Entrevista. Alexandra Lucas Coelho: Genocídio em Gaza “é o maior apagão da história do jornalismo”
Esta entrevista foi realizada no âmbito do curso de Jornalismo da NOVA FCSH.
Na cobertura a partir do 7 de outubro houve uma “distorção gigantesca da informação”, com jornalistas palestinianos assassinados e jornalistas estrangeiros “levados em tours” por Israel, diz esta autora. Vivemos um “naufrágio dos bastiões do jornalismo”.
A escritora e jornalista Alexandra Lucas Coelho acredita que a ausência de jornalistas estrangeiros em Gaza desde 7 de outubro contribuiu para o genocídio em curso: “É o maior apagão da história do jornalismo”. Era correspondente do jornal “Público” em Jerusalém, quando, em 2005, Gaza se transformou “objetivamente num campo de concentração”. O genocídio do povo palestiniano “é sobre estarmos juntos aqui, neste planeta”, afirma, o que torna “incompreensível” que não tenha sido um tema central nas últimas eleições. Coincidindo com o lançamento do livro “Gaza Está em Toda a Parte”, Alexandra Lucas Coelho mobiliza uma experiência de duas décadas na região para, nesta entrevista, falar de jornalismo, da Palestina e de “Auschwitz em direto”.

Na reportagem que abre o seu mais recente livro relata que para entrar em Gaza como repórter em 2017 teve de ter, primeiro, autorização de Israel e depois também do Hamas. Nas viagens à Palestina e a Israel alguma vez sentiu que não tinha liberdade para contar o que via?
A primeira vez que estive em Ramallah, na Cisjordânia, em 2002, era o auge da Segunda Intifada. Israel estava a invadir os territórios palestinianos com tanques, havia recolher obrigatório, então tive de entrar clandestinamente, por atalhos nas montanhas, juntamente com voluntários internacionais. O checkpoint estava fechado, os jornalistas estavam a ser barrados. Isto para dizer que o acesso a qualquer território palestiniano dependia das circunstâncias: às vezes mais difícil, outras menos. Mas sempre me lembro de haver uma grande diferença de acesso entre a Cisjordânia e Gaza. No checkpoint de Qalandia, que dá acesso à Cisjordânia, qualquer cidadão estrangeiro podia passar com o seu passaporte desde que o checkpoint estivesse aberto. Não era assim em Gaza. Ainda Israel não tinha construído o muro e já só entrava em Gaza quem tivesse uma razão muito concreta. Tinha de ser um trabalhador humanitário, político ou diplomata com uma missão qualquer, e sendo um jornalista precisava de uma credencial do Gabinete de Imprensa do Governo de Israel, que por sua vez exigia vários requisitos, não era qualquer freelance que a conseguia.
Mas nunca se colocou a questão de mostrar o meu trabalho previamente, e sempre o fiz em liberdade, com a condicionante de, volta e meia, os checkpoints estarem fechados.

E qual é o impacto dessas contingências no trabalho jornalístico?
Esperar nos checkpoints da Cisjordânia fazia parte de conhecer por dentro as dificuldades dos palestinianos. Passei dias, noites, em filas monumentais, sem sabermos se aquilo ia abrir ou não, mas esse é o quotidiano das pessoas. Era parte do todo, de estar ali e contar o que é a vida ali. Entretanto, ao longo dos anos, o gigantesco checkpoint de Erez, que dá acesso a Gaza, foi-se tornando uma instalação de ficção científica, distópica. Da última vez que o passei já quase não se viam os soldados, eram vozes, ordens recebidas de altifalantes e luzes. O aparato sofisticou-se.
E depois, com o 7 de Outubro, chegámos a isto: em Gaza não é possível entrar; e na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental não só os checkpoints se multiplicaram, e Israel está a demolir bairros palestinianos, deslocando dezenas de milhares de pessoas, como há 700 mil colonos com uma nova geração de gangues incendiários, assassinos, saqueando e destruindo diariamente, apoiados pelo exército e pelo governo. Eles mesmos são o exército e o governo. Um governo de supremacistas, abertamente inimigo do jornalismo, capaz de banir estações de televisão como a Al Jazeera, de fechar redacções, de ameaçar e sabotar jornais, de intimidar repórteres, de assassinar mais de 220 jornalistas palestinianos. E que aproveitou o 7 de Outubro para completar a limpeza étnica, agora com um genocídio, e conquistar mais terra, incluindo aos vizinhos. Para concretizar o sonho da Grande Israel, enquanto os poderes na Europa ou nos EUA continuam a fazer de conta que Israel é uma democracia.

Que jornalismo se fez, antes do 7 de outubro, durante estas últimas décadas de ocupação israelita da Palestina?
Foi dos territórios mais cobertos do mundo, milhares de reportagens ao longo dos anos. O problema não era falta de cobertura, os palestinianos estão habituados a receber jornalistas. Portanto, não é que os líderes ocidentais não soubessem o que se passava ali. Toda a gente tinha forma de saber. Não foi nunca um problema de falta de informação. O que aconteceu, de facto, foi uma normalização. Sim, pode-se construir um muro… Sim, os colonos podem continuar a aumentar… Sim, aparentemente para esses líderes foi normal que se abandonassem os palestinianos.
E desde o 7 de Outubro, António Costa, Luís Montenegro, Paulo Rangel, Marcelo Rebelo de Sousa sabem perfeitamente o que há a saber sobre o genocídio em curso. Não agirem é uma escolha, o que faz deles cúmplices. No fim do livro digo que a esmagadora maioria dos líderes europeus são escravos de nazis. E não apenas europeus, claro. [Joe] Biden devia ser julgado por crimes de guerra, Ursula [von der Leyen] também.
Em 2022, a repórter veterana da Al Jazeera, Shireen Abu Akleh, foi assassinada por Israel quando estava identificada como jornalista, em Jenin. Shireen estava acompanhada pela jovem repórter Shatha Hanaysha (ver próxima imagem), com quem a Alexandra trabalhou na última vez que foi à Cisjordânia. Da experiência que teve com ela, o que é ser jornalista num cenário destes?
É preciso honrar a bravura destes repórteres, que trabalham nas condições mais duras de sempre. Não há memória de isto ter acontecido: mais de 20 meses de violência contínua sendo eles próprios alvos, com falta de alimentos e assistência médica, famílias em perigo. Eles tentam sobreviver, ao mesmo tempo que não desistem de trabalhar.
O que é que os mantém a fazer isso?
A profissão que têm, e a Palestina. Estão num contexto de resistência, têm uma coragem e determinação extraordinárias. A jovem jornalista com quem trabalhei em Jenin estava constantemente a observar tudo. No meu segundo dia lá havia um zumbido no céu. Eu nem estava a pensar no significado daquele zumbido enquanto andávamos. E ela disse: “É o drone!” Eles sabem o que o drone significa, é uma mira por cima da cabeça. A qualquer momento podem ser mortos.
Esta jovem estava ao lado de Shireen quando Shireen foi morta estando completamente identificada como jornalista. Portanto, ela sabe que a todo o momento isso também lhe pode acontecer. Está a trabalhar com essa consciência, não é inconsciência, é essa consciência. E, apesar de tudo continua. Porque, se não continuar, vai fazer o quê?

Que significado teve o assassinato da repórter da Al Jazeera?
Imenso. Shireen Abu Akleh é um ícone. Viaja-se pelo território palestiniano e há murais com Shireen, o rosto dela em inúmeros lugares. E a quantidade de tributos que os palestinianos prestam aos jornalistas mortos desde o 7 de Outubro… Porque eles são as pessoas que estão a transmitir a dor de cada família. São muito amados e protegidos. São parte daquilo, e além de o viverem ainda o contam cá para fora. Desde 7 de outubro, os jornalistas palestinianos são os únicos lá dentro, o peso ficou todo em cima dos ombros deles. A morte ficou toda do lado deles. Eles são o alvo.
Em Gaza, morreram mais de 50 mil pessoas, desde 7 de outubro de 2023. Com a presença de jornalistas vindos de fora, acredita que a história teria sido escrita de outra forma? Porquê?
Digo no livro que o que está a acontecer desde 7 de outubro é o maior apagão da história do jornalismo. É uma tragédia que o jornalismo tenha abdicado, ou não tenha sido capaz de pressionar os líderes ocidentais para entrar em Gaza.
Esta abdicação também permitiu o que aconteceu. Se os grandes órgãos, o “New York Times”, a CNN, tivessem podido entrar em Gaza, Israel ia bombardear ininterruptamente um território com não sei quantas estrelas de jornalismo? Com milhares de enviados? A não-presença física de jornalistas internacionais contribuiu para este genocídio. E vai ficar para sempre na história.
Em Gaza, as pessoas estão a ser bombardeadas há quase dois anos, e até hoje o mundo não foi capaz de pressionar a entrada de jornalistas. E sabemos que alguns destes media são poderosos. Como é possível que isto tenha acontecido? É parte de um naufrágio. Um naufrágio de inspirações, de bastiões, de pilares do jornalismo.
Por outro lado, Israel recebeu 5 mil enviados especiais, o que torna o 7 de outubro o acontecimento “mais coberto desde que o Estado foi fundado”. Isto, de acordo com o governo israelita, que logo após o 7 de Outubro criou toda uma máquina de assessoria de imprensa, também descrita no livro. Aqueles milhares de enviados especiais foram cuidadosamente assistidos. Tudo lhes foi facilitado. Enquanto os jornalistas palestinianos viam as suas famílias a serem chacinadas e a morrer à fome, os jornalistas estrangeiros estavam em hotéis, a serem transportados em autocarros, levados pelos kibbutzim em tours, repetindo interminavelmente o que aconteceu a 7 de outubro. Claro que o dia 7 de outubro foi sangrento, terrível. E depois foi perpetuado a cada dia para milhares de enviados, como se todos os outros mortos, entretanto, não se estivessem a somar em Gaza, onde o mundo se podia dar ao luxo de não olhar os palestinianos a serem mortos.
Nessa máquina de assessoria, Israel juntou especialistas em todo o tipo de traumas, de armas, familiares das vítimas, com contactos disponíveis em grupos de WhatsApp. O enviado especial apenas precisava de pegar no seu telefone, entrar num grupo e tinha mil possibilidades de reportagem. O resultado foi uma distorção gigantesca da informação.

Escreveu neste livro que “os telefones são a arma de uma população que o mundo abandonou”. Que lugar ocupam as redes sociais na cobertura mediática do genocídio em Gaza?
São a janela dos palestinianos. Qualquer palestiniano com um telefone pode comunicar com qualquer jovem, em qualquer lugar. A língua nunca foi um obstáculo, até porque hoje existem tradutores automáticos. As redes sociais permitiram esta ligação cristalina. Permitiram que víssemos que depois de Auschwitz o que havia era Auschwitz em direto. Nós estamos a ver um genocídio em direto. Se quisermos. Se as redes sociais não estivessem lá, nem quero imaginar. E mesmo assim temos de pensar que o que vimos é uma pequena parte do que aconteceu.
Mas há uma distinção importante a fazer. Nas redes sociais temos muitos cidadãos a partilharem informação vital, mas isso não substitui a necessidade de jornalismo. O jornalismo trabalha a informação, trata a informação.
No entanto, os jornalistas palestinianos são, muitas vezes, descredibilizados por pessoas que os associam ao Hamas e os resumem a terroristas.
Claro. Com um racismo que também vimos escancarar-se desde o 7 de outubro.
Ao construir este livro tive a sensação de um diário que vai avançando. Um diário do extermínio, da aniquilação. No princípio falo da culpa que a Europa sente, que a torna refém e paralisa. Mas, a certa altura, já é racismo escancarado. A obsessão alemã com a culpa é narcísica: o que interessa à Alemanha é a Alemanha. O narcisismo da Alemanha sobrepõe-se às vidas de milhões de palestinianos, como já se sobrepôs às vidas de milhões de judeus.
Qual é a importância da linguagem utilizada pelos jornalistas para falar do genocídio em Gaza? E porque é que raramente utilizam a palavra “genocídio”?
Houve uma evolução das circunstâncias. Não podíamos falar em genocídio nas primeiras semanas, mas há uma evolução dos acontecimentos e também dos peritos em direito internacional, dos estudiosos de genocídio. E quando já se tem esta quantidade de instituições a falar em crimes contra a humanidade, crimes de guerra… Quando o primeiro-ministro israelita já tem um mandado de captura do mais alto tribunal das Nações Unidas, pergunto-me: como é possível que os órgãos de comunicação social continuem a maltratar este assunto? Como é possível que continuem a tratar a Ucrânia com muito mais atenção e espaço, enquanto está a acontecer isto em Gaza, que não tem comparação? E todas as questões de linguagem, a tendência para atenuar o lado ativo de Israel — em vez de se dizer “Israel matou 100 pessoas”, aparece “100 pessoas morreram”.
Nos espaços televisivos de análise militar, dá-se frequentemente destaque ao armamento e ao avanço tecnológico das IDF [Israel Defence Forces]. Como é que se explica um certo “encanto jornalístico” pelo poderio militar israelita?
Aí entramos numa dimensão psicanalítica. Israel sempre exerceu um fascínio em setores bastante alargados da sociedade. Tenho 57 anos, cresci num tempo em que me lembro de haver um fascínio com a vida comunitária dos kibbutzim. E um fascínio pelo poderio militar, pelos triunfos israelitas. Toda essa mitificação sionista perpetua-se na Europa. Porque, lá está: estamos a falar de Israel ou da Europa? Não estaremos sempre a falar de nós? Estamos a falar da Europa e não dos judeus do Oriente. Este Israel dos kibbutzim e do poderio militar foi construído pelos judeus da Europa.

Algumas manifestações pró-Palestina têm tido mais mobilização, outras nem tanto. Os media têm sido representativos do apoio popular à causa palestiniana?
Lembro-me de uma manifestação em Lisboa que mobilizou alguns milhares de pessoas, apesar da chuva. Cheguei a casa, vi as notícias e tínhamos sido transformados numas parcas centenas. Era como se não fosse nada o facto de milhares de pessoas terem estado a manifestar-se à chuva.
Vários abismos se alargaram depois do 7 de Outubro. Entre jovens e gerações mais velhas, entre a rua e os governos. E também entre a rua e os media.
Que futuro tem o jornalismo perante Gaza e o restante cenário político mundial?
Não há democracia sem jornalismo. Tem de ter todo o futuro. Mas é árduo trabalhar numa redação hoje: muitas horas de trabalho, multi-tarefas, mal pagas. Por comparação, a minha geração foi privilegiada, fez jornalismo com meios que hoje não existem.
E sobre Gaza?
A cada dia temos de recomeçar. Tentar o que pudermos. Em relação ao jornalismo, uma coisa que toda a gente pode fazer é assinar uma revista, um jornal, seguir projectos independentes. Será uma forma de proteger os palestinianos também. Um bom exemplo, televisivo, é o canal “Democracy Now”, liderado por Amy Goodman. Outro, a revista online “+972”, a única em inglês feita por palestinianos e israelitas, como Basel Adra e Yuval Abraham, dois dos realizadores de “No Other Land”, o documentário que ganhou o último Óscar. E seguir o que tanta gente na Palestina, como a incrível Bisan Owda, nos diz ou mostra todos os dias.
A cada manhã acordamos e dezenas de pessoas foram exterminadas, crianças amputadas, queimadas. Acordamos com essa morte, vamos dormir com essa morte, cada vez menos noticiada, mais banalizada. Que é, de cada vez, a morte do jornalismo, da democracia, dos Direitos Humanos. A nossa própria morte.

