Entrevista. Arlindo Oliveira: “Não me parece completamente irrazoável que no futuro tenhamos inteligências não humanas com uma influência significativa”

por José Malta,    9 Junho, 2025
Entrevista. Arlindo Oliveira: “Não me parece completamente irrazoável que no futuro tenhamos inteligências não humanas com uma influência significativa”
Arlindo Oliveira / Fotografia de Rui André Soares – CCA
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Arlindo Oliveira é professor Catedrático no Departamento de Engenharia Informática do Instituto Superior Técnico e investigador no Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores (INESC). Licenciou-se em Engenharia Electrotécnica, doutorou-se na Universidade de Berkley, na Califórnia, Estados Unidos, foi presidente do Instituto Superior Técnico entre 2012 e 2019, e é um dos maiores especialistas de Inteligência Artificial em Portugal. 

Com mais de 200 artigos publicados em revistas científicas internacionais, publicou diversas obras de divulgação como “Mentes Digitais: A Ciência Redefinindo a Humanidade; Arquitectura de Computadores: dos Sistemas Digitais aos Microprocessadores”; “Ciência Tecnologia e Sociedade; Inteligência Artificial” e “Inteligência Artificial Generativa”, sendo estas duas últimas obras publicadas pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Recebeu-nos no passado dia 19 de Maio no INESC onde, para além de exercer a sua actividade de Investigação, é também o actual presidente deste instituto.

No dia 30 de dezembro de 2022, foi a data em que a OpenAI lançou a primeira versão do chatbot ChatGPT. A Inteligência Artificial parecia ter surgido do nada, mas já vinha com muitos anos de trabalho, cerca de sete décadas. Já estava presente em várias aplicações, mas só agora aparecia de um modo mais palpável para gerar texto, vídeo e imagens, a chamada Inteligência Artificial Generativa [GenAI]. Para além de ter sido o dia em que a Inteligência Artificial começou a ser algo mais palpável e de fácil acesso para a sociedade em geral, foi também o dia em que as pessoas começaram a se interessar mais pela Inteligência Artificial e a preocupar-se com a sua utilidade e do impacto nas suas vidas?

O lançamento do ChatGPT, em novembro de 2022, tornou mais visível uma realidade que já existia há muito tempo. As pessoas já se tinham interessado antes por resultados da Inteligência Artificial, quando o Deep Blue bateu o [Garry] Kasparov em 1997. Depois houve mais uma aplicação de tecnologias de IA [Inteligência Artificial] a jogos, em 2016 e 2017 como o AlphaGo, e obviamente as pessoas, os especialistas, usavam a Inteligência Artificial de muitas maneiras. As redes sociais, por exemplo, usam a Inteligência Artificial para escolher os conteúdos que nos apresentam. Mas, de facto, o ChatGPT foi uma interface, uma ligação mais directa aos sistemas de IA e o domínio como estes sistemas fazem uso da linguagem permite comunicar com eles de maneira muito simples através de texto, seja em português ou em inglês.

Acho que foi essa facilidade de acesso que tornou popular estas ferramentas, que vieram a ser mais populares do que os seus criadores pensavam. O GPT-3, que já estava disponível desde 2020, é muito parecido em muitos aspectos com o ChatGPT, embora não tão afinado. Já tinha a capacidade de responder a perguntas, de gerar texto e já o usava desde 2020. Houve também aqui um efeito de propagação em cadeia, um efeito viral, que fez com que este ChatGPT se tornasse, de repente, muito popular. Acho que houve aqui uma combinação da tecnologia ser suficientemente madura e também de ter calhado na altura certa e apanhado também as pessoas com a motivação certa.

Arlindo Oliveira / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Tendo em conta que a inteligência é uma característica dos seres vivos, que envolve uma interpretação da realidade, uma parte emocional, uma parte que também envolve processamento de informação, de imagem, etc. O nome da desta tecnologia, inteligência artificial, tal como ela está, não deveria ter um nome do género “raciocínio artificial ou “linha de pensamento artificial”? Ou o termo Inteligência tem um pouco a ver com a ideia que o Alan Turing teve nos anos 50, de que no futuro uma máquina pudesse ter consciência e passar por si mesma, sendo este o horizonte desta tecnologia? 

A designação de inteligência é muito abrangente. Os seres humanos obviamente são inteligentes, mas os animais também têm determinados tipos de inteligência. E a designação de inteligência artificial, que foi adoptada em 1956, de facto, veio a revelar-se bastante bem conseguida. Raciocínio é um bocadinho diferente pois, tanto quanto sabemos, são só os seres humanos que o têm. Mas existem outros tipos de inteligência como a inteligência visual, inteligência motora, inteligência auditiva, entre outras. Inteligência é, provavelmente, o conceito mais vasto. Raciocínio é uma componente mais específica, que tipicamente envolve uma sequência de pensamentos encadeados, que tem sido muito desenvolvido ao longo dos últimos 70 anos, mas que agora, em particular, o chamado reasoning está também a ser integrado nos últimos modelos. Acho, portanto, que Inteligência Artificial é um nome bem pensado. Turing não usou o termo no artigo 1950, mas estava claramente a pensar na inteligência. A questão da consciência que ele levanta nesse artigo é uma outra questão relacionada, mas está um bocadinho separada.

Uma das coisas que o professor diz no seu mais recente livro, “Inteligência Artificial Generativa”, é que os dados são o petróleo do século XXI. E, tal como o petróleo, é preciso haver um certo refinamento de dados de forma a serem fidedignos e úteis para a aplicação que se quer. Existe aqui uma espécie de simbiose entre os dados e a Inteligência Artificial, na medida em que a Inteligência Artificial precisa de dados, mas também consegue melhorar esses mesmos dados? 

A questão dos dados na Inteligência Artificial é bastante anterior a estas tecnologias de Inteligência Artificial Generativa. A Analítica, que é a capacidade de usar dados e de extrair valor económico, tem muitos anos, muitas décadas, e já é usada nas empresas, nas instituições, nas redes sociais, nos media, etc. De facto, essa ideia de que os dados são um pouco como o petróleo, têm de ser refinados, e de extrair o conhecimento, é uma ideia que já tem mais de 10 anos. Aliás, a afirmação não é minha. A Inteligência Artificial precisa de dados, para se configurar os sistemas são precisos dados. Mas esta também pode ser usada para processar esses dados e gerar conhecimento. Existe aqui um círculo, esperemos que virtuoso, de utilização e criação de novos dados. Embora, com a tecnologia actual, todos os dados, todo o conhecimento que é criado é de alguma maneira derivado. Há alguns exemplos de inovação, mas quase todo o conhecimento é derivado de coisas que já existem. 

Os sistemas podem-se sumarizar, podem-se relacionar, podem-se elaborar sobre um dado tópico, mas na maior parte dos casos não criam nada de realmente novo. Mas sempre há que fazer analogias e alguns tipos de actividades criativas que, em princípio, permitem que criem coisas novas e que, no futuro, se cair no ambiente distante, vão criar cada vez mais coisas novas, coisas que nós não sabíamos. Por exemplo, no caso do AlphaGo e do AlphaZero, foram criadas novas abordagens no jogo do Go que até à data não eram conhecidas. Por isso, deste ponto de vista, também já criaram coisas novas.

É da opinião de que algumas tarefas feitas por nós humanos, aquelas tarefas mais demoradas, devessem ser substituídas pela Inteligência Artificial de modo gradual, do mesmo modo que profissões no passado deixaram de existir devido ao avanço tecnológico? A Inteligência Artificial no mercado de trabalho irá, por um lado, aumentar a competitividade, mas também valorizar as nossas competências humanas, que ainda não são reprodutíveis pelas máquinas?

A pressão para conseguir fazer mais com o mesmo esforço, que pode ser colocada em termos económicos com aumento de produtividade, existe desde há vários anos. Teve uma situação muito marcante a partir da Revolução Industrial, onde começámos, gradualmente, a usar máquinas mais sofisticadas para fazer o trabalho de seres humanos. Já antes usávamos algumas, mas a partir da Revolução Industrial começámos a usar máquinas movidas por energia e não por via humana nem animal. Esta pressão, para conseguir mais eficiência para o nosso trabalho, é uma pressão que tem há centenas de anos e tendo vido a aumentar cada vez mais. A cada década que passa há um maior incentivo para sermos mais produtivos, para produzirmos mais com o mesmo esforço. A Inteligência Artificial alargou agora essa possibilidade relativamente ao trabalho intelectual. Como muito do trabalho da sociedade actual é trabalho intelectual, é de prever que, progressivamente, uma parte significativa e talvez a mais repetitiva do nosso trabalho seja feita por Inteligência Artificial. 

A pergunta que sobra é, mas então as competências que nós continuamos a ter e que não são automatizáveis nos próximos temos, serão as que são mais preciosas de alguma maneira? Talvez sim, talvez não. Muitas das funções que nós fazemos são processamento de texto, processamento de informação. Se a Inteligência Artificial executar 50% destas funções, uma coisa que não é impossível de acontecer na próxima década, teremos o dobro das pessoas para os mesmos empregos. É verdade que haverá mais pressão para pessoas com competências únicas, mas também haverá mais pessoas a concorrer para esses empregos. Não é muito óbvio. Acho que nem mesmo os economistas têm uma ideia completamente clara de qual vai ser o impacto no mercado de trabalho desta tecnologia. Pode ser que, por um lado, é como disse. Determinadas competências vão ser cada vez mais valorizadas. Há uns anos atrás pensava-se chegar à competência de um programador. Agora isso já não é tão óbvio, mesmo que a Inteligência Artificial já faça muitos trabalhos de programador. Pode ser que as pessoas trabalhem menos, em vez de semana de cinco dias, temos a semana de quatro dias e três dias. Ou pode ser que, simplesmente, não haja empregos para todas as pessoas e temos de arranjar maneiras de redistribuir o valor económico. Acho que há muitas possibilidades, acho que realmente ninguém sabe e acho que os economistas também ainda não sabem bem o que é que é. 

Capa do livro / DR

Pode haver o risco de existirem disrupções sociais? 

Acho que pode, se não arranjamos maneiras de redistribuir. Isso já acontece nos Estados Unidos que são um país riquíssimo, onde a economia tem crescido imenso nas últimas décadas e, no entanto, temos milhões de pessoas que são completamente excluídas do acesso aos bens económicos. Apesar de ter um enorme rendimento per capita e de haver pessoas que são multibilionárias, os Estados Unidos claramente não estão a conseguir resolver o problema da redistribuição. A Europa é melhor nesse aspecto e a Ásia também, mas a pressão pode ser maior. Neste momento já pagamos aqui na Europa impostos cujas taxas máximas rondam entre os 40% e os 50%. Se isso aumentar e for mais generalizado, pode ser que também comecem a levantar dificuldades. Portanto, acho que há aqui de facto um risco de disrupção social causado por alteração das estruturas sociais.

Outro risco que também foi muito falado foi a questão das artes. Uma das coisas que se fez com a Inteligência Artificial, e que foi muito elogiada, foi ter-se recuperado uma canção inacabada dos Beatles em 2023. Foi um sucesso reconhecido por boa parte do público, mas quando houve uma moda recente de reproduzir imagens ao estilo Ghibli, veio pôr-se em causa questões sobre os direitos do autor e sustentabilidade. Como é que se gere este equilíbrio?

A ideia de fazer e escrever músicas ao estilo de um certo autor já é muito antiga. Eu lembro-me que nos anos 90 estive em conferência nos Estados Unidos, onde os sistemas geravam músicas no estilo de Bach. Só mesmo os grandes conhecedores de Bach é que conseguiam distinguir, porque conheciam as músicas que ele escreveu. Não é uma coisa nova. Enquanto era feito por curiosidade, por investigadores, era uma coisa. Agora, quase qualquer pessoa pode gerar quase qualquer coisa ao estilo de quase qualquer um, levanta-se essa questão complicada dos direitos do autor. E nesse caso acabamos poer ter uma visão um bocadinho diferente se estes forem seres humanos ou máquinas. Se for um ser humano que pinta um quadro no estilo do Dalí, poderemos dizer que não está a ser muito original. Mas também não é plágio, porque as pessoas podem pintar uma coisa no estilo do Dalí. Se for uma máquina que se inspira no Dalí e faz quadros no estilo do Dalí, temos aqui também um bocadinho de double standard [dualidade de critérios]. É claramente uma área complicada, justamente porque as máquinas têm esta capacidade. Para pintar um quadro no estilo do Dalí eu tenho de saber pintar, enquanto que agora basta fazer-se um programa e qualquer pessoa pode usar esse programa.

A disseminação desta capacidade, de criar qualquer estilo, seja um estilo de pintura, literário ou musical, levanta questões muito complicadas de direitos de autor e de propriedade intelectual. Nós temos aqui algum trabalho feito nessa área, justamente de detectar se o se leu ou não leu determinados textos, ou se viu ou não viu determinadas imagens. É uma questão importante que vai ter de ser dirimida não pelos tecnólogos mas sim pela sociedade. Até que ponto é que vamos exigir que os modelos de Inteligência Artificial e as empresas que os exploram devolvam ao trabalho original, ou creditem o trabalho original? Acho que é uma questão que está completamente em aberto e que não está resolvida. Há diversas ações judiciais a decorrer nos Estados Unidos, cujos resultados ainda não são conhecidos, nomeadamente uma do New York Times contra a OpenAI, que acho que vão definir um bocadinho os precedentes para o que vai acontecer a seguir. Há muitas ações dessas a decorrer, vamos ver o que é que os tribunais decidem. Aquilo a que os americanos chamam de fair use, que é o uso de determinados trechos noutras obras, está neste momento a ser muito atacado, porque a IA pode usar determinadas ideias noutras obras, e isso é visto como cópia e não como uso justo.

Ainda assim a União Europeia tem já uma legislação para Inteligência Artificial que está bastante à frente dos Estados Unidos e da China, e que avalia níveis de risco e princípios éticos. Esta legislação será suficiente para evitar cenários como guerras tecnológicas, ou poderá eventualmente também enfraquecer os países em questão? Os países que têm uma maior regulamentação podem ficar mais enfraquecidos, caso haja uma guerra tecnológica, do que aqueles países que não têm uma regulamentação tão rígida? 

O regulamento de Inteligência Artificial, que em inglês diz AI act, é de facto um regulamento bastante extenso e que se preocupa principalmente com a proteção e em proteger os cidadãos de consequências nefastas ou negativas da Inteligência Artificial. De facto, estabelece um conjunto de níveis de risco e depois estabelece também um conjunto de regras para tratar cada nível de risco. Desse ponto de vista é o regulamento mais sofisticado e mais complexo. Embora existam outras coisas parecidas, como na Califórnia e no Japão, o regulamento da União Europeia é provavelmente o mais restritivo e o mais exigente. Por um lado isso dá garantias que são interessantes, garantias de que somos protegidos das utilizações mais agressivas da Inteligência Artificial. Mas por outro lado coloca exigências nas empresas, não só nas grandes empresas norte-americanas e chinesas dessa área, mas também nas pequenas empresas que se querem estabelecer. Por isso, é justo dizer que essas restrições complicam a utilização da Inteligência Artificial em novas aplicações e em novos produtos. Essa complicação é maior para as pequenas empresas do que para as grandes que têm departamentos jurídicos justificados. Até que ponto é que as vantagens da proteção compensam as barreiras adicionais de entrada? É uma questão que ainda está por resolver. A verdade é que nenhuma das grandes empresas de Inteligência Artificial neste momento é europeia. São, maioritariamente, americanas e chinesas.

Arlindo Oliveira / Fotografia de Rui André Soares – CCA

O professor foi durante vários anos presidente do Instituto Superior Técnico, onde entrou como aluno de licenciatura numa altura em que os computadores ainda eram uma coisa que não estava ao acesso de todo e qualquer cidadão. Quando se doutorou já havia a World Wide Web que veio revolucionar o aceso à informação a nível global. Quando presidiu o Instituto Superior Técnico, cada estudante tinha o seu computador numa altura onde os computadores já tinham formatos de fácil acesso. E agora temos a Inteligência Artificial generativa ao acesso de todos os estudantes. A exigência no ensino superior tem sabido acompanhar esta evolução das tecnologias que têm ajudado muito o ensino, ou se vê alguma discrepância no nível de exigência do seu tempo de estudante em relação aos dias de hoje? 

Falando do [Instituto Superior] Técnico, o nível de exigência é semelhante. O Técnico continua a ser muito exigente. A verdade é que os alunos têm muito mais acesso a cursos agora do que tinham há 45 anos atrás. Quando vieram as máquinas de calcular, os professores acharam que não podia ser usadas, porque os alunos assim não sabiam usar regras de cálculo. Quando apareceram os computadores, apareceram também questões semelhantes. Quando apareceu o Google e as pessoas iam procurar coisas na web, levantaram-se questões semelhantes. Neste momento temos a Inteligência Artificial que levanta muitas questões, até porque é muito fácil neste momento obter informação e até resolver problemas e desafios e programas com a mesma.

Não digo que a Inteligência Artificial seja exatacmente igual às outras tecnologias que a precederam, no sentido de que não muda profundamente a educação. Eu acho que muda, por mais não seja porque toda a gente agora tem um tutor personalizado e acho que coloca pressões diferentes. Aquele esforço que era necessário fazer para aprender, para dominar uma matéria, neste momento é um bocadinho simplificado porque temos um modelo à mão que responde a quase qualquer coisa.

Ainda não tornou completamente obsoleta, nem pouco mais ou menos, a profissão de engenheiro, nas suas diversas especialidades. Mas esta já faz muitas funções que um engenheiro faz. Não tenho uma ideia completamente clara de como é que vai ser o futuro da educação num mundo onde todos os jovens têm estes modelos sempre à mão, seja para escrever um novo programa, seja para elaborar um relatório, seja para responder a uma pergunta. Acho que as universidades e as escolas ainda não se adaptaram ao novo modeloe não é muito óbvio para mim qual é a adaptação. Acho que há aqui um desafio grande para a educação. A esperança é que, tal como os outros desafios, vai ser superada pela positiva. No pior cenário vamos acabar por criar uma nova geração de graduados que são muito bons a usar os modelos de linguagem e as tecnologias, mas que não são muito bons a pensar por eles. 

Já existem pessoas a criar laços de emoção com sistemas de inteligência artificial, tal como o filme Her, de 2013? 

Sim, há. Até, para dizer a verdade, há empresas que se especializam nessa área. A character.ai faz justamente isso. Houve um podcast recente no New York Times sobre isso mesmo exatamente. São pessoas que escolheram relações pessoais de amizade. Algumas delas, parece-me, vão um bocado para além da amizade com estes sistemas, apesar das limitações. À medida que os sistemas vão evoluindo e vão tendo a capacidade ter uma memória mais comprida, como agora já acontece com diversos destes sistemas, essa relação torna-se mais complexa porque os sistemas lembram-se do passado e da história da pessoa. A pessoa apresenta-se e depois o sistema interage dessa maneira, mas nos novos sistemas a memória é mais comprida e possibilita isso. Acho que sim, e acho que esse número vai crescer muito. Há pessoas que, por uma razão ou por outra, não têm relações pessoais, ou de amizade, porque estão sozinhas, ou vivem em sítios difíceis. Estes sistemas são muito flexíveis porque se podem adaptar às necessidades da pessoa. Eu não tenho estatísticas, mas há de certeza milhares e milhares de pessoas que já têm relações bastante sofisticadas, pessoais, de amizade, ou até casos de amor, platónico por enquanto, com estes sistemas. 

Capa do livro / DR

Isso pode ser positivo para uma questão importante no nosso dia-a-dia que é a saúde mental das pessoas? 

Pois, as opiniões aí divergem. Eu costumo dizer que em vez de uma pessoa, um idoso por exemplo, estar sozinho, sem falar com ninguém o dia todo, dia após dia, tiver um sistema destes, um robô ou um chatbotcom quem constrói uma relação, conversas construtivas e que até pode servir de ligação à família, parece-me que é razoavelmente fácil ver um lado positivo aqui.

Por outro lado também é fácil ver um lado negativo, que é um bocadinho uma alienação, em que as pessoas deixam de esforçar para criar relações com outras pessoas e criam relações com máquinas que são mais simples. Em determinadas fases da vida, como na adolescência ou na terceira idade, às vezes é difícil ter relações complexas por razões práticas ou psicológicas. Podemos pensar que isto é a última alienação mais indesejável. Acho que aqui, tal como na questão da utilização da IA em educação, ainda estamos a aprender a lidar com estas consequências. Mas eu tenho poucas dúvidas que vai haver milhões de pessoas com relações bastante profundas com sistemas destes. Imagino uma pessoa que tenha consigo um sistema que tenha um avatar, uma cara de uma pessoa que conhece, que fala consigo há meses, há anos, e que conhece a sua história, conhece a sua família, conhece as suas memórias ou as conversas que contou. Não me parece particularmente difícil imaginar que relações profundas sejam estabelecidas com estes sistemas. E até vou dizer que, em muitos casos, essas relações serão positivas e ajudam à estabilidade emocional das pessoas. Podemos achar que é um mundo, assim, um bocadinho estranho. Mas, francamente, acho que estamos nessa direcção. Para além da character.ai há muitas outras empresas que trabalham justamente nessa área. 

O século XX foi um século bastante dominado pelas grandes teorias da Física, como o Relatividade Geral, Mecânica Quântica, que permitiram que chegarmos à tecnologia que temos hoje. Através da Física Fundamental, passámos para uma Física Aplicada e conseguimos ter os computadores, os telemóveis e outros micro-sistemas que temos hoje. No século XXI, os primeiros sinais dão conta que este será o século da Inteligência Artificial e que esta poderá fazer o papel reverso, ou seja, ajudar a descobrir-se ainda mais na Ciência Fundamental?

Essa comparação inicialmente foi feita tendo em conta que o século XX foi o século da Física e o século XXI seria o século da Biologia, no sentido em que no começámos este século com a sequenciação do genoma e temos descoberto muitos fenómenos da Biologia. Não tenho dúvidas que o Século XXI vai ser um século onde vamos aprofundar muito o nosso conhecimento da Biologia e da Bioengenharia, permitindo o tratamento de doenças, o prolongamento de vida, etc. Há de facto uma tecnologia em competição com a Bioengenharia, que é a tecnologia da Inteligência Artificial. Ela vem de alguma maneira na sequência de tecnologias já existentes, é um desenvolvimento na sequência das tecnologias da computação e da programação.

O que acontece é que o paralelo entre o século XX ser o século da Física e o século XXI ser o século de [outra ciência ou tecnologia]. Não bate muito certo porque a Física está por trás de tudo, embora a IA seja mais matemática que Física. Acho que o século XXI vai ser o século de muitas tecnologias. Seguramente que a Biotecnologia será uma dessas. A Nanotecnologia será também, com certeza, relevante. E claro, a Inteligência Artificial. Mas acho que vai ser um século de mais tecnologias e a Inteligência Artificial tem a característica de poder-nos ajudar a avançar nestas outras coisas. Poderá ajudar-nos a descobrir novas teorias da Física, novos modelos em Biologia, novos resultados em Matemática. Acho que a Inteligência Artificial será determinante nesse aspecto de mover o nosso conhecimento para a frente. Daí a dizer que o século XXI é o século da Inteligência Artificial? Talvez. Pode ser que no fim do século XXI venhamos a dizer isso, mas acho que temos ainda de esperar uns anos [risos].

Tendo em conta os cenários que vivemos atualmente, onde temos mudanças muito rápidas do ponto de vista tecnológico, mas também do ponto de vista político e social, existem, no seu entender, boas razões para olhar para o futuro? 

Temos sempre boas razões para olhar para o futuro. Se devemos olhar de maneira optimista ou pessimista é que é uma questão mais profunda. Vejo algumas tendências preocupantes com a utilização de tecnologias, não só de IA mas tecnologia digital em geral. Vejo uma grande globalização, algumas falhas na redistribuição de rendimentos e da qualidade de vida, uma personalização da informação que chega a cada um e que faz com que as pessoas tomem opções muito diferentes e tenham visões muito diferentes. E também alguns riscos tecnológicos. Tal como a Inteligência Artificial, as armas nucleares são cada vez mais acessíveis, cada vez mais fáceis de construir. Vejo algumas preocupações e consigo imaginar um futuro distópico, onde o mundo se torna muito mais perigoso do que tem sido nos últimos 80 anos, desde que terminou a Segunda Guerra Mundial. 

É verdade que em casos anteriores, nomeadamente com a tecnologia nuclear, conseguimos ultrapassar. É uma tecnologia destruidora, mas conseguimos, até agora pelo menos, não a usar de forma destrutiva novamente. A minha esperança é que estas novas tecnologias, entre as quais inclui a inteligência artificial, mas também a engenharia genética, as biotecnologias, venhamos a conseguir usá-las da maneira mais positiva possível e o menos negativa possível. É um desafio porque são tecnologias um bocadinho diferentes, mais acessíveis do que as tecnologias nucleares, com efeitos negativos mais insidiosos, mais perniciosos, e não é um dado adquirido de que vai tudo correr bem com estas novas tecnologias, tal como correu com as tecnologias anteriores. Mas a minha esperança é que sim, corra bem.

E continua a ser nossa matriz, a matriz humana, a querer decidir o qual será o nosso futuro?

Talvez mude um bocadinho. A matriz humana é a nossa inteligência como indivíduos e também as nossas emoções e a nossa capacidade de interagir com o mundo. Mas a inteligência desempenha um papel importante. Não me parece completamente irrazoável que no futuro, neste século, tenhamos inteligências não humanas que também tenham uma influência significativa, quer na descoberta científica, quer na arte, quer na criação de todos os tipos de conteúdos, quer na economia. Não me parece completamente impossível que, ainda neste século, venhamos a conviver com inteligências que não são humanas que possam desempenhar um papel. Que possam votar, ter empregos, pagar impostos. São tudo questões em aberto. Provavelmente a resposta é não a estas perguntas. Mas mesmo que a resposta seja não a estas perguntas, não quer dizer que não tenham influência. Imaginemos que determinados países decidem usar sistemas de Inteligência Artificial para decidir a melhor legislação que deve ser proposta aos respectivos parlamentos. Já estamos a ter um nível de influência que ainda é aceitável. Temos uma legislação proposta para ser votada por humanos, mas que já é muito importante. Por isso, não me parece totalmente impensável que sistemas de Inteligência Artificial venham a ter também um impacto no futuro da sociedade e da humanidade.

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