Entrevista. Andréa del Fuego: “O mês em que escrevi ‘A Pediatra’ foi de absoluta escrita. Às vezes me sentia quase febril escrevendo”
Por escrever muito, a escritora brasileira Andréa del Fuego conhece a sua forma de escrita. Para “A Pediatra”, escreveu durante um mês, mas a pesquisa para este livro no universo da gravidez durou muito mais.
Rodeadas de livros, a escritora conversa com Magda Cruz sobre datas redondas, Filosofia e ter vencido o Prémio José Saramago. Em entrevista ao podcast “Ponto Final, Parágrafo” revela ainda pormenores da venda dos direitos de “A Pediatra” para o cinema e teatro.
Magda Cruz: Este ano, faz 20 anos da publicação da antologia de contos “Minto enquanto posso”. E vai fazer 15 anos desde a publicação de seu primeiro romance. Já consegue pensar em ter uma carreira na escrita?
Andréa del Fuego: Que pergunta linda. Eu mesma não havia feito essa conta. Obrigada. (risos) Achei essa conta vertiginosa. O tempo é muito rápido, muito veloz. Uau… Para mim, é quase o tempo do trauma. Ou seja, está sempre no presente. Os momentos em que lancei o livro estão muito presentes. É como se eu estivessem acontecendo agora. Tem uma coisa muito inédita na escrita do livro, que eu sinto assim uma experiência muito viva.
MC: Está presa ainda na escrita do livro?
AdF: Não na trama, mas na… É uma coisa que fica muito marcada fisicamente. Mesmo uma memória. A experiência da escrita – não exatamente do livro escrito… Então, não é que eu esteja no livro “Minto enquanto posso”, mas a escrita do “Minto enquanto posso” para mim é muito vívida.
MC: Ainda está na convivência das personagens?
AdF: Também não é assim. É como se fosse… Eu sei que é difícil imaginar uma escrita sem palavras, mas a estrutura de sentar-se, concentrar-se em terminar um livro… É essa experiência que ainda é viva. Principalmente desde os primeiros livros. Então, por exemplo, eu tenho a sensação de ter escrito “Os Malaquias”. “A Pediatra” é mais recente. É mais viva ainda. Mas é como se tudo isso se somasse.
MC: Não se sente essa passagem de tempo.
AdF: Não… A passagem de tempo não me distancia. É um pouco isso.
MC: É mestra em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Nessa perspetiva, escrever livros pode ser brincar com a Filosofia.
AdF: Eu fui fazer a faculdade muito mais velha. Com 30 e poucos anos. Antes havia feito um curso técnico de Publicidade, que não é uma formação superior, e fui trabalhar com produção de cinema desde então. Depois de cinema, fui para revistas, trabalhando com produção de objetos, produção de figurinos para fotografia. Sou casada com um fotógrafo há mais de 30 anos. A gente teve momentos que, por exemplo, para a revista Vogue, ele fazia as fotos e eu fazia o perfil de famosos. Escrevia…
MC: Trabalho a dois.
AdF: Trabalho a dois, exatamente. Quando eu comecei a publicar, eu não pensava numa carreira literária, por exemplo. Nunca imaginei que eu viveria disso, sabe?
MC: Daí a minha pergunta. Ainda numa entrevista dizia que não via uma carreira, mas o que realmente acontece é que vive da escrita.
AdF: Eu atualizo isso que você ouviu. É exatamente, é exatamente. Eu não tenho um planejamento. Se me dissesse assim: “Você tem um planejamento literário?”… Desde o começo, essa escrita sempre surgiu de um modo um pouco indomesticável. Eu nunca tentei domesticar isso. A começar, por exemplo, que meus livros são muito diferentes uns dos outros. O livro “Os Malaquias” é escrito a partir de uma história da minha família, uma história que tem como linguagem um realismo mágico e uma prosa poética, que ganhou o Prémio José Saramago. Eu poderia continuar com esse realismo mágico, essa prosa poética, na zona rural de São Paulo… Pelo menos levar essa linguagem para uma outra trama. Não consigo.
MC: Não aconteceu.
AdF: Não acontece. Nem um desejo. Assumo que nem chega a ser um desejo. Depois escrevi “As miniaturas”…
MC: Que nem tem um espaço definido. Não é em São Paulo, de certeza. É em todo o lado.
AdF: É em todo o lado! Exatamente. E aí, “As miniaturas” foi escrito a partir do momento em que comecei a fazer Filosofia. Até aos “Os Malaquias”, eu não havia feito Filosofia. E eu acabei fazendo duas graduações em Filosofia. Estava quase me formando na PUC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, quando fui para a USP – Universidade de São Paulo, e fiz mais uns cinco anos de graduação. Fiquei uns nove anos na graduação.
MC: É muita Filosofia…
AdF: É muita Filosofia. Filosofia não tem fim. É interminável. E aí fui fazer um mestrado. Defendi na estética e é sobre a fenomenologia, do Maurice Merleau-Ponty, em diálogo com a obra que ganhou o Camões, do Raduan Nassar, “Lavoura Arcaica”. Mas “As Miniaturas” eu fui influenciada pela Filosofia porque, pela primeira vez, eu cheguei no livro com uma ideia. E não com uma estética. E eu acho, no fim das contas… Eu também sou professora ou mediadora (não sei que nome melhor dar a isso) de processos de escrita literária. Dou muitas oficinas e faço mentoria para muitos trabalhos. A trama, a técnica e a linguagem a gente não sabe muito bem o que vem primeiro. Às vezes eu acho assim que a ideia vai trazer a própria trama. Ou ainda mais objetivamente que a própria linguagem, o modo como você construiu a primeira frase, o modo como as frases se juntam num parágrafo acaba atraindo uma espécie de trama, que não atrairia se não tivesse acomodado ela de forma diferente. Tem alguma coisa muito viva.
MC: E depois é preciso saber parar, não é? É preciso perícia para perceber onde é que a história quer ir. Porque se as frases se juntam com quase vontade própria, é preciso pôr um ponto final.
AdF: Mas é muito curioso. A partir do momento em que você faz uma primeira frase, ela instala uma lógica dentro da língua e da linguagem. Você vai perdendo a liberdade à medida em que aumenta uma frase. A não ser, claro, que você queira fazer grandes experimentações. Ainda assim, dentro de grandes experimentações, há uma lógica composta aí logo nas primeiras frases. Então, você começa a entrar dentro de um texto que está se fazendo. Ele vai te dando direcionamento para onde ir. Ele próprio. Eu gosto de fazer perguntas para o texto: O que você quer dizer agora? Mas isso não tem nada a ver com magia, não tem a ver com um certo misticismo a partir do texto. Na minha vida pessoal já tive experiências, vou dizer, místicas. E é exatamente que posso dizer: não é místico. (risos) A escrita, pelo menos para mim, ela não tem essa magia, o mistério. O que eu acho de enigma, mais do que mistério, é o que a gente consegue fazer com a própria Língua. Que a Língua, ela é uma passagem para a linguagem. Essa linguagem é uma passagem para a voz. Que é um pouco isso que a gente se lembra quando lê um livro. A gente aprende uma voz literária, que conseguiu, que chegou até nós, sendo veiculada por uma linguagem. Que chegou até nós partindo da materialidade da Língua: sílabas, palavras. Acho tudo isso enigmático, mas tudo isso é muito material. Eu gosto de imaginar tudo isso muito material.
MC: E nesse caso, pegando na palavra enigmático e nessa voz, em “A Pediatra” temos uma voz muito singular, uma voz às vezes mazinha para com os outros. Custou chegar a esta voz? Como é que se chega a uma pediatra que odeia crianças e que acaba por se render um pouco a elas?
AdF: Primeiro veio a ideia: uma pediatra que não gosta de criança. E imediatamente reconheci que ali havia um livro na ideia. Embora que ideia não seja Literatura. A frase tem de acomodar aquela ideia. Talvez aquela ideia não encontre ainda naquele momento da frase. Se a frase não aguenta, a ideia morre. Mas o ponto da trama era só não tirar a pediatra da sua função. Ou seja, está trabalhando com algo que detesta. Era só colocar essa mulher no seu quotidiano que as coisas aconteceriam.
MC: Se a colocasse no consultório, a receber crianças, as coisas aconteceriam.
AdF: Isso. A primeira versão do livro, a primeira ideia… Não foi a primeira versão porque eu não cheguei a fazer… Mas a primeira ideia e que fiz anotações era: ela não saia do consultório jamais. A gente só teria ela dentro do consultório, o que mudaria era nas pessoas que chegavam, os pacientes. Então numa hora ia chegar uma mãe com uma criança adotada, depois duas mulheres que fazem inseminação para ter os filhos e aí, normalmente, essas mulheres que têm filhos acabam tendo gémeos. Então, um casal de mulheres que chega lá com gémeos. Depois, a babá, que chega e não está com a mãe porque a mãe está lá no salão de beleza, o pai é executivo e chega a babá com filho. Então eu ia brincar com isso, que também é uma ideia interessante.
MC: Sim, e nesse caso chamar-se-ia “O consultório”?
AdF: Se chamava “Em Atendimento”. Foi o primeiro título.
MC: E o que a fez sair do consultório?
AdF: A frase. (risos)
Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”: