Entrevista. Bernardo Carvalho: “O interessante na literatura é desafiar limites que não são moralmente aceitáveis”
Bernardo Carvalho tem uma voz marcada pelas contradições. Autor carioca nascido em 1960, define-se como sendo “fora do lugar”, é fruto da dualidade entre o Brasil e o exílio, entre a pertença e o deslocamento. “Gosto muito de viver deslocado. É bom saber que não faço parte de nenhum lugar”, afirma, como se dissesse que a identidade é algo que não se cola, mas se tensiona — e que esse “não lugar” rende literariamente. Foi forçado a voltar ao Brasil quando uma crise na Folha de São Paulo provocou demissões de correspondentes, quando ainda morava em Paris. Para um carioca, São Paulo é terra estrangeira e seria neste estado — administrativo e moral — que Bernardo instalar-se-ia. Esse sentimento de não pertença encontra-se agora no âmago de “Os Substitutos”, que chegou às livrarias portuguesas em setembro de 2025 pela Companhia das Letras.
Viagem de nascimento: o crime no lugar da lei
“Os Substitutos” começa com uma viagem aérea sobre a Amazónia, em plena ditadura militar brasileira. Pai e filho seguem num bimotor: o pai, um homem enfermo e emocionalmente instável, envolvido com negócios e militares; o filho, um rapaz de onze anos, observa, teme, lê compulsivamente um romance de ficção científica sobre um planeta substituto da Terra. As duas narrativas — a da memória e a da ficção — vão-se espelhando até se confundirem. A ficção científica é o refúgio e o espelho da realidade: uma nave que procura um planeta substituto é também o eco da busca de sentido e de identidade de quem sobrevive num país e numa família à beira do colapso.

No romance, o pai abandona o lugar da lei e aproxima-se do crime, e o filho, forçado, assume o papel moral, a figura da ordem. É uma inversão que, nas palavras do autor, “incomoda” e desafia a tradição do poder patriarcal. Entre os dois, instala-se uma relação de ambiguidade extrema — amor e repulsa, dependência e trauma, ternura e brutalidade. O menino tenta resgatar essa relação como se fosse de amor, mas acaba “quebrando a cara” ao perceber que nunca viu o cerne da violência. Essa é, talvez, a pergunta central do livro: é possível existir amor dentro da violência?
A narrativa constrói-se como uma espiral de memória, onde as lembranças se contaminam, deslocam, sobrepõem. “A própria escrita vai-me levando”, diz Carvalho, “dando forma ao livro”. É o fluxo da memória que dita a estrutura: fragmentada, elíptica, feita de substituições. O título, afinal, reflete o movimento íntimo e histórico de um país e de uma consciência — substituímos verdades, memórias, mundos e até afetos.
A liberdade da ficção e o avesso das certezas
Bernardo Carvalho insiste que “Os Substitutos” não pretende oferecer conforto nem respostas fáceis. “O interessante na literatura é desafiar limites que não são moralmente aceitáveis”, diz-nos, recusando a ideia de que um romance deva confirmar crenças sociais ou identitárias. Para ele, a literatura é um espaço de risco, de contradição, de liberdade. Num tempo em que a ficção tende a ser domesticada pelo discurso moral, Bernardo Carvalho insiste que o papel do escritor é lidar com o indizível — criar problemas, não resolvê-los.

“Para mim é empobrecedor esperar que o livro seja uma resposta para tudo”, refere. “O que me interessa é o avesso disso, talvez os traumas não tenham superação.” Na sua visão, o mundo contemporâneo tornou-se “crente e infantilizado”, obcecado com a ideia de que é possível escapar à morte, à perda, ao fim. Contra esse desejo de pureza, Carvalho oferece uma literatura impura, inquieta, que olha de frente a falha, a contradição e o real.
A relação entre memória e esquecimento percorre toda a sua obra — de “Nove Noites a Reprodução”, e agora em “Os Substitutos”. Aqui, a memória é também uma forma de ficção: “como se a lembrança fosse uma sequência de substituições, de sobreposições”. Lembrar é distorcer, deslocar, inventar. Nesse sentido, a estrutura narrativa, com os seus blocos descontínuos, imita o funcionamento da mente: um mosaico que nunca se completa, um planeta narrativo na procura de substituição.
Amazónia, herança e contradição
Bernardo Carvalho é bisneto do marechal Cândido Rondon, figura mítica da história brasileira, positivista, explorador e “desbravador” do interior do país. Essa herança simbólica paira sobre o romance, mas não como homenagem. “O pai do livro não é íntegro”, diz-nos. “Ele é a corrupção absoluta.” Rondon acreditava na ciência como substituto de Deus, um gesto fundacional e contraditório da própria República. O romance faz eco dessa tensão — entre mito e falha moral, entre utopia e degradação.

A Amazónia, cenário do livro, não é apenas geografia, é consciência. É o espaço onde se cruzam a violência colonial, o apagamento dos povos indígenas e a degradação contemporânea. É também o coração pulsante da memória brasileira. “Quando se destrói a floresta”, sugere o autor, “destrói-se um pedaço de mundo, de memória coletiva.”
Entre o Brasil da ditadura e o Brasil da pós-verdade, “Os Substitutos” atravessa o tempo sem fixar morada. É um romance sobre o que resta depois da queda, depois do silêncio, depois da culpa. E talvez por isso Bernardo Carvalho continue a afirmar que não pertence a lugar nenhum — porque a literatura, para ele, é justamente esse território de deslocamento onde se pode dizer o indizível, olhar o real sem piedade, e inventar, entre ruínas, o que ainda resiste.

