Entrevista. Ângela Ferreira: “Somos provavelmente um dos países que colonizou e menos lida com esse problema”

por Lusa,    16 Março, 2024
Entrevista. Ângela Ferreira: “Somos provavelmente um dos países que colonizou e menos lida com esse problema”
Ângela Ferreira / Fotografia via Wikipédia
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A artista plástica Ângela Ferreira considera que Portugal só conseguirá “descolonizar as mentes, a cultura e a sociedade”, quando conseguir “ultrapassar as dificuldades” que tem tido em refletir sobre o seu passado histórico colonialista, incluindo o relato dos Descobrimentos.

“O cerne do problema é não termos trabalhado a descolonização das nossas mentes e da nossa sociedade”, declarou, em entrevista à agência Lusa a propósito de um tema que tem tido cada vez mais atualidade na Europa e no mundo.

Devoluções de obras de arte e artefactos de países africanos colonizados no passado por vários países como França, Reino Unido e Bélgica, derrubamento de estátuas ligadas ao esclavagismo, e a defesa de espaços culturais descolonizados têm sido alvo de debate público.

Com o seu trabalho, que se desenvolve sobretudo em torno do impacto do colonialismo e pós-colonialismo na sociedade contemporânea, Ângela Ferreira representou Portugal na 52.ª Bienal de Arte de Veneza, em 2007.

Ressalvando que o tema da descolonização da sociedade e da cultura em Portugal “é complexo”, a artista acredita, no entanto, que “é impossível falar sobre descolonizar a arte, ou até mesmo os museus, sem pensar em descolonizar a sociedade e as mentes que habitam a sociedade em que vivemos”.

Para Ângela Ferreira, nascida em Maputo, Moçambique, em 1958, que estudou e lecionou na África do Sul, e passou a residir em Lisboa a partir dos anos 1990, falta à sociedade portuguesa um trabalho de reflexão que “cabe a todos nós fazer, cada um à sua maneira”.

“Quanto mais trabalho na área [das artes plásticas e visuais] mais me parece evidente que na nossa sociedade, em Portugal, e talvez na Europa e noutras partes do mundo, as dificuldades em descolonizar a arte ou a cultura estão extremamente ligadas a esta dificuldade”, reiterou, na entrevista à agência Lusa.

Comentando que se considera “da velha escola”, a artista – que obteve o grau de mestre na Michaelis School of Fine Art, na Universidade da Cidade do Cabo, e se doutorou na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa – recorda ter lido, nos anos 1980, o livro “Decolonising the Mind: The Politics of Language in African Literature” (1986).

A obra do romancista queniano e teórico pós-colonial Ngũgĩ wa Thiong’o aborda a política da linguagem na literatura africana, e é uma coleção de ensaios sobre o papel construtivo da linguagem na cultura, história e identidade nacionais.
Esta obra que marcou e inspirou Ângela Ferreira, levou-a a concluir que “a linguagem é um elemento essencial na cultura e na composição das sociedades”, tal como “as artes são também uma linguagem que deve contribuir para a reflexão”.

A artista considera mesmo que um dos assuntos cruciais em Portugal é “esta falha insistente de termos sido incapazes de nos auto-criticar, de olhar para a nossa história, de perceber o que estava bem e o que estava mal, e como vamos contar a nossa história”.

“De certa maneira, acabamos por ter de pagar essa falta de reflexibilidade”, lastimou a artista, que é professora na FBAUL desde 2003, e cuja obra está representada em coleções públicas como a Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a Fundação de Serralves, no Porto, a South African National Gallery, na Cidade do Cabo, o Museu Extremenho e Iberoamericano de Arte Contemporânea, em Badajoz, Espanha, o Museu de Arte Moderna e Contemporânea de Bolzano, em Itália, a Walther Collection Neu-Ulm, na Alemanha e o Middlesbrough Institute of Modern Art, em Inglaterra, entre outras instituições.

As constatações de Ângela Ferreira sobre esta questão, que considera essencial, têm surgido de forma muito concreta na sua própria prática de trabalho como artista, ao longo das últimas décadas.

A primeira vez que começou a lidar com uma realidade portuguesa “com laivos insistentemente óbvios de neo-colonialismo nos discursos de literatura, políticos”, em Portugal, foi quando criou a peça “Amnésia” (1997).

Na altura, Ângela Ferreira tinha chegado há muito pouco tempo da África do Sul, e era ainda “uma espécie de estrangeira”, a olhar para um país com ferramentas críticas já bastante aguçadas.

Quando apresentou “’Amnésia’ publicamente apanhou um ‘susto’”: “Nessa obra, inseri um filme feito por colonos em Moçambique, que o retrata como uma espécie de país luso-tropical, o que, na minha opinião era bastante ofensivo e, por isso, usei-o na obra no sentido crítico”.

“Mas, muitas vezes, nos museus onde a apresentei, apareceram pessoas que começavam a chorar quando viram o filme, entendendo mal a obra, julgando que era uma obra de saudade. Na verdade, não era”, recordou.

Nesse momento percebeu o quanto a obra era pertinente: “Confirmei essa suspeita que eu tinha de que as intuições e emoções neo-coloniais não tinham sido tratadas devidamente, arejadas, discutidas e contrariadas, e estavam presentes e à solta na nossa sociedade”, disse à Lusa.

Passados quase 20 anos, criou outra obra sobre o mesmo assunto, porque não estava satisfeita com a falta de uma mudança mais profunda. Para Ângela Ferreira, “a sociedade portuguesa estava a evoluir, mas ainda não o suficiente”.

Esta segunda obra, exposta em 2015, intitula-se “A Tendency to Forget”, e fala “do hábito de esquecer”, partindo de uma investigação sobre a academia portuguesa, e “de uma certa abordagem neo-colonial que ainda está muito presente, e que integra uma visão mais contemporânea da colonialidade que envolve também mentalidades sobre etnocentrismo e políticas de género”.

“Esta obra foi reconhecida em Portugal, mas também foi alvo de uma imensa crítica, precisamente vinda de um mundo que não entende a razão por que temos de olhar para a nossa História e pensar nela de outra maneira”, observou a artista.
A resposta que Ângela Ferreira teve a esta segunda obra, chocou-a ainda mais do que a resposta que recebeu 20 anos antes: “Agora há blogues e redes sociais ‘online’, onde as pessoas escrevem livremente as coisas mais abomináveis”.
“Na década de 1990 tive de interpretar pessoas idosas a chorar de uma saudade mal resolvida. Em 2016, tive de experimentar verdadeiros insultos. Isso é a minha experiência sobre a nossa incapacidade de olhar para o passado”, lastimou a artista

A criadora deu ainda como exemplo dessa dificuldade em refletir sobre o passado, a manutenção de uma certa narrativa nos manuais escolares do país: “Continuarem a contar a história dos Descobrimentos com pouquíssima reflexibilidade”.
“Os Descobrimentos abriram a porta à escravidão. Estes não são assuntos pequenos e leves, são assuntos muito sérios, complexos, de uma projeção enorme. Nós somos provavelmente um dos países que colonizou e menos lida com esse problema”, considera a artista.

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