Entrevista. Brigitte Giraud: “Nunca olhei tanto para este homem como agora que ele se foi embora”
O romance “Viver depressa”, de Brigitte Giraud, é uma “árvore genealógica” do desastre que matou o marido da escritora, mas é sobretudo uma reflexão sobre o “destino”, através da análise da cadeia de acontecimentos improváveis que, todos juntos, levaram àquele desfecho.
Vencedor do Prémio Goncourt 2022, o mais prestigiado das letras francesas, “Vivre Vite”, no título original, foi escrito por Brigitte Giraud 20 anos após a morte do marido num acidente de mota, o tempo necessário para o conseguir escrever e “estar à distância certa“, ou seja, ser um livro “apenas literário e nunca emocional”, contou a escritora em entrevista à agência Lusa.
Este romance resulta de “uma investigação” que Brigitte Giraud sentiu que tinha de fazer para saber o que é que na vida da sua família poderia ter levado ao acidente e como é que cada uma das suas escolhas “criou uma cadeia de acontecimentos” que levou àquele desfecho.
“É como uma árvore genealógica do desastre. Tive de escrever este livro porque não existe uma causa aparente para o acidente. E, portanto, nenhum sentido. O cérebro humano não consegue lidar com coisas que não fazem sentido. Escrever ‘Viver depressa’ foi uma forma de dar sentido ao sem sentido, de compreender o incompreensível, de tornar suportável o insuportável”.
O livro está dividido em capítulos que abordam os diversos acontecimentos, aparentemente sem ligação nenhuma com o acidente, mas que conjugados parecem tornar inevitável o evitável, e que começam por “e se”, num exercício mental sobre a possibilidade de mudar os acontecimentos.
“Este livro está escrito com 23 peças de puzzle (23 capítulos). Se apenas uma dessas peças não se encaixar, o acidente não pode acontecer”, afirma.
Há uma mudança de casa, há uma viagem em trabalho, há um telefonema que não foi feito, a escolha de ouvir uma música em detrimento de outra, um favor feito ao irmão, entre muitos outros fatores, que são dissecados, capítulo a capítulo, pela autora.
“E depois, nos dias, semanas e meses que antecederam o acidente, houve sinais estranhos (que eu não queria ver), coincidências bizarras, coincidências preocupantes… Tive de pôr tudo isso em ordem através da minha escrita”, confessa Brigitte Giraud.
A verdade é que nada, anteriormente, “tinha corrido como planeado”, acrescenta, explicando que foi por isso que “quis analisar de perto as diferentes formas de atuação que levaram à espiral fatal”.
“É quase um ‘thriller’ existencial. A primeira disfunção é esta casa que eu queria muito comprar e que não estava à venda. Depois, esta mota [em que o marido morreu, e que nem era dele] que foi proibida no Japão, onde foi fabricada, por ser considerada demasiado perigosa e reservada à exportação para a Europa. E depois aquele telefonema que eu devia ter feito…”.
São todos estes aspetos que fazem de “Viver depressa” uma grande interrogação sobre “o destino, essa palavra que em árabe é Mektoub, que significa ‘Estava escrito’”, sublinha a autora, acrescentando: “Estou a tentar descobrir se estava escrito, ou se o acidente foi fruto do acaso (outra palavra que vem do árabe e significa “jogo de dados”). Um terceiro conceito muito importante é o determinismo”.
Por todos estes motivos, Brigitte Giraud não hesita em dizer que este é um livro “sobre o destino”, mas também sobre a forma como as pessoas vivem as suas vidas.
“É também uma declaração de amor. Nunca olhei tanto para este homem como agora que ele se foi embora. É muito perturbador. Para o escrever, tive de me aproximar muito dele, como nunca tinha feito durante a nossa vida em comum. Este é também um livro sobre arrependimento”.
No entanto, recusa a ideia de uma catarse através da escrita, exercício que considera impotente para mudar a realidade, mas capaz de mudar a perceção dessa realidade.
“Escrever este livro permitiu-me pôr as coisas em ordem, ousar olhar a verdade de frente, todas as verdades, as minhas, as dos meus entes queridos, mas também as do mundo que me rodeia”, explicou Brigitte Giraud, que, apesar de tudo, conseguiu equilibrar a sua análise com doses de humor e ironia.
Na avaliação que fez dos acontecimentos, vários aspetos sociais, económicos e geográficos convergiram para o acontecimento central que pauta a narrativa e são largamente abordados na obra, porque a autora quis mesmo falar sobre assuntos como a “globalização, o liberalismo, os promotores imobiliários, a violência deste mundo em mudança, com a disseminação de tudo o que é digital”.
É, por isso, também “um retrato do final do século XX, um retrato de uma cidade e de uma classe social. É uma interrogação sobre o casal, a família, o trabalho e o lugar dos pais”.
Sobre a cidade, no caso Lyon, sobressai a importância que tem na história, assumindo o lugar quase de uma personagem, uma escolha que foi intencional, na medida em que “o acidente está ligado à forma como nos deslocamos numa cidade”.
“Observei atentamente a organização dos fluxos de tráfego nas diferentes avenidas, como se passa de um bairro rico para um bairro pobre, como se atravessa um rio. Como o clima é um fator importante. É tudo fascinante”, contou a autora.
Esta não foi a primeira vez que Brigitte Giraud abordou a morte do marido. Já o tinha feito no romance “A Présent”, escrito e publicado em 2001, dois anos após o acidente.
Mas esse foi um livro “sobre o choque, a explosão e a dor de estar no olho da tempestade, no meio do caos”, ao passo que “Viver depressa” é uma construção literária “sobre a vida”, a sua e a dos outros, sobre o amor, e é também “o retrato de um homem”.
Como tal, assume-o como “um livro íntimo, mas que ressoa com o coletivo, com o sociológico, o histórico, o geopolítico”.
Imbuída do mesmo espírito que norteou a investigação e a escrita da obra, Brigitte Giraud olha para o Prémio Goncourt e encontra nele também coincidência de circunstâncias.
“Fiquei muito contente por receber o prémio, mas também me perguntei se haveria algum sinal. Porque o número 22 tem um significado especial no livro [o acidente aconteceu a 22 de junho de 1999]. E receber o prémio em 2022 é uma piscadela de olho extra!”.
A escritora de 63 anos, nascida na Argélia e residente em Lyon, autora de dez romances, confessa que desde que publicou este último livro se sente “mais calma” e que o prémio lhe veio “aumentar a serenidade” e dar energia para continuar a escrever, embora não o pretenda fazer durante algum tempo.
“Viver depressa” está publicado em Portugal pela editora Planeta.