Entrevista. Carlos Guimarães Pinto: “A burocracia é o pior tipo de imposto possível”

por Diogo Ferreira Nunes,    10 Outubro, 2025
Entrevista. Carlos Guimarães Pinto: “A burocracia é o pior tipo de imposto possível”
Carlos Guimarães Pinto / Fotografia de Rui André Soares – CCA
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Economista de formação, professor universitário, consultor estratégico em Portugal e no estrangeiro, Carlos Guimarães Pinto é uma das principais figuras do movimento liberal em Portugal. Foi um dos primeiros a tomar a Iniciativa, Liberal, no final de 2017. Nas legislativas de 2019, por um triz não foi eleito deputado e saiu da liderança do partido. Chegou à Assembleia da República em 2022 e por lá continua, sempre pelo círculo do Porto. Escreve a cada duas semanas, comenta todas as quartas na televisão e está bastante presente nas redes sociais e plataformas digitais.

Cofundou e é diretor não executivo do Instituto +Liberdade, entidade que pretende divulgar os valores da democracia e economia liberais. Depois de quatro livros no currículo, Carlos Guimarães Pinto aventurou-se a solo para perto de 300 páginas na obra “Liberalismo: a ideia que mudou o mundo”, que o autor considera como uma “introdução ao liberalismo para quem quer começar a entender ou estruturar o seu próprio pensamento”.

O livro é ponto de partida para uma entrevista de uma hora na Assembleia da República. Regionalização, incentivos económicos, questões fiscais, pesos e contrapesos da democracia são os principais temas que acompanham a conversa.

Qual foi a ideia para lançar o livro nesta altura?

O livro foi lançado no final de maio, mas começou a ser pensado um ano antes. Já era algo que tinha pensado em escrever há algum tempo, porque desde que entrei na política, com o partido Iniciativa Liberal, recebia muitas mensagens de pessoas interessadas em saber mais sobre o liberalismo. Pediam-me recomendações de leitura e, embora eu indicasse dois ou três livros de uma lista de 10 a 15, nenhum era exatamente o que considerava uma introdução ideal ao liberalismo. Eu queria algo que incluísse os principais autores, os princípios e a aplicação destes na realidade. Então, decidi escrever o livro, compilando muito do que já existe e adicionando um toque pessoal. Agora, posso indicar este livro.

“A dificuldade em construir em Portugal faz com que a oferta de habitação não consiga responder a um aumento da procura.”

Podemos considerar o livro uma introdução ao liberalismo? 

Diria que é uma introdução ao liberalismo para quem quer começar a entender ou estruturar o seu próprio pensamento. Escrever o livro ajudou-me a mim mesmo a estruturar o meu pensamento, a definir os princípios primários e derivados. Cheguei a criar um gráfico, que acabei por não incluir por ser demasiado complexo, que mostrava uma espécie de árvore genealógica, ligando os autores clássicos às gerações seguintes e mostrando como se influenciavam mutuamente. O objetivo era perceber como as diferentes correntes do liberalismo, apesar de parecerem distantes, partem de valores muito semelhantes, mas aplicados em circunstâncias diferentes e com pesos distintos. Foi um exercício interessante para mim e, cada vez que lia o livro durante a edição, ia adicionando algo e estruturando melhor o meu pensamento.

Capa do livro / DR

Nessa árvore genealógica, em que corrente colocaríamos o Carlos Guimarães Pinto? O livro identifica quatro: clássica, social, conservadora e libertarianismo.

No liberalismo clássico, adaptado às circunstâncias atuais. Como refiro no livro, nenhum dos autores clássicos estava absolutamente correto em tudo, e é provável que hoje tivessem ideias diferentes perante as circunstâncias atuais. Ainda assim, o liberalismo clássico, em certos temas, pode derivar para um lado ou para o outro, dependendo das circunstâncias e da importância que cada um dá a diferentes aspetos da vida.

“‘Liberalismo: a ideia que mudou o mundo’ é uma introdução ao liberalismo para quem quer começar a entender ou estruturar o seu próprio pensamento. Escrever o livro ajudou-me a mim mesmo a estruturar o meu pensamento, a definir os princípios primários e derivados.”

No livro afirma: “O comércio livre permite que as empresas e as pessoas de diferentes países se especializem na produção de bens e serviços onde têm vantagens comparativas, trocando-os por outros bens e serviços produzidos mais eficientemente por pessoas e empresas noutros países. Esta especialização aumenta a produtividade global e eleva os padrões de vida.” Qual é a especialidade de Portugal?

Não cabe aos políticos definir isso. A intervenção das políticas públicas muitas vezes distorce aquilo em que o país poderia ser bom. Por exemplo, Portugal, por boas e más circunstâncias, tem uma oportunidade tremenda de atrair muito investimento na área da tecnologia, em parte devido à deslocalização do trabalho resultante da pandemia. Alguém que pode trabalhar de qualquer parte do mundo, se tudo o resto for igual (infraestruturas, regime fiscal), talvez prefira estar no Algarve em vez da Noruega ou da Suécia, devido ao nosso clima e segurança. No entanto, a realidade introduz distorções, como a burocracia ou o regime fiscal, que não nos permitem aproveitar todo o potencial de um país ou de uma região. A dificuldade em construir em Portugal, por exemplo, faz com que a oferta de habitação não consiga responder a um aumento da procura.

Investimentos estrangeiros, como o da Autoeuropa, vêm sempre acompanhados de incentivos fiscais. Concorda com isso? É um recurso necessário para captar estes investimentos?

É uma das maiores ironias. Muitas vezes, os mesmos governantes que garantem que temos um regime fiscal atrativo, quando querem atrair um investimento específico, oferecem um regime fiscal especial. Se tivéssemos um regime fiscal atrativo, não seria preciso um “favor político” para aquela empresa vir para cá. A Autoeuropa deveria ter vindo sem benefícios especiais: os benefícios especiais que recebeu deviam ser o regime geral para que viessem mais “Autoeuropas”. Na Irlanda, duvido de que o primeiro-ministro ande a inaugurar cada grande investimento: eles vêm naturalmente, atraídos pelo regime geral, suficientemente atrativo.

“Em Portugal, quase toda a gente ganha relativamente mal, por isso, é muito difícil para um político, que ganha acima da média, vir afirmar que ganha pouco. Não acho que todos os cargos políticos ganhem pouco.”

A Irlanda teve uma polémica com a União Europeia precisamente por questões fiscais.

Sim, criou-se um regime fiscal particularmente atrativo para as empresas tecnológicas, que resultava num imposto efetivo baixo. Mas, apesar de ter uma taxa de IRC mais baixa, a Irlanda tem uma coleta de IRC muito superior à nossa, porque consegue atrair muito mais empresas.

Ou seja, devemos olhar para a Irlanda como um exemplo?

É um dos exemplos que devemos seguir. Nos anos 80, Portugal e Irlanda estavam mais ou menos ao mesmo nível económico, tal como Espanha e Grécia. Os quatro países eram os mais pobres da então Comunidade Económica Europeia. Hoje, a Irlanda é um dos países que mais atraem talento e investimento, e os salários são elevados, tanto que muitos portugueses vão para lá. Se queremos salários altos e mais oportunidades, atrair investimento é o caminho.

Carlos Guimarães Pinto / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Considera que “é muito perigoso falar em uniformização fiscal em grandes espaços económicos com realidades bastante distintas, como é o caso da UE”. Depreende-se que não seja muito a favor da ideia de uma taxa de IRC mínima [de 15%] para multinacionais na UE.

É uma medida que retira oportunidades aos países mais pobres. Os países mais ricos da Europa já oferecem melhores condições às empresas, seja pela sua geografia, qualificações ou infraestruturas. As empresas não se importam de pagar relativamente mais para estarem nesses mercados. Se os países mais pobres forem obrigados a cobrar o mesmo imposto, tendo menos para oferecer em troca, perderão muito investimento. Um empresário que possa investir na Alemanha ou na Albânia, pela mesma carga fiscal, escolherá a Alemanha. Para competir, a Albânia tem de ter um “preço” mais baixo até conseguir oferecer as mesmas condições.

“Numa fase inicial, de transição, a descentralização pode criar uma camada adicional de burocracia, porque o Estado central tem dificuldade em abdicar do poder e pode manter competências que se tornam redundantes. Tal reduz-se com o tempo.”

O grande recurso que Portugal tem ao seu dispor para captar investimento é mesmo baixar a carga fiscal?

Não é o único. Temos graves problemas com o licenciamento e a burocracia, que são um custo para quem queira investir. A burocracia é o pior tipo de imposto possível. Enquanto os impostos diretos se refletem, ou espera-se que se reflitam, em serviços públicos, os custos de uma burocracia inútil não trazem qualquer benefício em serviço público. No caso, refiro-me a burocracias desnecessárias ou cujo custo de cumprimento supera a sua necessidade.

A descentralização e a regionalização, que são defendidas no livro, poderiam ajudar a desburocratizar a economia?

Sim, mas há riscos. Reconheço que, numa fase inicial, de transição, a descentralização pode criar uma camada adicional de burocracia, porque o Estado central tem dificuldade em abdicar do poder e pode manter competências que se tornam redundantes. Tal reduz-se com o tempo.

Quanto tempo pode durar a transição?

Vai depender das circunstâncias. Um dos momentos de grande honestidade da antiga ministra [do PS] Ana Abrunhosa aconteceu numa audição parlamentar sobre descentralização das autarquias. Perguntei-lhe pela contratação de novas pessoas para assumirem competências nas autarquias e quantos cargos foram extintos no Estado central na sequência da passagem dessas responsabilidades. A antiga ministra foi honesta: “não foi extinto nenhum cargo”. Ou seja, havia competências e cargos duplicados. Aceito isso como um custo, que é depois o primeiro passo para defendermos os benefícios, que são superiores. Aproximar o poder das pessoas aumenta a eficiência e permite escrutinar mais de perto o seu exercício. Pessoas de escolas que passaram a ser geridas pelas autarquias disseram-me que foi uma “bênção”, porque de repente podiam ir bater à porta do presidente da câmara, que estava duas portas ao lado, para resolver um problema, em vez de telefonar para Lisboa.

Mas depois há o problema das estradas nacionais, em que as câmaras querem assumir a gestão, mas o Estado não transfere o orçamento correspondente.

Exatamente, esse é o problema. E a frustração é que, quando as pessoas veem uma estrada com buracos, culpam o presidente da câmara, mesmo que a responsabilidade não seja dele mas sim da Infraestruturas de Portugal. Percebo a frustração dos autarcas, que querem resolver os problemas dos seus munícipes, mas não têm competência para tal. Por isso é justificável a transferência das competências e são necessários quadros à altura.

É preciso encontrar um equilíbrio entre proximidade e dimensão suficiente para ser eficaz. A Iniciativa Liberal foi contra a restituição de algumas freguesias. Como se encontra esse equilíbrio?

Defendo que as populações locais devem ter autonomia para decidir, desde que não afete terceiros. O que acontece muitas vezes com a desagregação de freguesias é o custo recair sobre todos os contribuintes: uma freguesia com um orçamento de 200 mil euros divide-se em duas, e cada uma passa a ter 130 mil, em vez de 100 mil. Além disso, as freguesias perdem capacidade crítica: antes da agregação, tinham orçamento para uma carrinha para idosos; ao desagregarem-se, deixarão de o ter.

Reconhece que algumas fusões de freguesias podem ter descaracterizado as comunidades?

Sim, aceito que algumas fusões possam não ter feito sentido. O país é muito diverso: por exemplo, houve uma união de freguesias em Matosinhos que juntou duas “cidades”, São Mamede de Infesta e Senhora da Hora. A minha posição não é que todas as agregações foram boas e todas as desagregações são más. O que critico são as desagregações feitas por motivos de “micropoderes” locais.

Sobre poderes locais, defende que os organismos do Estado deveriam estar espalhados pelo país em vez de concentrados em Lisboa. Inspirou-se no governo de Pedro Santana Lopes?

Nem é tanto a questão dos ministérios mas sim dos organismos do Estado. Por exemplo, acho muito bem que a Agência Espacial Portuguesa esteja em Santa Maria, nos Açores. Mas não faz sentido o Instituto da Vinha e do Vinho estar em Lisboa. Há muitos organismos que não devem estar centralizados na capital. Os reguladores sairiam beneficiados por estarem longe da capital. O Banco de Portugal ou a Anacom [regulador das comunicações] poderiam estar facilmente noutra cidade: isso ajudaria a garantir a sua independência, pois o círculo social da capital é pequeno e aumenta a probabilidade de proximidade entre reguladores e regulados.

Carlos Guimarães Pinto / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Defende que “um país onde pessoas com grandes responsabilidades, como juízes ou governantes, ganham pouco, é mais propenso a ter casos de corrupção”. Como se desconstrói a narrativa que os políticos ganham muito?

Em Portugal, quase toda a gente ganha relativamente mal, por isso, é muito difícil para um político, que ganha acima da média, vir afirmar que ganha pouco. Não acho que todos os cargos políticos ganhem pouco.

Sente-se confortável com o seu salário?

É público que ganhava mais antes de vir para o Parlamento e ainda mais quando estava fora de Portugal. Quem acho que ganha relativamente pouco são os governantes (ministros e secretários de Estado), tendo em conta o nível de responsabilidade, os riscos, os impedimentos e o escrutínio a que estão sujeitos. Na Assembleia da República, temos uma responsabilidade mais coletiva e as decisões decorrem de uma maioria, ao contrário do que acontece com ministros e secretários de Estado. Para atrair os melhores quadros técnicos do país para a governação, é preciso pagar-lhes adequadamente. O ideal era que toda a gente no país pudesse ganhar melhor. Falo disto à vontade, pois nunca fui governante nem o meu partido teve governantes.

“Deve ser uma causa de todos garantir que uma pessoa que nasce pobre, mas tem esforço e sorte, consiga subir na vida, algo que o nosso regime fiscal atual dificulta.”

Escreve que “a distribuição de benefícios sem fiscalização pode desincentivar o trabalho ou incentivar a economia paralela, uma vez que esses benefícios acabam se a pessoa trabalhar no mercado formal”. Pode explicar esta frase?

O que digo é factual. Uma pessoa que recebe 500 euros de um subsídio e, se for trabalhar, passa a ganhar 800 euros mas perde o subsídio, na prática, há um imposto escondido e está a trabalhar por 300 euros. Podemos reconhecer este custo e, mesmo assim, defender a existência do benefício, como eu faço com o Rendimento Social de Inserção (RSI). Reconheço que o RSI cria desincentivos ao trabalho formal e que há abusos, mas aceito esses custos porque os benefícios de dar dignidade a quem não tem outros rendimentos sobrepõem-se. O mesmo se aplica ao subsídio de desemprego: ele pode criar o incentivo para que as pessoas o estiquem ao máximo, mas os seus benefícios em evitar que as pessoas caiam na indigência superam esses custos. A solução não é acabar com os apoios, mas sim desenhá-los de forma a minimizar esses efeitos perversos, como limitá-los no tempo e fiscalizar.

No livro, refere que “garantir o acesso a um patamar mínimo de qualidade de vida a todos não é incompatível com uma sociedade liberal”. Fala também do Rendimento Básico Incondicional (RBI), mas não ficou claro se o defende ou não.

O RBI seria extraordinário se a economia pagasse o suficiente para viver sem trabalhar. Na prática, isso é impossível. No entanto, as sociedades europeias já têm uma espécie de RBI, não em numerário, mas em serviços: todos temos acesso a educação e saúde gratuitas, que têm um valor imenso, são incondicionais e garantem um patamar mínimo de sobrevivência.

“Posso concordar com Milei na necessidade de cortar na burocracia e na despesa do Estado na Argentina, mas isso não significa que tenha de concordar com todas as outras posições que ele toma. As tarifas são uma ideia perversa: prejudicam os consumidores dos Estados Unidos no imediato, o comércio internacional a longo prazo e, no limite, podem favorecer o aparecimento de conflitos ao diminuir a interligação entre os países.”

Os serviços a que se refere são financiados por impostos, um tema sempre associado à Iniciativa Liberal. Sem impostos, como se conseguiria manter o SNS e as escolas?

As coisas não são binárias. Podemos defender a existência de serviços públicos de qualidade e, ao mesmo tempo, achar que a nossa carga fiscal é demasiado alta ou que o seu mix é desajustado das necessidades do país. Acho que o nosso sistema fiscal tem um foco excessivo nos rendimentos do trabalho e é inimigo da mobilidade social. Quando se atinge um nível de rendimento relativamente baixo, abaixo dos 2000 euros, metade de qualquer aumento que tenha vai para o Estado. Isto impede a mobilidade social. Para quem não herda, a única forma de subir na vida é através do trabalho, e o nosso sistema fiscal limita essa possibilidade.

Podemos acabar numa situação de “pais pobres, filhos pobres”?

Sim, mesmo que os filhos tenham capacidade de trabalhar mais e possam ter rendimentos mais altos.

Como se mantém o Estado e os seus serviços a funcionarem?

Em 2019, tínhamos os mesmos serviços públicos, mas a despesa do Estado era mais de 30 mil milhões de euros inferior à de hoje. A nossa proposta de reforma do IRS, considerada revolucionária, teria um custo de cerca de 3 mil milhões de euros, ou seja, excluindo efeitos indiretos, menos de um décimo do aumento da despesa pública desde 2019 – considerando o ajuste da inflação. Mesmo não cortando na despesa — e eu acredito que há onde cortar —, poderíamos abdicar de uma parte do aumento da receita fiscal dos últimos anos para ter um sistema que promovesse a mobilidade social. Deve ser uma causa de todos garantir que uma pessoa que nasce pobre, mas tem esforço e sorte, consiga subir na vida, algo que o nosso regime fiscal atual dificulta. Na Irlanda, a carga fiscal é mais baixa do que em Portugal mas a receita fiscal por habitante é maior, graças às taxas de imposto mais baixas, que atraem investimento. 

As atuais taxas de IRS criam efeitos perversos: não faltam empresas a oferecerem incentivos fiscalmente mais atrativos do que se forem pagos em dinheiro. Tenho a certeza de que há pessoas que, se lhes dessem 80% do dinheiro do automóvel, prefeririam receber o dinheiro para, por exemplo, usar transportes públicos. Mas como é fiscalmente mais atrativo para a empresa valorizar o trabalho com ajudas de custo e outros benefícios, isso cria burocracias e distorções terríveis. 

“É público que ganhava mais antes de vir para o Parlamento e ainda mais quando estava fora de Portugal. Quem acho que ganha relativamente pouco são os governantes (ministros e secretários de Estado), tendo em conta o nível de responsabilidade, os riscos, os impedimentos e o escrutínio a que estão sujeitos.”

Sugere a introdução de bónus para o pessoal médico por atingir métricas de saúde e produtividade. Como se garante que não há efeitos perversos?

Esse risco existe sempre. Esse modelo já existe em Portugal nas Unidades de Saúde Familiar (USF) tipo B, onde os médicos, sobretudo de família, têm incentivos ligados à sua carteira de utentes, o que leva a uma gestão mais eficiente. Temos de basear as políticas na natureza humana. As pessoas são guiadas por incentivos: os médicos querem ter férias com a família, outros querem ganhar mais dinheiro e ter uma vida mais confortável. Temos de ter os incentivos no lugar. Contudo, a saúde é um setor particularmente difícil de gerir devido à assimetria de informação: como paciente, eu não tenho conhecimento para desafiar a decisão de um médico, seja ele prescrever um comprimido ou cinco exames caros. Esta assimetria, combinada com incentivos perversos, pode levar a uma procura desnecessária por tratamentos, o que exige uma regulação cuidada.

Voltando ao comércio livre: critica as tarifas e barreiras comerciais, dizendo que o seu custo recai sobre os consumidores. Uma provocação: o que acha de o presidente da Argentina, Javier Milei, apoiar o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, defensor de tarifas?

Duvido que o presidente Milei, dadas as suas convicções, apoie a questão das tarifas. 

Mas outras medidas apoia…

O liberalismo ensina-nos que o conhecimento está disperso e ninguém está certo em tudo, por isso não gosto de ter “ídolos”. Posso concordar com Milei na necessidade de cortar na burocracia e na despesa do Estado na Argentina, mas isso não significa que tenha de concordar com todas as outras posições que ele toma. As tarifas são uma ideia perversa: prejudicam os consumidores dos Estados Unidos no imediato, o comércio internacional a longo prazo e, no limite, podem favorecer o aparecimento de conflitos ao diminuir a interligação entre os países.

“Um sistema político deve ser desenhado para funcionar não apenas com bons líderes, mas principalmente para garantir estabilidade mesmo quando os líderes não têm convicções mais liberais politicamente.”

Refere os Estados Unidos como um bom exemplo de “instituições inclusivas” que permitiram o seu crescimento ao ponto de se tornarem numa potência mundial. Esse exemplo ainda se aplica?

As instituições têm-se mantido relativamente firmes. O sistema de pesos e contrapesos tem funcionado e travado algumas das derivas mais autoritárias. Num país com instituições mais fracas, isso não teria sido assim. Isso reforça a importância da separação de poderes. Um sistema político deve ser desenhado para funcionar não apenas com bons líderes, mas principalmente para garantir estabilidade mesmo quando os líderes não têm convicções mais liberais politicamente. E os Estados Unidos, para já, têm passado nesse teste. 

Imaginem que, amanhã, um órgão de poder é exercido por alguém de quem não gostam de todo. Estariam confortáveis em que essa pessoa tivesse esse poder? Se a resposta é não, então não querem que esse órgão de poder seja tão influente. Os pesos e contrapesos podem parecer atrasar as decisões mas são importantíssimos para garantir que ninguém um dia terá poder absoluto. O liberalismo foi a ideia que mudou o mundo ao dispersar esses poderes e ao permitir melhores decisões.

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