Entrevista. Anna Pacheco: “A indústria do turismo acaba sempre por encontrar um outro mais pobre que aceita as suas condições, numa lógica colonial”

Num ensaio certeiro em que aborda os bastidores da indústria do turismo, a barcelonense Anna Pacheco, com trabalhos jornalísticos publicados no El País, VICE, Playground, El Periódico e Público, dá-nos a conhecer os bastidores do turismo e a sua precariedade, saturação, e a dinâmica das relações entre os trabalhadores desta indústria e as suas chefias, na obra Estive Aqui e Lembrei-me de Nós. “Quando um segmento da população não está disposto a fazer esses trabalhos, a indústria encontra um outro segmento mais pobre para essas atividades. É, por isso, um setor que está altamente precarizado, com muitos níveis de informalidade no modo como emprega“, avisa a autora quando questionada sobre o real peso da imigração, neste caso a imigração provinda da América Latina, na indústria hoteleira espanhola.
Aborda também como é, para os trabalhadores, conviverem com um luxo do qual não podem usufruir e como lhes é exigido serem parte do luxo que estes hotéis prometem aos seus hóspedes, isto porque também fazem parte de uma experiência que tem de ser sempre reluzente e perfeita. “Parece que, para grande parte do sector empresarial, as pessoas simplesmente ‘não querem trabalhar’. Mas o que é preciso analisar é por que razão tantas pessoas optam por não trabalhar neste sector. É um exemplo da forma como a indústria turística acaba por se devorar a si própria.” A autora afirma mais do que uma vez, em entrevista à Comunidade Cultura e Arte (CCA) aquando do LeV — Literatura em Viagem deste ano, em Matosinhos, como o modelo do turismo atual está saturado e se devora a si próprio, mas também não quis com este ensaio estabelecer um guia que distingue o bom turista do mau turista.
Acredita, antes, que há que repensar o modelo atual em si e torná-lo melhor ou, até, numa outra coisa: “O problema não é tanto o turismo em si, mas sim o modelo. Acredito que existam formas de transformar isto.” Para este ensaio, da Objectiva, chancela da Penguin, Anna Pacheco fez um trabalho de campo centrado em hotéis de luxo e semi-luxo de Barcelona, nos quais se chegou, até, a infiltrar como “uma trabalhadora a mais”. À Comunidade Cultura e Arte, contou também como a indústria turística transforma os espaços locais e os efeitos que tem na própria população local: “Tudo é transformado para o turista, e isso tem um impacto sério na vida dos habitantes locais“. A autora nasceu em Barcelona, estudou jornalismo e tem um mestrado em Antropologia Social pela Universidad de Barcelona.
Queres falar sobre o que te levou a escrever este livro, assim como o impacto que teve em ti veres o teu primeiro livro ao lado de uma miniatura de um cruzeiro no Mediterrâneo?
O livro nasce no seio de várias de várias tensões. A mais evidente é que sou uma barcelonesa que também assistiu à transformação da cidade de Barcelona nestes últimos anos, assim como à sua progressiva turistificação. Em segundo lugar, esse cruzeiro em miniatura adquirido pela minha família quando fez um cruzeiro, num verão, pelo Mediterrâneo, está num lugar com um certo status na casa: ao jantar todos podem vê-lo. Por isso mesmo perguntava-me, insistentemente, quais as implicações das viagens – sobretudo as viagens turísticas – nas famílias e nas pessoas, assim como o seu capital simbólico, ou seja, viaja-se também para se dizer que se viajou.
Por outro lado, perseguia-me outra imagem, o cemitério de cruzeiros numa cidade turca que se chama Aliaga, criado durante a pandemia. Quando suspenderam as viagens por causa da covid, muitos cruzeiros passaram a ser considerados ativos mortos e deixaram-nos apodrecer, transformaram-nos em lixo. Essa imagem pareceu-me muito forte. Como é que essas infraestruturas gigantes já não mereciam ser mantidas por estarem inativas durante um curto espaço de tempo? Passaram a ser lixo ou, usando uma expressão inquietante, ativos mortos. Interessava-me saber isso, como é a indústria turística, entrar nela e ver, precisamente, o que existe por trás de uma imagem tão mortífera como a de um cemitério de cruzeiros. Acho que imagens como essa explicam muito bem como é a indústria turística também. É mortífera e, de certa forma, devora-se a si mesma.

Para a tua pesquisa, chegaste a infiltrar-te e tiveste ajuda dos empregados dos hotéis. Tiveste facilidade em conseguir a confiança destes empregados? Qual foi a reação deles?
Já tinha um trabalho prévio e convidaram-me, de alguma forma, a explorar mais. Disseram-me: “Vem com o gravador que, de certeza, vais descobrir coisas interessantes.” Por isso, pude infiltrar-me com relativa facilidade nesses espaços. Em algumas ocasiões era como se fosse, apenas, uma trabalhadora a mais e, em outras, era uma assessora sindical aos olhos da empresa.
Pude assistir, graças a isso, a reuniões, a jantares de Natal, a festas trimestrais em que se celebram os objetivos alcançados e, para mim, isso era importante porque a indústria turística tem muito de performativo. É um teatro para o exterior e o que me interessava ver era, precisamente, o backstage: entrar nesses bastidores e ver o que é que se faz, como é possível, como se sustenta essa imagem turística, porque a imagem para o exterior é sempre reluzente. Queria ver o que existe por trás disso.
No teu livro nota-se, também, uma presença forte de imigrantes da América Latina. Qual é o peso real da imigração nesta indústria?
Esta é uma indústria que acaba sempre por encontrar um outro mais pobre que aceita as suas condições, numa lógica colonial. Também fazemos isso enquanto viajantes, quando viajamos para países mais pobres, já que podemos viver uma semana como se fôssemos ricos, mas a própria indústria turística também o faz ao munir-se de mão de obra cada vez mais barata. Quando um segmento da população não está disposto a fazer esses trabalhos, a indústria encontra um outro segmento mais pobre para essas atividades. É, por isso, um setor que está altamente precarizado, com muitos níveis de informalidade no modo como emprega.
Grande parte da economia neste sector funciona de forma informal e, por isso, em condições mais inseguras para os trabalhadores. Além disso, analisar de perto um hotel — fazer esse “zoom” — permite perceber que, no fundo, o espaço funciona como um microcosmo: um pequeno mundo que reproduz, à sua escala, a forma como a sociedade está hierarquicamente organizada.
O que observava era que, nos primeiros andares do hotel, havia muitas mulheres, sobretudo latino-americanas e africanas, a desempenhar os trabalhos mais físicos e com os piores salários. À medida que se sobe nos andares, começa-se a encontrar pessoas mais brancas e espanhóis. Acima dos espanhóis, temos ainda os homens brancos do norte da Europa.
Isto ilustra bem as lógicas de exploração — quase numa relação de senhor e escravo — que se repetem em cada andar do hotel. Isto porque os trabalhadores imigrantes, ao procurarem integrar-se, encontram-se numa situação mais vulnerável e acabam por aceitar condições que outros trabalhadores não aceitariam. Simplesmente, não têm outra escolha.
Como diz o antropólogo David Graeber, aceitam-se estes “trabalhos de merda” porque não há alternativa, por pura sobrevivência. Muitas das pessoas que aceitam este tipo de trabalho tendem a ser mais dóceis e submissas porque, em alguns casos, até a sua permanência no país depende disso. Muitos aspiram a um contrato para poderem finalmente obter a nacionalidade e, de facto, muitas vezes são os próprios chefes que os chantageiam com promessas de vistos, autorizações de residência ou contratos em troca da sua obediência.
Trata-se, por isso mesmo, de um setor extremamente precário, e muitos dos trabalhadores com quem falei disseram-me que, no fundo, o que mais desejavam era deixar de trabalhar na indústria do turismo. Ou seja, a aspiração de grande parte destas pessoas era sair desses espaços de trabalho. Acho que isto é um ponto importante, porque muitas vezes assume-se que o turismo é, por definição, algo bom, quase como uma verdade indiscutível: o turismo é bom porque cria empregos e gera riqueza.

E porque incentiva os negócios locais.
Sim, mas temos de ver que tipo de trabalho o turismo oferece, como vive quem trabalha nesse setor e como estão essas pessoas.
É por isso que há tanta rotatividade? Isso, no fundo, também interessa à indústria? Pergunto isto porque a indústria hoteleira escuda-se ao dizer que essa rotatividade existe porque é difícil encontrar pessoas para esse trabalho.
Claro. É fascinante ver como muitos hoteleiros e direcções de empresas se lamentam quando dizem que não encontram pessoas dispostas a trabalhar na indústria do turismo, mas raramente se perguntam porquê: se será necessário rever esses contratos, se devem aumentar os salários ou reduzir o número de horas de trabalho.
Parece que, para grande parte do sector empresarial, as pessoas simplesmente “não querem trabalhar”. Mas o que é preciso analisar é por que razão tantas pessoas optam por não trabalhar neste sector. É um exemplo da forma como a indústria turística acaba por se devorar a si própria. Lembro-me, por exemplo, que no ano passado, nas Baleares — ilhas com uma enorme pressão turística — aconteceram situações um pouco absurdas.
Alguns trabalhadores dos hotéis dessas ilhas já não conseguem lá viver, porque não conseguem pagar as rendas. São forçados a viver em tendas ou em acampamentos improvisados, onde também vivem outros trabalhadores sazonais. Isto é bastante revelador, uma vez que estamos a ver, de certa forma, o sistema a entrar em colapso. Nem os próprios trabalhadores que tornam possível esta indústria conseguem viver nos locais onde estão esses hotéis, precisamente por causa da forte turistificação.
O empregado é, ao mesmo tempo, um fornecedor de serviços e passa a ser parte, também, do produto que é consumido. Mas ao mesmo tempo que o turista publica fotos e cria no outro o desejo de passar pela mesma experiência, não passa também a ser um fornecedor do produto e parte do produto? Porque o turista está também a criar o desejo.
Sim, sem dúvida. O que a indústria turística faz muito bem é transformar tudo em mercadoria, inclusive as próprias pessoas e os habitantes locais que passam a ser parte integrante da experiência que está a ser vendida. O próprio turista não escapa a esta lógica. Para começar, desempenha muitas vezes um trabalho não remunerado ao preparar as férias. Em muitos casos, é necessário dedicar uma parte significativa do tempo livre a planear o itinerário ou a organizar a viagem, e não se fica por aí. No local de destino, contribuímos com as nossas fotografias no Instagram, que funcionam como uma espécie de folheto publicitário pelo qual também não recebemos qualquer pagamento. Em outras palavras, tornamo-nos promotores gratuitos e não remunerados desses destinos.
Há, evidentemente, muitas entidades a beneficiar com isso, desde logo, as próprias plataformas que se alimentam da atenção que conseguimos captar com as nossas fotografias espetaculares das férias, mas também os próprios destinos, que acabam por receber mais visitantes graças à promoção que fazemos, mesmo sem existir uma intenção consciente.

Muitos dos empregados com quem estiveste não teriam a possibilidade de passarem uma noite no hotel em que trabalham. Convivem lado a lado com um luxo do qual não podem usufruir. Que impacto achas que isto tem nesta classe trabalhadora?
Há muitos trabalhadores que sabem que, com o salário que recebem, nunca vão conseguir passar uma noite naquele hotel. A verdade é que encontrei respostas diferentes quanto a isso e talvez esperasse, à partida, encontrar algo mais uniforme. Encontrei, no entanto, trabalhadores que assimilaram aquele ambiente de luxo e desejam fazer parte dele — sentem-se incluídos, de certa forma, nesse mundo luxuoso — ao passo que outros trabalhadores, pelo contrário, desenvolveram um sentimento de rejeição, de desconforto, e nem sequer têm vontade de usufruir de uma noite oferecida no hotel. Alguns dizem que não se sentiriam bem, que estariam a pensar na mulher que depois teria de limpar o quarto, ou nos colegas que estariam a servi-los. A verdade é que não existe uma única resposta a esta questão, mas é evidente que o luxo também tem um impacto nos próprios trabalhadores.
Esta noção de ir passar sempre férias fora também não será uma forma da classe média trabalhadora mostrar que consegue ter poder social e capital?
De alguma forma, no modelo e sistema em que vivemos, entendemos que o que temos de fazer quando não estamos a trabalhar é sair e, na melhor das possibilidades, viajar. De facto, quando te perguntam, “O que vais fazer durante férias?”, e se respondes, “nada”, dizem-te logo: “Não tens férias?” O que acontece é que, dentro de uma lógica constante de produção, ficar num sítio sem te moveres e não fazer nada não é visto como uma forma legítima de descanso.
Assumimos que viajar, especialmente inseridos dentro de um contexto turístico, é a aspiração máxima a que um trabalhador pode ambicionar: trabalhar e poupar durante todo o ano para poder viajar em algum momento e poder estar uma semana fora. O que me parece interessante aqui é pensar se conseguimos ser criativos e imaginar outras formas de lazer e descanso que não passem necessariamente por este modelo turístico tal como está concebido atualmente. O modelo turístico atual baseia-se muito no consumo constante, na acumulação, na voracidade, em ir rapidamente a um lugar, fazer o “check” e visitar tudo sem parar. Talvez devêssemos mesmo pensar se existem outras formas de descanso
Como descreverias a relação entre as chefias e os trabalhadores?
Para a indústria do turismo — que até tem o nome irónico de “indústria da felicidade” — é muito importante que os trabalhadores aparentem estar sempre contentes e demonstrem entusiasmo e cordialidade de forma constante.
Acredito que isto remonta à própria lógica colonial do turismo, onde existe uma relação de servidão: durante uma semana, o hóspede é o “rei da festa” e, dentro dessa relação de subordinação, tudo parece ser permitido. Por isso, durante as férias, repete-se muitas vezes a famosa expressão “nós merecemos”, como se houvesse uma espécie de suspensão da normalidade, um limbo legal onde tudo é possível.
Essa lógica está muito presente na cultura empresarial destes espaços. Os trabalhadores são incentivados a manter um sorriso permanente e a exibir uma atenção exagerada, quase teatral, em relação aos hóspedes. Ensina-se, por exemplo, que se souberem que um hóspede prefere água com gás, devem colocar mais água com gás no minibar. Ou seja, há uma procura constante por uma atenção desmedida.
Isto, evidentemente, tem um impacto muito grande na vida dos próprios trabalhadores. Nos hotéis de luxo, há ainda outro fenómeno curioso: de certa forma, responsabiliza-se os trabalhadores pelo próprio luxo. Passa-se a ideia de que, por trabalharem num hotel de luxo, eles próprios são o luxo. Isso, naturalmente, gera uma enorme pressão adicional, sobretudo porque as exigências não se refletem nas condições que lhes são oferecidas.
A gentrificação, o excesso de turismo, modificou a estrutura das cidades. Teve um profundo impacto na habitação e na forma como os próprios locais usufruem das suas próprias cidades. Como olhas para esta questão e como caracterizas o caso específico de Barcelona? Porque também vivemos a mesma situação com Porto e Lisboa.
No fundo, a indústria turística conduz a mecanismos de disposição. Significa que estes mecanismos conduzem a uma disposição em todos os sentidos: a uma disposição material e a uma disposição simbólica. É material porque há cada vez mais bairros, como a “Rambla”, “Ciutat Vella”, “El Born” — bairros que se tornam inabitáveis para as pessoas que lá vivem. Passam a fazer parte de um cenário totalmente turístico, onde aquilo que encontramos, sobretudo, são lojas e comércios de recordações, e onde é praticamente impossível comprar uma garrafa de água por menos de dois euros.
Isto leva, por um lado, à perda do direito à cidade e, por outro, revela uma relação clara e evidente entre os processos de turistificação, de gentrificação e a crise da habitação. Esta é uma ligação que, até há poucos anos, não compreendíamos totalmente. Não tínhamos ainda feito a associação, o clique, que nos levasse a perceber que as nossas dificuldades em aceder a uma casa — sobretudo entre a nossa geração — estão profundamente ligadas aos processos de turistificação.
Ou seja, quando criticamos a turistificação, não é porque nos incomoda quem está de visita — que em Espanha se chama “guiri”, uma forma algo depreciativa de se referir ao turista. Não é que nos incomode o turista por ocupar o passeio. O problema é que o modelo atual faz com que grande parte do parque habitacional em Barcelona esteja destinado ao alojamento turístico ou de curta duração. E isso faz com que seja cada vez mais difícil, para quem quer realmente viver em Barcelona, conseguir ter acesso a uma habitação.

O turismo sustentável é possível?
Boa pergunta. Para escrever este pequeno ensaio, tinha muito claro que não queria fazer um guia ético sobre o bom e o mau turista. Porque, muitas vezes, propostas ou alternativas que à partida pareciam benéficas ou éticas acabaram também por ser engolidas por lógicas capitalistas. Penso, por exemplo, no Airbnb.
No início, o Airbnb apresentava-se como uma plataforma ética, uma forma de te diferenciares das massas e viveres como um local. Era isso que diziam e, em parte, acreditámos nisso. Pensámos que era uma bom modelo que nos permitia ser mais independentes e autónomos, cozinhar em casa e ter um apartamento.
O que desconhecíamos na altura eram os efeitos profundamente nocivos que a Airbnb e outras plataformas semelhantes iriam ter no acesso à habitação. Por isso, sou sempre muito cautelosa, porque muitas vezes propostas que parecem éticas ou sustentáveis acabam também por se tornar eticamente questionáveis.
Fala-se muito de turismo social, de turismo comunitário, de turismo rural. Muitas destas propostas funcionam, mas muitas outras causaram danos e impactos negativos nas próprias comunidades. Em Espanha, por exemplo, também grande parte do mundo rural está a viver, de forma dramática, uma crise habitacional. Isto porque muitos desses territórios estão a ser apresentados como destinos pioneiros de turismo rural, de descanso, de “desconexão”, mas muitas dessas atividades também prejudicam as populações locais.
Acredito que há alternativas, que é possível fazer diferente. É isso que tento mostrar na parte final do ensaio, ainda que sem aprofundar demasiado, porque isso já seria outro livro. Mas acredito que sim, que há caminhos e, sobretudo, trata-se de tirar a indústria turística das mãos daqueles que mais lucram com ela. Estamos a falar de fundos de investimento, grandes operadores turísticos, fundos abutres e grandes empresários do setor hoteleiro.
Não se trata só dos hotéis ou das habitações para turistas. São todos os negócios paralelos que giram em torno do turismo nos centros das cidades como as pastelarias e os restaurantes. Os preços são exorbitantes.
Esse é outro dos efeitos muito visíveis. O que chamamos de “despossessão” também tem a ver com a perda de acesso a serviços básicos. Os territórios fortemente turistificados tornam-se locais impossíveis de viver justamente por isso: já não consegues fazer compras, já não encontras uma frutaria, um restaurante onde possas beber um café com leite e comer uma simples sandes.
Tudo é transformado para o turista, e isso tem um impacto sério na vida dos habitantes locais. Estive em Lisboa há uns dias, precisamente com o movimento “Referendo pela Habitação”, que faz o prefácio do livro. É um movimento que considero muito poderoso, e que responde bem à pergunta sobre o que podemos fazer: organizar-nos coletivamente. Este movimento é um exemplo disso. Uma das coisas apontadas nessa conversa foi que, quando se fala dos empregos criados pelo turismo, também deveríamos pensar nos empregos que o turismo impossibilita.
Por exemplo, os negócios locais, de bairro, que sempre ali estiveram, veem-se obrigados a adaptar-se ao público turista ou simplesmente a fechar portas.
Há sempre uma espécie de “letra pequena” quando nos dizem: “O turismo gera muita riqueza”. Sim, mas quem fica com essa riqueza? Como é que ela é distribuída? “O turismo dá trabalho.” Está bem, mas que outros trabalhos impossibilita? Quantos outros empregos deixam de ser viáveis?
Vivemos numa época instável a nível mundial, num clima de guerra, e não sabemos bem o que vai acontecer. Mas, ao mesmo tempo, parece que o turismo conseguiu ultrapassar a crise que sofreu durante a pandemia do COVID, e os números continuam a crescer. Como é que olhas para este desequilíbrio? De um lado, a incerteza global; do outro, este aumento do desejo de viajar?
Após ao momento de paragem total nas viagens, muitas economias ressentiram-se fortemente com a ausência de visitantes. E, por isso, a crítica à turistificação também propõe uma transição ecossocial com sentido. Temos plena consciência de que não podemos simplesmente acabar com o turismo e deixar de um dia para o outro muita gente que, mesmo em condições precárias, vive disso, sem alternativa. O que é necessário é pensar em outras indústrias possíveis, que nos permitam não depender apenas do turismo.
Mas é verdade o que dizes: depois da pandemia, lembro-me de que nos questionávamos se os tempos das viagens tinham chegado ao fim, se voltaríamos a viajar como antes. E o que vimos, com o passar dos anos, foi uma recuperação total — e até um aumento — dos níveis de deslocação, até atingirmos níveis absolutamente elevados. Isto é interessante, porque acho que o turismo funciona muitas vezes como uma via de escape. É um canal que amortece, que suaviza. Como tu disseste, o turismo consegue fazer parecer que nada está a acontecer no mundo. E, em parte, usamos essa ferramenta como uma fuga: é uma forma de escapar aos nossos problemas, aos conflitos mundiais, aos conflitos políticos.
O turismo está muito ligado a uma evasão desesperada: o mundo pode estar a desintegrar-se, mas tenho os meus dois bilhetes para ir para o outro lado do mundo. Penso que o turismo é extremamente eficaz nesse sentido e funciona, quase, como um grande elemento dissuasor, paralisante da ação política. Isto porque, pelo menos durante algum tempo, temos a sensação de que está tudo sob controlo, numa praia deserta, sem que ninguém nos incomode. E é verdade que isso está diretamente ligado a esse capital simbólico, a esse valor intangível, imaterial, que a viagem produz. Muitas vezes, trata-se de uma viagem de evasão e, diria mesmo, de desespero.
Quanto à relação do turismo com o desenvolvimento dos espaços que vivem maioritariamente do turismo ou cuja economia depende quase totalmente do turismo. Percebemos que nem sempre o turismo acaba por significar, para muitos territórios, um maior desenvolvimento económico.
Acho que isso é importante para não assumirmos de forma acrítica que o turismo representa sempre, a 100%, desenvolvimento e progresso. Podemos pensar que realmente representa desenvolvimento e progresso caso haja uma redistribuição justa da riqueza. Caso contrário, é apenas um espelho ilusório, uma fantasia, uma utopia para poucos. O problema não é tanto o turismo em si, mas sim o modelo. Acredito que existam formas de transformar isto. Talvez nem devamos continuar a chamar-lhe turismo, talvez seja necessário inventar outros nomes. Mas o problema, definitivamente, está no modelo. Porque, tal como está estruturado atualmente, aquilo a que chamam “desenvolvimento turístico” é, em grande parte, uma ilusão. Quando muito, é um desenvolvimento que vem sempre com uma nota de rodapé muito significativa.