Entrevista. Álvaro Curia: “É uma crítica disparatada dizer que a disciplina de português tem livros desadequados”
Conhecido do perfil Literacidades, no Instagram, Álvaro Curia lança agora o primeiro romance, pela Manuscrito. Fruto de anos de escrita, “Filhos da Chuva” é a entrada do autor no mundo dos escritores, mesmo não se considerando ainda merecedor do apelido “escritor”.
Neste episódio do podcast Ponto Final, Parágrafo revela o método de escrita, como o livro tem sido recebido pelos leitores e pelos pares, e ainda que já tem em mãos um segundo livro.
Em entrevista a Magda Cruz, reflete também sobre o ensino do português e, enquanto professor de Português Língua Estrangeira, rema contra a maré, considerando que o programa está adequado aos jovens e crianças.
Magda Cruz: Escrever um livro sempre foi um sonho? Imaginavas-te a ser escritor em alguma parte da tua vida? Quando é que passou de sonho a objetivo?
Álvaro Curia: Sempre escrevi. Desde muito novinho que eu escrevi. Posso te contar algumas histórias. Lembro-me de que, aos dez anos, eu fiquei muito impressionado com a história da Inês de Castro e de Dom Pedro, mas fiquei impressionado, particularmente, com a história da Dona Constança, da mulher traída. Então, resolvi, aos dez anos, escrever…
MC: O lado dela.
AC: Exato. (risos) Resolvi prestar-lhe a minha homenagem, muito singela, e escrevi um pequeno conto sobre a Dona Constança, que, depois a única leitora foi a minha mãe. Há de lá estar perdido. Bom, depois, à medida que lia os thrillers e os policiais, escrevi um policial. É engraçada esta história. Não sei onde é que fui buscar, mas escrevi um policial que se passa no Burundi, em África, em que há um grupo de arqueólogos que lá vai, há um assassinato e depois desenrola-se. Eu tinha 12 anos quando escrevi.
MC: Já lias thrillers e por isso é que escreveste um?
AC: Lia, lia a Agatha Christie, bastante. Então, escrevi. Depois, um pouco mais tarde, na minha adolescência, escrevi uma grande saga familiar. Essa ainda tenho lá em casa impressa. São mil e tal páginas da história de uma família que sai de Itália, vai para o Brasil, depois vem para Portugal. Também escrevi, depois, dois romances que não estão publicados, textos avulsos, poemas… Eu acho que, a par de ser leitor, fui logo um escritor também. Acontece é que nada disso estava preparado para ver a luz do dia. Nada disso estava preparado para ser publicado, para ser lido por outras pessoas que não fossem a minha mãe e a minha irmã. (risos) Ou um ou outro amigo. Talvez só um último que eu escrevi, alguma novela que escrevi, que talvez lhe dê uma volta e aquilo possa ser, eventualmente, mostrado. Mas eu tenho muito cuidado com isso. Nunca tive pressa para ser publicado. Nunca tive aquele afã de tentar publicar esqueletos e não corpos. Sempre foi um processo de maturação, da minha parte, da escrita, e só agora, anos mais tarde, é que eu realmente achei que os “Filhos da Chuva” tinham qualidade para serem mostrados e para serem lidos, apreciados e conversados.
MC: Isso quer dizer que os “Filhos da Chuva” já têm uma maturação e que a escrita já vem de alguns anos, é isso?
AC: Vem desde sempre. Eu acho que se não tivesse escrito o conto da Dona Constança, não teria escrito os “Filhos da Chuva”. Ao longo da vida, fui recebendo algumas influências, fui lendo muito – e podemos falar também da importância da leitura para quem quer escrever e quem quer publicar um livro – mas sem este processo todo de tanta escrita, de tanto bater de tecla, de tantas horas em frente ao computador, de tantas horas a pensar, a refletir, a viver com personagens, que estão presas em gavetas e é lá que elas devem estar. E, na minha opinião, não devemos ter esta pressa de soltar pessoas inventadas que não estão feitas, que não estão robustas, que não estão boas, que não estão congruentes. Não quer dizer que o “Filhos da Chuva” seja uma obra prima. Nada disso. Há muito para melhorar ainda na minha escrita, muito para andar para a frente, para sorver, de vida, de mundo. Mas de facto, este é o resultado de anos e anos e anos de escrita.
MC: Passaste esse tempo a escrever o “Filhos da Chuva”, publicado este ano, no início de 2024. Tem sido, de alguma maneira, separar o criador de conteúdos do escritor? Ou beneficiam um do outro?
AC: Tem sido muito fácil porque…Repara: Quando eu era miúdo e escrevia não havia Internet sequer. Por isso, já estou habituado a escrever sem ter qualquer influência daquilo que faço depois na Internet. É claro que há pontos que se cruzam. Mas tem a ver mais com o pós-escrita. Ou seja, estava à espera de receber críticas, tal como eu faço a outros livros. Sei perfeitamente distinguir uma crítica quando ela é feita com um objetivo construtivo do que quando é feita com um objetivo mais malévolo. Portanto, essa parte, essa exposição pública, que tenho graças ao Literacidades, é claro que influencia o processo de pós-escrita. Agora, o processo em si, de escrever, tem influência zero. Continuo a ser um miúdo que quis fazer justiça à Dona Constança. (risos)
MC: Isso é muito giro.(Risos) Recentemente, tiveste uma apresentação do teu livro na livraria Lello, no Porto. Os portuenses invadiram a livraria para te ouvir. É algo de que estivesses à espera? Foi uma boa noite.
AC: Foi uma noite de sonho, uma noite que superou todas as expetativas que eu pudesse ter. A livraria Lello… É engraçado, mas se calhar temos percursos muito parecidos: eu enquanto pessoa que escreve e a livraria Lello. Eu nasci e cresci no centro do Porto e era um miúdo que passava pela livraia Lelllo e via que era um espaço lindíssimo, mas que estava decadente. Tinha pena daquela fachada e os amigos comentavam: “Que pena, isto podia ser um monumento do Porto, poderia ser um ponto de interesse…” Mas havia um fascínio em entrar lá e ver aquela madeira toda trabalhada, os dourados, os vitrais, a escadaria vermelha. Há uma mística muito bonita naquela livraria. Ter lá um livro meu à venda já era uma coisa que nunca me passava pela cabeça que fosse possível. Ir lá apresentar o livro…enfim…foi como viver aquela noite num conto de fadas. Estava realmente muito, muito cheia. Estava preocupado porque via pessoas lá atrás em pé. Ainda foram duas horas de apresentação. Mas foi muito bonito.
MC: Com leituras…
AC: Com leituras. Tive dois atores, a Beatriz e o Luís, que leram excertos do meu livro. E o Nuno Afonso que tocou algumas músicas inspiradas em algumas partes ou ambientes do livro. Foi lindo. Além de ter família, amigos… Tinha leitores que não me conheciam. Foi um momento realmente muito especial. Eu disse logo, no início, que se todos nós conseguíssemos sentir 10% da emoção que eu sentia naquela noite, eu acho que as pessoas já estariam consoladas.
MC: E para quem ainda não conhece o teu “Filhos da Chuva”, que história é que nos contas neste romance?
AC: Em “Filhos da Chuva”, estamos num território que se chama precisamente Território. Nesse Território, existem várias terras, entre elas Domínio. Domínio é onde se desenrola grande parte da ação. E é uma terra onde está sempre a chover. Nunca para de chover. Nem sempre foi assim. Antigamente, Domínio era uma terra diferente, mas no presente da narrativa está sempre a chover. A chuva condiciona as pessoas. Condiciona a forma de elas socializarem, as próprias emoções, a forma de se darem umas às outras, de sentirem, de pensarem, de estarem. Então, toda a terra é organizada em torno de se manter viva. A chuva destrói, a chuva condiciona, vai mudando o sentido dos rios, dos ribeiros, vão caindo pontes. Então, a cidade trabalha no sentido de se manter viva. Nela vamos encontrar a Muda, que é uma mulher que vai buscar os sacos das compras ao mercado e distribui-os por casa das pessoas e que tem um filho, que é Amor, que é um obreiro. Os obreiros são homens e mulheres que estão encarregados de manter Domínio a funcionar. Portanto, são muito respeitados naquela terra e são os responsáveis por isso. Ao largo de Domínio, existe a Ilha da Fortaleza, que é onde há uma fortaleza decadente com os vidros partidos e com os torreões caídos, envolva numa bruma e envolta, muito particularmente, num mar, que é o Mar das aranhas, numa praia que em vez de areia, nós temos teias de aranha e aranhas gigantescas, que estão à borda da água. Os de Domínio não conseguem ver a Fortaleza, por causa das névoas e da chuva, portanto, aquilo está envolto num ambiente assim de mistério. O que para lá vai é a vida de Mãe e Filho, que são personagens que têm o nome da função que têm na narrativa, e que têm uma relação muito complicada. Sobretudo fala-nos, penso eu, (e têm me dito que fala) sobre diferentes tipos de maternidade – uma maternidade opressora, castradora, autoritária, controladora versus outra que não o é. Que é terna, que é dócil.
Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”: