Final, Parágrafo», o jovem autor de 33 anos explica essa linguagem, apresenta-nos os amigos através de personagens e fala-nos dos livros que o impactaram até à data.
Magda Cruz: Vou começar pelo início. A frase de abertura do livro é: «Todos os rapazes do bairro que se safam na vida fazem-no sempre a dizer que eram do bairro.» Alex, dizes que és do bairro ou ainda não te safaste na vida?
Alex Couto: Essa frase é sobretudo autocrítica. Eu tenho uma grande paixão por boas frases de abertura. Acho que a melhor é a da Ana Karenina de que «Todas as famílias felizes são iguais. Todas as famílias tristes são infelizes à sua maneira.» E tinha muita ambição de conseguir fazer uma boa frase de abertura e, na verdade, acho que já tinha o livro todo escrito e ainda estava ali a tentar ver qual é que seria a frase de abertura. Eu sinto muito essa frase na pele porque certos feitos que consegui nesta minha curta vida parecem muito maiores quando as pessoas sabem que eu vim do bairro do Viso, em Setúbal, e que não tive assim tantas abébias e oportunidades por contactos familiares, pessoais, o que for. Por isso, eu sinto que sim. Eu gabo-me de ter conseguido o que consegui vindo do bairro do Viso, em Setúbal, mas estava mais a pensar no universo do hip-hop norte-americano, aliás, até do hip-hop tuga, em que a malta gosta de representar as suas próprias «trincheiras», entre aspas. E acho que caí na mesma cilada. E tenho muito orgulho no facto de não ter desistido à partida, de ter continuado a remar contra a maré. Uma frase um bocadinho de cliché.
MC: Acho que o resumo numa frase vem na página 66: «Um pouco de nada empresários, ainda muito bandidos.» Se bem que se tornam mais empresários à medida que a Green cresce.
AC: (risos) Eles vão afinando, eles vão afinando. Se calhar, sem perder o lado bandido disruptivo, mas também acho que o mundo dos negócios privilegia a originalidade. Apesar de não parecer, em que a malta acaba por ficar muito cinzenta e soturna e com medo de arriscar e fazer diferente dos outro, se formos a ver bem as empresas que aparecem e se destacam muito são aquelas que fazem as coisas de forma diferente, aquelas que tentam ser mais ousadas ou audazes.
MC: E que às vezes vão até contra ideias feitas no mundo do business.
AC: Completamente. E eu acho que é uma semelhança interessante entre o mundo da Literatura e o mundo do negócio que é que as coisas evoluem muito por teimosia. E é alguém que diz «Não, eu vou fazer diferente. Eu vou usar a garagem dos meus pais para fazer uma empresa startup.»
MC: Foi como começou o Facebook.
AC: Exatamente. Estava a pensar na Apple Computers, que eu sou infelizmente ainda um vítima da imagem dessa marca e da percepção dessa marca.
MC: É a marca que o bando do Charlie Brown usa para os seus business.
AC: É uma sátira a uma coisa que eu descobri na vida real que foi, quando eu comecei a trabalhar em 2012, tive uma colega de trabalho que me disse: «Isso é um Samsung?» E eu fiquei: «É um android.» E ela disse: «Puto, se queres trabalhar no mundo da comunicação, é bom que arranjes iPhone rápido.» E ela disse-me aquilo e, na cabeça dela, ela estava a fazer-me favor. Na minha cabeça, ficou sobretudo marcado uma espécie de desdém pelas coisas que os outros têm e sobretudo a forma como as pessoas utilizam objetos significadores culturais. Eu não sabia na altura a expressão «significador cultural». Entretanto já li Pierre Bourdieu [sociólogo francês] e já tenho uma noção diferente do que é um significador cultural. Mas claramente o pessoal da Green bebe dessa percepção. Porque eu próprio, quando cheguei com o meu primeiro iPhone, um iPhone 4S, comprado na minha primeira agência, em que até me pagaram o IVA para eu conseguir ir buscar o iPhone. Cheguei ao bairro, pousei o telemóvel e, na mesa do café, toda a gente ficou «Wow! Isso é uma maçã cromada nas costas do teu telemóvel?» «Ya.» E para mim, pensei, realmente, nós achamos que a malta do bairro está fora dos Zeitgeist, mas eles às vezes até o sentem com maior intensidade porque é uma coisa meio exótica. E decidi fazer isso, quase uma característica para meio que satirizar a forma como eles navegam o mundo, mas sobretudo para mostrar às pessoas que estes significadores culturais existem, são reais.
MC: Mas não só a Apple. Todo o merch que eles compram, a farda, é tudo das top marcas que há na área. Os fatos de treinos, os ténis, tudo por aí… Mas o que é a Green? Para o ouvinte que não conhece «Sinais de Fumo» perceber. Vendos-nos o teu livro, a partir destas frases.
AC: Eu vim estudar para Lisboa e comecei a escrever para publicações e uma das publicações que ajudei a fundar foi o Shifter, foi incubado na Startup Lisboa. O que me fez roçar cotovelos e conversar de forma amigável com pessoas dentro do ecossistema empreendedor. Eu lembro-me de que, já nessa altura, tinha assim o sonho de escrever sobre um rapaz do bairro do Viso que fosse assim uma grande estrela do mundo dos negócios e ao encontrar aquela realidade de startup, «estamos crise, mas se calhar o empreendedorismo pode ajudar a estabelecer o teu mérito e levar-te mais longe» pareceu-me uma boa forma de satirizar o bairro, que é território onde as pessoas não têm muitas oportunidades de singrar nem no mundo dos negócios nem em mundo nenhum. Por isso idealizei uma startup de bairro e coloquei algumas das personagens como veículos para pessoas que eu conhecia da vida real, com personalidades maiores do que o mundo ou pelo menos bem maiores do que o bairro do Viso. E tentei utilizar o ecossistema empreendedor para criticar algumas coisas maiores dentro do capitalismo em que vivemos — e dentro da crise que se vivia à época do livro, que o livro passa-se no período da Troika. A Green é a empresa estilizada inspirada na Apple com que eles decidem legalizar a cannabis e todos os outros sonhos maiores que apareçam pelo caminho. (risos)
MC: Deixa-me só voltar ao livro. Página 109: «Os rapazes pareciam mitras, mesmo quando estavam disfarçados de empreendedores.»
AC: Completamente. Isso vem de… Eles tinham duas alcunhas para mim, lá no bairro do Viso: era «o paneleiro» ou «o rei da moda». Uma delas bem mais depreciativa que a outra, mas que andava como que conjuntas. Chegava a acontecer a grande conjunção: «paneleiro-rei da Moda».
MC: Com hífen?
AC: Gosto de imaginar que sim, pela forma rápida como que era dito. E eu muitas vezes fiz outfits e fiz stylings na minha cabeça que depois vendia aos meus amigos, incluindo aquilo que era o grande cenário do pessoal do bairro do Viso para sair à noite, em que nós levávamos uma peça com gola, vestíamos um pullover por cima — na verdade não era muito distante da forma comunista de vestir bem do meu Couto, que consistia sempre num pullover bordeau, assim, já dentro da paleta do partido. E eu lembro-me de olhar para os gajos e pensar: «Man, tu estás de calças de fato ou de calças de ganga escuras, tu estás com o teu pullover e a tua camisa… Está tudo passado a ferro, mas esse corte na sobrancelha e essas argolas de ouro não deixam de dúvidas de que tu és chunga. E gosto de imaginar que o pessoal da Green, mesmo na fase que eles compram fatos e andam todos muito bem vestidos no BMW inspirado no do Frank Ocean.
MC: O Beamer.
AC: O Beamer. Eu gosto de pensar que eles não perderam os cortes nas sobrancelhas, que não perderam um certo oxigenado do cabelo, que não perderam as argolas de ouro. Então eles põe muito que pareçam startupish, mas continuam a chungas no coração.
MC: Eu gostei da caracterização das personagens. Por exemplo, o bias de leitora que eu tinha, por exemplo, é que, só no final é que eu percebi que o Igor era negro.
AC: A sério? Isso é fascinante, porque eu sei que há uma cena que eu pensei: «Eu vou dar uma pista, mas não a vou tornar muito direta.» Isto aconteceu na verdade… Desculpa dar este parêntesis, mas isto aconteceu quando eu fiz uma thread viral, foi a minha primeira thread viral de Twitter, sobre uma viagem de autocarro com uma senhora e que as pessoas começaram a dizer, «Pela história esta senhora é assim, é assado» e ninguém pôs a hipótese da senhora ser negra. E a senhora era negra. E eu fiquei «Uau, o meu leitor-tipo lê “avó”, lê “idade de avó”, então eu imagino automaticamente uma senhora branquinha com cabelos brancos, o que é hilariante porque eu, pelos vistos, no meu livro, posso estar a criar ciladas do mesmo género. Eu sei que há uma cena em que eu descrevo a silhueta da afro dele, mas é uma coisa muito discreta.
MC: E é mais para o fim, também.
AC: Se calhar. É quando eles estão a fugir das coisas que fizeram de bem e que lhes estão a morder os pés. E há uma viagem de carro e eu aí descrevo o penteado do Igor em contraluz.
MC: Achas que faziam falta romances com o Setúbal como pano de fundo?
AC: Acho mesmo que faziam falta. Na verdade, acho que fazem falta romances com todas as cidades, todas as terras de Portugal como pano de fundo. Porque eu acho que a Literatura pode ser uma atividade cívica e não só artística e intelectual. Eu acho que o esforço de representação não deve vir só de forças imaginárias que nós esperemos que atuem, deve vir da ação individual dos portugueses e da vontade de triunfarem pela Arte. Eu acho que criar uma obra como um romance é, efetivamente, um berbicacho. E sabe Deus como os cinco anos que passei a escrever foram grande parte do tempo completamente perdido, mas eu não achava que os romances de Alice Brito — pela qual estou muito agradecido que existam —, nem as histórias do Luís Pacheco — que algumas passam Setúbal —, fizessem justiça à minha comunidade, ao meu nicho piscatório-chunguita-bazof. Então achei que, se queria ver estas personagens representadas na Literatura, tinha de me calhar a mim. Agora, estou a dizer isto assim com uma forma meio blasé, mas durante a redação do livro houve muitos momentos de remorso que eu pensava «Será que estou a fazer justiça aos meus pares, aos meus vizinhos, aos meus amigos que se calhar tinham capacidades intelectuais ou físicas tão boas ou maiores do que as minhas, mas que devido a uma falta de acompanhamento familiar não foram capazes de se projetar para tão longe como eu, que tive a minha mãe que, no seu esforço de me criar com autoestima, criou uma espécie de monstro egocêntrico que acha que é capaz de escrever romance. (risos)
MC: Que não só acha, como é.
AC: Ya, como entretanto fiz o romance. E agora estou a fazer o segundo e estou a adorar o processo. E estou a achar que se calhar se continuar a fazê-los vai ficar mais fácil.
MC: Vamos falar sobre isso mais para o final, pode ser? Quiseste que esta história e local onde as histórias se passam fossem familiares para o leitor?
AC: Não necessariamente. Eu tinha uma grande preocupação de que alguns leitores que não liam nada desde «Os Maias», no 12º ano, por causa do território gangster ou ganzado da obra, pudessem entrar nisto. Então, tive algum cuidado para haver narrativa, haver mini breaks, haver ação, haver coisas a acontecer para as pessoas não desistirem logo da obra. O meu percurso na Literatura fez-me tchilar com pessoas de inspirações muito diferentes e às vezes a malta leva cargas teóricas um bocadinho cansativas e pesarosas para os seus projetos. Aqui era quase o oposto. Era garantir que a malta que não tivesse lido o Barth, ou que não tivesse lido o Joyce, pudesse entrar neste livro e encontrar qualquer coisa que lhes desse vontade de chegar ao fim.
MC: Eu sinto essa conclusão nos capítulos. Há sempre uma ou duas frases finais que fecham bem o capítulo, deixando espaço para o capítulo seguinte. Isso é interessante. É trabalho também minucioso.
AC: Houve um grande sonho, durante grande parte da redação desta obra, de conseguir criar entre os capítulos uma espécie de mudança das marés, que de bocadinho de tu ias para o bocadinho do outro e houvesse uma espécie de continuidade. Não acho que tenha conseguido resolver isso da melhor forma possível. Também acho outra coisa. Acho que, por ter sido o meu primeiro romance, havia todo grande queixume em relação à sociedade que eu queria expor e que tornam o livro, às vezes, um bocadinho expositivo. Hoje, olho e penso que houve uma data de coisas que o narrador disse que podiam ter sido facilmente veiculadas para alguns dos personagens. Mas não só não tinha essa percepção à época, como tinha desejo de que o narrador se queixasse das coisas de que as pessoas queixavam naquele bairro. E como o narrador tinha uma ambição de ser uma voz coletiva, espécie de coro grego unipessoal, acabei por tropeçar nesses momentos de exposição.
MC: Pois, porque o narrador do livro fala como se fizesse parte do bairro, como se fosse um deles e pertencesse mesmo ao cenário. Isto é algo que sempre quiseste assim? Em versões iniciais do romance, o narrador sempre participou?
AC: Era suposto o narrador ser sempre alguém do bairro e era suposto tentar fazer aquilo que o Bruno Vieira Amaral fez n’«As primeiras coisas», em que é claramente o bairro a contar a história. Eu gosto muito disso. Infelizmente, só na segunda escrita de «Sinais de Fumo», — a primeira vez que escrevi o livro, o livro era muito medíocre e parecia muito, muito, muito uma série de televisão tipo NCIS. Parecia muito policial e não tanto pós-modernismo, nevoeiro, encoberto, confuso. Então eu tive que começar uma segunda vez. E só quando ia a meio da segunda vez é que eu escrevi «o acidente feliz», — que eu chamo-lhe «o acidente feliz», que foi quando eu escrevi «Aqui no nosso bairro». Bem, e naquele momento houve um momento de transição entre o que o livro queria ser…
MC: É isso: «Não é difícil perceber o nosso ódio pelas autoridades. Era provocado por uma certa ostentação.» O nosso.
AC: Um pronome coletivo que se torna uma espécie de barómetro moral para a obra. Agora, eu achei que estava a fazer uma coisa muito original e descobri, anos mais tarde, na verdade, que o Thomas Carlyle, quando escreveu sobre a Revolução Francesa, utilizou exatamente a mesma técnica para trazer uma sensação de imersividade para o seu leitor. Por isso, talvez seja um truque com 200 anos, mas eu acho que funcionou lindamente aqui. (risos)
MC: Funcionou lindamente. Sentes que entraste numa linguagem que os escritores não ousam usar?
AC: Sinto. Sinto até outra coisa que me tem alegrado muito, que é… As pessoas mandam-me DMs (Direct Messages) a dizer: «Estou a fazer um livro em que vou utilizar a linguagem da minha zona porque tu mostraste que isto podia ser feito.» E um desses autores é um rapaz chamado João Zamith, que vai ser meu colega de chancela, e que fez mais ou menos o que eu tentei fazer em «Sinais de Fumo», e que ele fez de forma muito mais elegante e adulta no debut dele, que vai sair agora no início do ano. Por isso, mais do que ter tentado ir para uma linguagem quase anti-literária… Eu sabia que a minha única forma de entrar na literatura era dizendo «Não consigo fazer bem isso, mas vou tentar fazer isto» (risos), porque sei que a literatura evolui por ruptura, por teimosia, por confronto e por choque. Sei que há alguns elementos da minha obra que por serem cinematográficos, que vêm mais de narrativas episódicas podem parecer um bocadinho pobres demais para a literatura. Não tão chique nem tão elevado como a Literatura às vezes exige, mas era o meu primeiro romance. Era a minha tentativa de mostrar que aquilo era válido e sinceramente estou contente com o resultado.
MC: Mas mudavas alguma coisa neste momento?
AC: Acho que as únicas coisas que mudava vêm só com excesso palavroso, de vontade de mostrar vocabulário, que em alguns momentos fiz e que vieram sobretudo de umlugar de ser vaidoso.
MC: Não senti vaidade no vocabulário. Senti até cuidado.
AC: Sinto-me muito feliz de ouvir isso. Com algumas escolhas estéticas, fico a pensar que, se calhar… Senti que havia breves momentos de discrepância entre o território do livro e a voz do narrador, mas são coisas que lá está. Foi preciso escrever este livro, editá-lo com a Diana Garrido, acompanhar a revisão com a Alda Couto, acompanhar a paginação do João Santos e lê-lo, já publicado. E, obviamente, eu vou ter impressões, tal como todos os leitores têm impressões. E tive de o reler a tempo do segundo livro, para ver o que é eu fiz bem e o que é que eu fiz mal. E fiquei feliz com algumas coisas que fiz bem e bastante em paz com algumas coisas que acho que não fiz tão bem quanto gostaria.
Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”: