Entrevista. Bonga: “Gosto da fusão de estilos musicais. Há miúdos que fazem boa música e, para mim, não há fronteiras”
Bonga foi um dos cabeças de cartaz do festival Micro Clima na SMUP. O Espalha-Factos conversou um pouco com o experiente músico no seu camarim.
Quero começar por perguntar quem é que ainda o trata pelo seu nome que consta no cartão de cidadão: José Adelino Barceló de Carvalho?
São os intelectuais e os [indivíduos] que se distanciam do contexto africano é que tratam: “Barceló de Carvalho então estás bom? [risos] 90 por cento das pessoas já me tratam por Bonga.
E é algo que não incomoda?
Chamarem-me Bonga é estar em sintonia comigo mesmo e com a minha opção, que está relacionada com a música, com o ritmo, com África, com Angola e, por conseguinte, Bonga Kwenda engloba todos esses aspetos.
Por desconhecimento pessoal, a palavra Bonga tem algum significado próprio?
Claro que tem. É aquele que procura, que ‘baza’ e avança. Está em constante movimento.
Está prestes a fazer o ensaio de som aqui na SMUP, um espaço já centenário com 121 anos de História, já conhecia este espaço?
Não tenho ideia nenhuma de ter cá vindo atuar.
Qual é o sentimento de ser o mais veterano, digamos assim, num festival destes onde há uma predominância de artistas mais jovens? Acha que tem dar o exemplo?
[risos] Assumo-me como um grande ‘cota’ mas que tem música do antigamente para mostrar e que tem uma jovialidade, no sentido das conversas, das ligações e das aberturas. Felizmente continuo a ser bastante solicitado pelas camadas mais jovens, que por sua vez enchem e frequentam os concertos, o que é muitíssimo bom.
O que é que sente quando ter, nos seus concertos, um público rejuvenescido como será o caso de hoje?
Isso é dar continuidade ao que muitas [gerações] fizeram em casa, que ouviram a música dos avós, dos pais e por isso vêm com aquela curiosidade de assistir, pela primeira vez, uma atuação minha. Depois, alguns deles, querem repetir a experiência.
Sente-se feliz por isso?
Claro e de que maneira. Gosto de ver sangue novo e jovem.
Fiz uma pesquisa na Internet e constatei que o Bonga editou desde 1984 até 2001, pelo menos um disco por ano, ou seja, foram 17 anos de lançamentos anuais de música nova. Pode-me explicar os motivos pelos quais fez isto?
Por incrível que pareça, havia uma necessidade de ter que estar a informar através da música. Por um lado, para as pessoas da minha origem e do outro, divulgar a música da minha terra. Como estava a ser bem aceite, porque já tinha tido discos de ouro e de platina e, principalmente, com boas críticas na imprensa séria. Eu propus-me estar em sintonia com a minha gente e com os meus fãs de várias nacionalidades e senti que tinha esse ‘obrigação’ com eles, apesar de nunca ter sentido ‘pressão’ para escrever. Foi algo natural.
Sobre a sua vasta discografia, reparei que, num álbum ao vivo, cantou Sodade da Césaria Évora, uma cantora cabo-verdiana. Tem estado a par da nova música africana que se ouve pelas rádios como kizomba ou então de um caso particular como do Dino D’Santiago que teve um disco muito bem recebido pela crítica da qual funde funaná com ritmos urbanos? Acha que o grande público se interessa por música africana?
Já teve mais interesse e acho que, hoje em dia, há menos aberturas. Para teres noção, eu passava na Antena 1 ou na Renascença. Se me perguntares o porquê. É porque se calhar há preconceito e aí, cuidado: e se houver preconceito, então é mau. Como mais velho, como ‘cota’, gosto da fusão de estilos musicais. Há umas coisas que pegam e outras que pegam menos, mas não sou radical nesse aspeto. Há miúdos que fazem boa música e, para mim, não há fronteiras. Eu, como papel de tradicionalista, sou divulgador do semba.
Tem 77 anos de vida. O que lhe falta fazer?
[risos] Tenho algumas ideias em cima da mesa e tenho algumas propostas inconcebíveis. Seja como for, há aquela ideia de acontecer um espetáculo na terra de origem com toda aquela ‘velharada’ que ainda está viva e que pode fazer um concerto para ‘informar’ a juventude que está ligeiramente distraída mas ainda não sei nada. Com a idade que tenho, sou um privilegiado porque sou solicitado para fazer uma série de espetáculos.
Li numa entrevista que afirmou que dorme com o seu dicanza. Isso é verdade?
Verdade, verdadinha [risos] Isso acontece porque houve uma determinada altura, naquela em que editava um disco por ano, tinha o gravador [de cassetes] na mesa de cabeceira e foi a partir daí que o dicanza ficou comigo na cama. De repente tinha inspiração, punha a gravar do tipo: “o refrão tem que ser assim”, executava o ritmo [imita sons de percussão], gravava e mostrava ao grande Betinho [aponta para um dos músicos] que está a dormir… [risos] Já vai haver motivos para gozar mais logo. [risos]
O último álbum que lançou [Recados de Fora] é de 2016. Há um novo disco a caminho?
Sim. Já está a ser gravado. Deve sair em setembro deste ano ou antes disso, mas vai sair com certeza.
Entrevista realizada por João Pardal e originalmente publicada em Espalha Factos.