Entrevista. Ana França: “Gostava muito que ‘Lampedusa – Ir e não chegar’ contribuísse para a normalização da experiência migrante. Nunca com uma intenção activista, mas de normalizar o que a sociedade acha estranho”

por Magda Cruz,    5 Maio, 2025
Entrevista. Ana França: “Gostava muito que ‘Lampedusa – Ir e não chegar’ contribuísse para a normalização da experiência migrante. Nunca com uma intenção activista, mas de normalizar o que a sociedade acha estranho”

Depois de “Ali Está o Taras Shevchenko com Um Tiro na Cabeça: Diário da Ucrânia”, fruto de um mês de reportagem na guerra na Ucrânia, a jornalista Ana França publica “Lampedusa – Ir e não chegar”, também pela Tinta-da-China. 

O livro começa na margem sul do mediterrâneo, em outubro de 2013, mês do mais trágico naufrágio na rota de imigração mais mortal do mundo. Neste episódio, a repórter explica porque é importante ir aos locais para fazer bom jornalismo, o que viu em Lampedusa das três vezes que foi à ilha e como dá voz a esta história.

“Lampedusa – Ir e não chegar” segue o curso dos dez anos que passaram desde o dia que quase foi capaz de transformar a Europa e a forma como a sociedade e classe política olham para os migrantes.

Magda Cruz: Os políticos europeus sabem o que é um migrante e aquilo por que um migrante passa?

Ana França: Eu sinto que poderiam saber se quisessem.

MC: Não procuram saber?

AF: Muitos, eu acho que sabem. Acho que é impossível… Esta tragédia [Lampedusa] tem dez anos, mas a questão das migrações tem muito mais. Começou mais ou menos em 2013, 2014. Já estamos em 2025. Mas é só esta parte, porque a questão tem muitos anos antes disso. É só mais visível agora por todas as questões que nós sabemos que todos os temas são mais visíveis. Há reels, internet, Instagram e há organizações no terreno que todos os dias põem fotografias dos migrantes a chegar. E é por isso que esse tema se tornou tão presente nos meios de comunicação social. Mas se formos a Lampedusa, as pessoas vão nos dizer que já recolhem pessoas da água há 30 ou 40 anos. Ali pelo meio dos anos 80, começaram a chegar estes barcos com pessoas de todo o continente africano, mas mais subsariano. E, portanto, é uma realidade para eles muito comum. Muito mais comum do que nós acharíamos que poderia ser possível num território como Lampedusa, que tem 20 km². E onde não há nada, não há agricultura, não produzem. É turístico. Não produzem propriamente formas de alimentar ou de criar as pessoas que lá vivem, que já são as que lá viviam. São cinco mil pessoas e pouco cresceu.

MC: E há alturas em que há mais migrantes em terra do que habitantes.

AF: Muito mais. Sim, sim. A última vez que isso aconteceu foi em setembro de 2023. Eu falhei esse episódio. Obviamente, ninguém consegue antecipar quando é que as pessoas vão chegar a Lampedusa.

MC: Falhaste entre aspas porque já foste três vezes a Lampedusa.

AF: Sim, fui três vezes. Estive lá, nesse setembro, depois de isso acontecer. Houve fim de semana, que 13 e 14 [de setembro], não tenho a certeza, em que chegaram 9 mil pessoas no mesmo fim de semana, porque tinha havido uma tempestade marítima durante os dias anteriores e as pessoas estavam nas praias da Líbia à espera de embarcar e foram todas enviadas ao mesmo tempo. E então chegaram mesmo muitas pessoas a Lampedusa, e foi assim uma espécie de… um bocadinho de uma fotografia do passado. Já há algum tempo que os migrantes não circulam entre a população, estão num centro de acolhimento fechado e foi impossível retê-los nesse centro de acolhimento, obviamente, que está feito para 400 pessoas. Eram nove mil. E então as pessoas tiveram de ficar onde sempre ficam, nas rochas. O tempo é bom, o clima é bom. E estão em casas de pessoas, aquelas que são mais liberais, mais acolhedoras, que não se importam de que uns miúdos durmam no chão da sala durante dois ou três dias até serem levados para Itália. E aquilo voltou a ser a Lampedusa daqueles dias da imigração mais acentuada, e causou logo uma reação política muito exacerbada. A [Giorgia] Meloni já era primeira-ministra italiana. Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, e a Giorgia Meloni foram logo oferecer dinheiro à ilha para tentar combater a chegada de tanta gente. E mais uma vez, tal como 2013, como conta o livro [Lampedusa – Ir e Não Chegar], mais uma vez foi só um bocadinho de fogo de vista. Eu sou jornalista antes de tudo. Não estou a julgar mesmo estas pessoas ou que eu saberia o que fazer melhor ou que a Giorgia Meloni não se preocupa com os migrantes, ou que a Ursula von der Leyen não quer saber. Não faço ideia. Só que a Europa como todo há anos que não dá resposta a isto. E o que aconteceu 2023, nove mil pessoas a chegarem em dois dias, tem acontecido em 2016, 2017, 2018. Não é todos os dias, claro, mas tem sempre acontecido todos os anos um pico num fim de semana qualquer em que o mar está particularmente ameno e, logo, saem vários barcos. E, portanto, eu acho que é muito estranho nós não termos ainda encontrado uma solução para uma coisa que não é uma emergência, que uma coisa que acontece muito.

Capa do livro / DR

MC: Mas achas que temos ou tentamos ter uma política de imigração humanizada? Como é que estão as coisas a funcionar e como que poderiam funcionar melhor?

AF: Eu acho que nós não tentamos ter uma política de imigração humanizada, na medida em que o dinheiro europeu tem sido investido em contratos, que eu não consigo perceber, com gangues. Gangues na Líbia, nós temos acordos com a Tunísia que também não são propriamente os documentos mais humanitários, com mais segurança para as pessoas que eu li na vida, de certeza. E isso é explicado, creio eu, por uma razão política. Só para mostrar que estamos a fazer alguma coisa de duro, não é? Estamos a mostrar alguma severidade com estes fluxos migratórios porque é isso que parece que a população exige ao votar em partidos mais radicais. Parece que está a pedir um controlo dessa imigração, e as sondagens dizem-nos que sim, que a imigração é uma preocupação dos europeus como um todo. N umão de todos os europeus, mas como todo. E, por causa dessa pressão, os partidos mais ao centro têm-se aproximado de medidas que não são assim tão… Que não ajudam ninguém, vamos dizer assim. Portanto, nós continuamos a precisar de trabalhadores, mas não lhes damos vistos de trabalho normais. Como qualquer… Uma pessoa pode ir à internet, inscrever-se num site a dizer “Eu sou carpinteiro”, “Consigo cuidar de crianças ou de pessoas mais velhas”, “Fiz isto, isto e isto na Gâmbia”. É uma application como outra qualquer. Uma inscrição num emprego, como eu já fiz para empregos em restaurantes. Não é muito diferente. Se há um período de tempo em que é preciso alguém para agricultura, porque é que não se abrem vistos de trabalho em que a pessoa tem o visto, chega ao aeroporto e embarca? Como é que possível que nós estamos a dar imensa dinheiro às milícias da Líbia para parar os barcos, que não param, porque elas recebem dinheiro dos migrantes para ir. Portanto, obviamente que a União Europeia também não consegue parar o fluxo.

MC: E tu explicas bem essa dinâmica. Até este sistema de transferência de dinheiro que descreves no livro.

AF: Baseado em confiança, em que não há nenhuma transferência de dinheiro. Ela é dada ao migrante que está, por exemplo, na…

MC: O migrante pede dinheiro ao irmão, não é? Que é o caso do livro.

AF: Isso. O Solomon pede dinheiro ao irmão, que está Israel. Mas o irmão não vai a nenhum banco, não faz nada. Simplesmente contacta alguém no Chade, que dá ao irmão 500 euros e, eventualmente, ele será ressarcido quando outra pessoa no Chade quiser mandar [dinheiro] para Israel.

MC: E as pessoas não se enganam umas às outras porque senão são afastadas do sistema.

AF: São retiradas dessa rota. Eles têm uma percentagem. Por exemplo, 10%. Quando pedes para mandar dinheiro, tens que dar, por exemplo, para mandar cinco mil euros tens que dar cem, ou o que seja. Mas a pessoa podia ficar com o dinheiro todo. Mas provavelmente é tolo, não é? Porque deixavas de lucrar com todo o sistema.

A jornalista Magda Cruz com a jornalista e autora Ana França

MC: Já mencionámos o Solomon. O livro começa em 2013, ano negro pelos dois desastres nas águas, e vai até aos nossos dias. Vai até 2024. Contas por isso uma história com mais de dez anos, e ao longo de mais de dez anos, o que quer dizer que vale mesmo a pena contá-la. A infelicidade disto é que a história continua atual, não é? Continuam a morrer pessoas (crianças, homens, mulheres), na travessia.

AF: Sim, continua. O que é certo é que essas notícias são as que nos chegam. E angustia-me muito: pensar que, se calhar, eu escrevi sobre um desastre que naquelas três semanas pode ter acontecido outro e o barco simplesmente foi ao fundo, e ninguém soube.

MC: Nunca contatou com uma autoridade, então não souberam da partida.

AF: Sim. E há um podcast sobre esta tragédia feito em italiano, que se chama “Aquela Noite Sem Lua”, e é mesmo uma das coisas que toda a gente refere: que não se via nada. Era possível ouvir os gritos de pessoas que tinham estado no barco contigo, a falar das famílias ou do que queriam fazer na Europa, e tu reconhecias as vozes, mas não conseguias ir ter com elas porque era breu total. E, portanto, eu suponho que haja outros barcos que também não são vistos por cargueiros, porque estão demasiado longe para os gritos de ouvirem ou porque… Tem sido mais difícil porque há muitas ONGs no Mediterrâneo que têm… Nem todas têm, obviamente, avionetes, mas há algumas que têm e que sobrevoam uma área muito grande e conseguem perfeitamente ver de cima os barcos. Há o Sea Bird, que eu acho que é da Sea Watch, e que faz muito bom, pelo menos, a documentar. Por exemplo, os barcos estão perto daquele barco e não os salvam, eles conseguem fazer uma espécie de denúncia à União Europeia, ou põe-nos no Instagram deles. E, pelo menos, conseguimos fazer notícias sobre aquilo. E há muito isso do não conseguir salvar toda a gente. Na verdade, é o caso deste barco. Ninguém sabe ainda porque é que aquelas pessoas não foram salvas. Há muitas teorias.

MC: Estavam a menos de dois quilómetros da costa.

AF: Sim, e bateram num banco de areia, dizem eles, porque sentiram o solavanco. É tudo que nós sabemos dos sobreviventes. E o barco parou, e o capitão, naquele desespero de tentar chamar alguém, lança fogo a um cobertor. E quando o cobertor se esfarela, o barco incendeia. E a tristeza é essa, porque eles estavam só a tentar chamar barcos que já tinham visto.

AF: Quantas pessoas iam nesse barco?

AF: 530, 520. Nunca se descobriram todos os corpos. Nunca se trouxeram todos os corpos para a terra. Morreram 366 e salvaram 155. E esses são os relatos que nós temos, são das pessoas que sobreviveram. Elas não sabem o que aconteceu, se bateram no banco de areia, se simplesmente o motor gripou, o que é se passou, mas sabem que espirrou combustível, que foi o que o capitão usou para embeber o cobertor e chamar ajuda. E porquê que eles chamaram ajuda? Porque já tinham visto luzes de barcos perto. O que a mim angustia é: será que eles tinham lançado fogo ao cobertor se não tivessem visto barcos perto? Será que eles podiam ter ficado lá à espera que o dia clareasse e depois algum barco os veria? Porque foi o fogo que, como as pessoas correram todas para a direita, barco virou para a esquerda, e como correram todas para a esquerda o barco virou para a direita. E na segunda vira ele já não se equilibrou e realmente começou a afundar. E, portanto, é tudo muito… É um azar brutal. Porque quantidade de barcos que tiveram naquelas águas, naquela noite, está provado… Porque eu não sei se estás a par, mas como há dos aviões, há dos barcos: há o marinetraffic.com, onde todos os barcos estão, desde o cargueiro que está a levar sapatilhas da China para os Estados Unidos, até barcos da guarda-costeira portuguesa. Os barcos militares, por questões militares, podem desligar os seus transmissores, mas os barcos comerciais, normalmente, até têm todo o interesse em saber a rota, onde é que estão ir, se acontecer alguma coisa. E havia barcos na zona. Ninguém consegue perceber muito bem porque é que eles não foram socorridos. E isso não está estabelecido no livro, porque, mais uma vez, não quis estar a culpar ninguém, porque eu não faço ideia… Sabemos que a guarda-costeira teve outras pessoas para salvar e talvez tenha preferido ir salvar essas pessoas porque viu o barco estável, antes de ele começar a afundar, e pensou “Já cá voltamos”. Portanto, não estou condições de dizer que a guarda-costeira italiana tem algum… que isto é incúria, porque eu não sei se é. Eles salvam tanta gente todos os dias, como é que eu vou dizer que eles não quiseram salvar essas pessoas. Eu não tenho nenhuma forma de provar isso, mas não é a questão essencial. A questão essencial é que elas não foram salvas, não é? E estavam tão perto da costa.

MC: No livro, tu contas a história. A história é contada principalmente através de duas pessoas. Nós, no Jornalismo, chamamos personagens. Já falámos de uma, que é o Solomon. Portanto, tens duas personagens: uma tinha alguém no barco, o Adal. Portanto, através dessas duas personagens contas essa história. Para quem ainda não percebeu, o livro não é inventado, isto é não-ficção, são histórias verdadeiras. Eu senti que a abertura do teu livro, portanto, antes de conhecermos o Adal e o Solomon, tens uma abertura que, para mim, parece um thriller. Daí eu estar a dizer, “Atenção, isto é não-ficção”, que é o enrugar da pele e a decomposição do corpo na água. Isso mostra bem o drama da situação. Porque é que pensaste em abrir o livro assim? Tiveste esta ideia desde o início?

AF: Foi posterior. Aconteceu quando o Adal me contou que viu muitas fotos das pessoas que estavam a ser retiradas da água, à procura do irmão. Ele foi para Lampedusa à procura do irmão. E [a ideia da abertura] surgiu-me quando ele está a passar aquilo [fotografias] no iPad e apercebe-se da possibilidade de ele não reconhecer o irmão. O irmão estar entre as fotos, mas ele não o reconhecer. Ao ver as outras fotos de outras pessoas, ele a percebe-se, e depois diz “Não, acho que não. Acho que ainda não estão nesse ponto. Eu acho que reconheceria.” Mas isso passa-lhe pela cabeça. As pessoas estão já com algumas feições a começar a desaparecer e ele pensa “E se eu não reconhecer o meu irmão?” E pára de ver. Decide que não precisa daquela comprovação porque, no fundo, eu acho que o Adal quando chegou à ilha e foi ao hotspot, que é o centro de acolhimento onde estavam os sobreviventes, e ninguém veio ter com ele, eu acho que ele sabia. Há uma rapariga, que ele não sabe quem é ainda hoje, que simplesmente faz que “Não” com a cabeça, e ele percebe que provavelmente aquela fotografia não está no centro de acolhimento, portanto está no fundo do mar. E quando ele vê as fotos só para confirmação, porque ele tem os pais vivos e queria informar a família e os irmãos, ele percebe-se que há uma possibilidade de que a água já tenha destruído as feições do irmão. E depois eu fui falar com médicos legistas para perceber quando eles encontram, as pessoas têm acidentes, caem a água ou mesmo suicídios, ou outro tipo de acidentes, qual é o processo. E lembrei-me disso porque acho que deve ser muito angustiante. Tu nem sequer reconheces os teus familiares. Isso, obviamente, acontece com fogos, acontece com muita coisa. Mas como é Lampedusa, o meio é marítimo, lembrei-me de que…

MC: Eu acho que é uma abertura fortíssima. É fortíssima. Dá-nos a impressão de “Estou aqui envolvida numa ficção.” Depois temos de estar constantemente a lembrarmos “Não, isto é real”. Isto não só aconteceu, como está a acontecer. Tens uma data de números factuais, no final do livro. E depois de 10 anos volvidos de 2013, a ilha de Lampedusa ainda é o destino de mais de 70% de todos os migrantes de África que procuram vir para a Europa. É um número da Organização Internacional para as Migrações. Eu vou voltar ao mesmo tema político: o que é nos diz este número sobre os países envolvidos? Porque já dissemos, a Europa não os acolhe, mas estes países vivem do dinheiro gerado pelas travessias.

AF: Sim, há países que vivem. Há gangues que vivem. Países não.

MC: Até dizes que faz parte do PIB desses países.

AF: Não, não, o que faz parte do PIB desses países é o dinheiro que eu como habitante da Europa mando para a minha família. Na Eritreia, o PIB é 20% do que os migrantes que estão na Europa começam a trabalhar mandam para lá. Portanto, não é possível… Se todos regressassem, a Eritreia entrava em colapso financeiro, não é? Eles não deixam as pessoas sair, mas têm todo o interesse em que elas estejam na Europa. Essa é que é a verdade. Portanto, ou seja, é regime ditatorial em que os guardas de fronteira têm permissão para disparar a matar os seus compatriotas, não é nenhum invasor. Para matar quem está a tentar sair de Eritreia, eles têm essa permissão porque o sistema militar é obrigatório e infinito, ad aeternum, as pessoas não sabem muito bem quando é que lhes vai ser dada a permissão para casar, para comprar uma casa mais longe da base. Há uma data de coisas que as pessoas não podem fazer até serem libertadas do exército, que normalmente é por favores. Não é porque chegou ao fim dos dezoito meses ou dos dois anos, ou o que seja, que está estabelecido. E, portanto, quando eles tentam sair, eles não podem sair. Mas ao mesmo tempo, a Eritreia só vive no limiarzinho mesmo, porque há muita gente que vive na Suécia que tem um rendimento cem vezes superior a qualquer eritreu e envia esse dinheiro. Porque eu não faço ideia de que que viveriam as pessoas, as famílias da Eritreia… E na Líbia. E no Senegal. Eu sei lá, em tantos países não fosse a metrópole.

MC: E esses gangues?

AF: Esses gangues são gangues ilegais, segundo a lei internacional, mas são os que operam partes da Líbia. Eles têm territórios, divididos, como se fossem etnias, tribos que ocupam cada parte da Líbia. E controlam os portos de saída destes barcos. Misrata, Tripoli, Sfax, na Tunísia. Portanto, isto é tudo ilegal. Eu tenho de pagar essas pessoas para ir nesses barcos. Esse dinheiro que eles pagam poderia ser usado, acho eu, para se estabelecer na Europa com visto normal. Imagina, se o Solomon pagou oito mil, nove mil, dez mil euros, no total, para chegar à Europa, ele conseguia perfeitamente ficar quatro ou cinco meses em Itália sem pedir nada ao Estado. Conseguias ficar em Portugal com dez mil euros, durante tempo, para te estabeleceres. E isso é-lhes negado por uma razão que eu considero política e não consigo perceber muito bem o porquê, na medida em que, ainda agora, a Associação de Empresários de Portugal pediu cem mil pessoas. Temos que ter mais cem mil. Temos que ter, senão o PRR não… Não há construção, não há viadutos, não há hotéis, não há nada. Claramente essas pessoas são precisas e eu não quero fazer só o caso da imigração numa questão económica. Isso faz muita confusão. Não devemos… estas pessoas não são… Isto não é uma coisa… Esta ideia utilitária da imigração… Eu fui para Londres trabalhar, mas se eu tivesse lá ficado sem fazer nada, não era menos válida a minha imigração. Ou se só tivesse começado a trabalhar um ano depois, ou se tivesse começado primeiro a aprender a língua com o dinheiro do Estado. Eu não quero fazer o caso utilitário para a imigração, mas às vezes é preciso na medida em que estamos numa espécie de nuvem política muito polarizada e muito radical em alguns temas. E se essa for a forma de chegar às pessoas e explicar porque é importante a demografia ser renovada, vou usar esse esse argumento. Mas eu não acho que a imigração seja uma coisa puramente económica e há muitas outras formas de enriquecer um país através da imigração, que não tem necessariamente a ver com “eles trabalham por pouco dinheiro”.

A jornalista Ana França foi a Lampedusa por três vezes para escrever o seu livro

MC: Imaginas uma Europa sem fronteiras?

AF: Para mim, ela não tem fronteiras, nem para ti. Que é impressionante, não é?

MC: Dizes muitas vezes que é uma sorte ter nascido na Europa.

AF: Sim, digo isso muitas vezes. As pessoas ficam assim a olhar para mim: “Uma sorte como?” Porque é. Os meus pais não fizeram nada, nem os meus avós parecerem portugueses, que eu saiba. Nem sequer lutaram particularmente numa guerra qualquer, como tu podes dizer que os ucranianos estão a lutar pelo seu país ou alguma coisa assim. Nem sequer há essa parte. Portanto, nós crescemos na Europa e eu fui para Londres com o meu cartão de cidadão. Não era preciso o passaporte e quando eu voltava, muitas vezes perguntaram-me: “Então, como é que é trabalhar lá, é difícil o contrato?” Não, é igual à Bélgica. É igual. Dás-te o teu cartão de cidadão e tens um contrato. É muito mais liberalizado o mercado de emprego, portanto também na semana a seguir podes trabalhar num restaurante qualquer, que não tens que te desligar de uma empresa e depois esperar um tempo. Mas é impressionante a facilidade. Eu e as pessoas daqui, que já tinham ido a Londres, não sei quantas vezes: ” A sério, é assim?” E porque é que não é assim? Também não estou dizer… Há problemas de integração que temos de perceber. Eu não estou a dizer que a imigração em massa não acarreta problemas para o Sistema Nacional de Saúde ou para as creches. Não estou a dizer isso. Mas é estranho ser um problema tão grande quando todas as economias da Europa que negam essa entrada de migrantes precisam deles. E tem de ser político, é? Ou seja, tem de ser uma questão política…

MC: Já há outras vertentes de racismo, xenofobia, percepção de segurança.

AF: Medo de que a tua cultura seja substituída. Eu percebo isso em sítios onde há muitos migrantes e as pessoas que lá estiveram sempre veem os seus locais a mudar. Eu não vou criticar quem se sente diferente em Odemira. É muito diferente para quem há 20 anos vive em Odemira e para quem vive agora. É uma questão também de nós, do centro, centro-esquerda, ou do centro-direita, o que seja, também não nos preocuparmos em explicar às pessoas de Odemira que, se calhar, há uma escola e um centro de saúde que reabriram porque há pessoas, não é? E porque os miúdos estão a estudar na escola. E, se calhar, Odemira só tinha lá uma estrada em direção ao Algarve. Completamente despovoada. E quem diz isso diz outras terras do interior onde estas pessoas não se importam nada viver porque não têm de estar ao pé do mar, não tem essa…

MC: Ainda esta semana saiu uma notícia com um mapa, um gráfico interessante da distribuição populacional pelos centros. Era Porto, Lisboa, litoral. E o resto país está a vermelho.

AF: Sim, sim. E quanto menos pessoas lá estiverem, menos serviços para lá vão. E para os portugueses também, não é? Portanto, se com esse dinheiro que o Solomon pagou aos traficantes, ele pudesse vir para cá, e se o dinheiro que Itália paga às milícias, que são milícias armadas, líbias, tentasse, por exemplo, uma espécie de programa de repopulação do interior, com a reabertura de uma fábrica de arraiolos ou de bordados que desapareceu em Pádua, não sei, se calhar era uma forma de tentar… Podia não resultar também, mas essa experiência foi feita por um presidente da câmara de uma cidade italiana, e é uma experiência fantástica, porque a cidade estava completamente desertificada e hoje tem dez mil pessoas, que é uma coisa incrível. E toda a gente se dá bem, toda a gente trabalha na terra e foi reavivado festival de marionetas por causa deles. Não estou dizer que todas as histórias vão ter este nível de sucesso, claro. E também não estou a negar que haja crime ou que a cultura seja muito diferente.

MC: A narrativa está cheia de crime. Só o caminho para a costa, que descreves no livro, tem tortura, tem violência, tem agressão sexual. As mulheres são violadas à frente da carrinha de caixa aberta. E o Solomon pensava, “O que é está a acontecer aqui à minha frente? E não fazem nada”. O Solomon cria uma relação de confiança com a mulher, que depois disso nem se consegue expressar. Eu estou arrepiada durante esta conversa.

AF: Eles não fazem nada. Não podem.

MC: Fizeste três viagens a Lampedusa, para escrever este livro. Porquê que era importante ir lá? O que que encontraste por lá? E porquê voltar tantas vezes? Para uma jornalista é essencial ir ao local, não é?

AF: Sim, eu acho que é essencial se queres escrever alguma coisa profunda. O trabalho que se faz aqui [nas redações] é importante, ligar para analistas que nos expliquem o mundo, todos os dias, a partir de Lisboa, como fazer isso se não fosse com o telefone. E ainda bem que isso existe. Mas para um trabalho tão profundo, tem de ser. Até porque as pessoas… Tu não consegues perceber a ilha, é muito inóspita, é muito árida, tem uma oliveira aqui e outra ali. Aquilo é um sítio que só vive mesmo do turismo. Tem praias maravilhosas e tu tens de perceber essa dualidade, acho eu, em que há um barco da guarda-costeira a sair para ir salvar alguém e, ao lado, está passar um daqueles barcos d0 género Caribe Mix, bar aberto, em festa. E bem, se as pessoas vivem daquilo, é o que é. A economia, também podemos criticar a nossa, se quisermos, mas é o que é. E portanto, as pessoas de Lampedusa, o problema que elas têm com a imigração, eu não acho que seja com os migrantes. Eles têm medo de que os migrantes lhes destruam a economia local. Ou seja, que se as pessoas virem muito a miséria acabem por se refriar e ir ali para outras zonas, tipo Sicília, ou Sul de Itália, como Bari, ou Capri…

MC: O problema é que fica mais longe.

AF: Lampedusa fica muito longe. Lampedusa fica muito mais perto de África do que fica da Europa e é por isso que é, obviamente, o sítio onde chegam mais pessoas.

MC: Aconselho a abrirem um mapa para perceberem do que é estamos a falar.

AF: É bizarro. Eu própria não me apercebi.

MC: Visualmente, temos o norte de África. Logo ao lado, uma pequena gota que é Lampedusa, e a bota de Itália.

AF: Isso. É muito perto de Tunísia.

MC: Portanto, há três rotas principais. Também descreves isso e esta é uma delas.

AF: O Mediterrâneo Central, o Mediterrâneo Oriental, que é no Egeu, e o Atlântico, porque é de África para as Canárias, que é assim super perigoso. É um gelo total e as ondas não tem nada a ver. O Mediterrâneo consegue ser muito mais agitado do que eu esperava, porque a primeira vez que fui a Lampedusa fui de ferry. São doze horas. E o ferry é enorme e levava caminhões cisterna, lá dentro, com gasolina. Na medida em que a Lampedusa não produz nada, como eu já disse. Era tudo desde carrinhas da grande distribuição, cisternas de gasolina, carros alugados, porque ia começar a época alta. E aquilo mesmo assim abanou bastante e era um ferry pesadíssimo. Não era uma coisa tipo de uma travessia, quase lancha, não. Era mesmo ferro pesado.

MC: Na altura, pensaste: “se eu estou neste barco enorme e isto abana desta maneira, como é que será uma lancha?”

AF: Claro. Pensei imenso. Nem consigo sequer…

MC: E os migrantes não… Ou seja, comprar um colete salva-vidas, ou alugá-lo, é um investimento extra. Muitas vezes não o fazem.

AF: É um investimento que os contrabandistas não fazem. Nem sempre fazem. Tu podes comprar o teu, mas depois há toda a história dos coletes falsos que se vendem na Turquia, em feiras, e que aquilo é basicamente esponja que, ensopada, te faz ir abaixo. Não é o contrário.

MC: Em vez de flutuar, afundas.

AF: Isso também é horrível. Todo o mercado de boias que são falsas. É horrível.

MC: É outro mundo que nem estava à espera de encontrar quando começaste a investigar.

AF: Não fazia ideia que havia coletes salva-vidas assim.

MC: Mas porquê? Quem é lucra com isto? Lucram porque as pessoas acham que estão a contribuir para a sua segurança. Esta história é toda muito reveladora, mas achei muito impactante um detalhe que é: uma viagem que tenha uma mulher grávida é mais cara para todos os migrantes. Ou seja, há mais probabilidade de que os europeus tenham pena das pessoas e que os resgatem porque há mulheres grávidas a bordo.

AF: É só o que tu descreveste.

MC: É um facto. Como comentar?

AF: O que é pernicioso nisso, fora o cinismo e o quão estranho é nós salvarmos mais mulheres e crianças do que homens. Eu tenho alguns problemas com tudo o está a acontecer em Gaza. Obviamente que as mulheres e crianças são muito mais indefesas, mas como se os homens… Nem se refere o número de homens que morreu, é suposto ser a diferença entre mulheres e crianças e homens. E porquê? É porque são todos terroristas? É porque é que não se fala dos homens mortos? Uma pateira de homens negros vindos de Eritreia é uma coisa. O mesmo barco com crianças e mulheres grávidas é salvo. Claro, eu percebo, obviamente uma mulher com uma vida dentro é um horror deixar morrer…

MC: Estamos em altura de eleições. Vamos ter legislativas, autárquicas e presidenciais. Numa altura destas, de tantas eleições, em que certos partidos pintam esta questão das migrações da maneira que querem, é um livro importante para o cidadão português ler e informar-se sobre esta questão e da maneira como está a ser pintada?

AF: Eu não quero, não consigo, arvorar-me nessa pessoa que vai espalhar a tolerância em Portugal por ter escrito um livro sobre migrantes, mas não vou também estar a negar que o livro é uma tentativa de normalização da vida das pessoas em trânsito. Ou seja, uma tentativa de as tornar completamente iguais a nós. Eu acho que essa tentativa é óbvia.

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