Entrevista. Amílcar Vasques-Dias: “Queria dar à música de José Afonso uma moldura clássica”
O pianista e compositor Amílcar Vasques-Dias encontra referências do canto gregoriano e de compositores como Claude Debussy no repertório de José Afonso (1929-1987), do qual gravou algumas canções em disco, “numa moldura de música clássica”.
O álbum intitula-se “De Ouvido e Coração” e o seu alinhamento inclui canções como “Cantar Alentejano”, “Que Amor Não Me Engana” ou “Vejam bem”, e, além de Vasques-Dias ao piano, inclui intérpretes como Carlos Guilherme e Ricardo Ribeiro.
O projeto foi iniciado em 1974, ainda Vasques-Dias era estudante no Real Conservatório de Haia, quando um professor, Louis Andriessen, lhe propôs fazer um arranjo para orquestra de “Grândola, Vila Morena”.
A orquestra era constituída por madeiras, metais, piano e contrabaixo, e “Grândola, Vila Morena” fez parte dos seus programas, ininterruptamente, durante dez anos, tendo a orquestra tocado em digressões, nos Países Baixos, Bélgica, Dinamarca e Alemanha.
Amílcar Vasques-Dias conheceu José Afonso, em 1978, em Amesterdão, durante uma digressão do autor de “Os Índios da Meia Praia”, e ficou impressionado com a sua simplicidade.
“Tive a felicidade de encontrar José Afonso”, disse à agência Lusa sobre o músico a quem não regateou elogios, realçando a “sua lindíssima voz”.
O título do disco foi buscá-lo a José Afonso, quando respondeu a um jornalista neerlandês que o questionou como compunha música: “de ouvido e coração”, pois não tinha estudado música.
“Humilde e, naturalmente, Zeca Afonso disse que não sabia música, a música que fazia era de ouvido e coração”, recordou.
O pianista e compositor Vasques-Dias pensou que não seria “possível compor música deste teor, desta qualidade, sem saber música”, como contou, em entrevista à agência Lusa.
“Passei décadas a estudar a sua música, e a pouco e pouco fui descobrindo que a música do José Afonso revelava que tinha o conhecimento de um músico erudito, de músicas tradicionais de vários países, nomeadamente de África, canto gregoriano e de música erudita, nomeadamente Claude Debussy”.
“Ele cantou-me uma canção da música tradicional de Trás-os-Montes, ‘Ó Que Janela Tão Alta’, e eu disse-lhe que não era normal um intervalo tão grande entre o agudo da sua voz, até ao grave”, disse Vasques-Dias acerca daquele encontro, num jardim, em Amesterdão, a 06 de novembro de 1978.
O compositor continuou: “E ele respondeu-me, ‘é que eu gosto de acrescentar algo de meu à música de outros’, e eu respondi-lhe imediatamente, ‘então nesse caso, também eu posso acrescentar algo de meu à sua música’”.
“Eu queria dar à música de José Afonso uma moldura clássica, tomei a liberdade, que ele de certa maneira já me tinha dado para os arranjos que eu já tinha feito, nomeadamente ‘Coro da Primavera’, ‘Cantar Alentejano’ e ‘Grândola, Vila Morena’, e ele concedeu-me e escreveu uma declaração dando-me autorização para fazer arranjos para toda a sua produção”, disse.
O álbum é composto por 12 temas – seis cantados e seis instrumentais -, e conta com as participações, além do tenor Carlos Guilherme e do fadista Ricardo Ribeiro, da ‘cantaora’ de flamenco Esther Merino, da soprano sérvia Natasa Sibalic, e do violinista Luís Pacheco Cunha.
A canção “Vejam Bem”, interpretada ao piano por Amílcar Vasques-Dias, fecha o disco, que inclui ainda, ao piano e violino, “A Mulher da Erva”, “Venham Mais Cinco”, “Balada do Sino”, “Cantigas do Maio” e “Ó que Janela Tão Alta”.
“Sinto nos meus dedos, eu ia dizer na pele, nos meus dedos, na minha cabeça e na minha imaginação, muita inspiração porque a música do José Afonso é muito rica e dá-me a possibilidade de fazer o que tinha pensado em fazer, que era criar uma moldura erudita, uma moldura, clássica, respeitando e mantendo a matriz originais das suas melodias: mas tenho a certeza que se ele ouvisse este CD, deveria ficar feliz porque é de uma grande riqueza, e compreenderia que é um testemunho da minha gratidão por aquilo que ele me ensinou e também um testemunho de respeito pela qualidade da sua música”, disse.
O músico acrescentou que quis “dar a conhecer esta música do José Afonso, num ambiente bom para ser ouvida, que não tem secura como, às vezes, [se nota] em música dita clássica”.
“Este CD é um testemunho da minha cumplicidade com José Afonso de respeito, gratidão, e de admiração”, rematou.