Entrevista. Catarina Furtado: “Estamos a caminhar para uma sociedade em que as pessoas não têm tempo umas para as outras”
Nascida há 51 anos, Catarina Furtado tem feito uma carreira como bailarina, atriz e apresentadora, tornando-se numa das personalidades mais emblemáticas da televisão portuguesa. Mas o seu contributo para a sociedade é bastante mais alargado. Por um lado, tem usado essa presença televisiva para fazer programas na RTP que se centram nos direitos humanos, que contam histórias humanizadoras que possam contribuir para mudar mentalidades e consciencializar o público. Por outro, usa a sua visibilidade para defender importantes causas sociais, contribuindo diretamente para elas.
Há mais de duas décadas que é embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) e, desde 2012, que é a diretora da associação Corações com Coroa, que ajuda mulheres em dificuldades de diversas formas. Catarina Furtado sente-se uma “investidora de pessoas”, uma mulher que tem naturalmente o “impulso” para concretizar ações concretas que possam apoiar os outros.
Preocupada com os desafios que os mais vulneráveis enfrentam hoje, numa situação económica particularmente difícil, Catarina Furtado fala-nos do trabalho social que tem desenvolvido, dos desafios do momento, do papel das organizações não governamentais (ONG) e de como é que o seu contexto familiar foi fulcral para formar a sua visão sobre a sociedade e tornar-se desde cedo uma agente social. Leia a entrevista realizada na associação Corações com Coroa.
A associação Corações com Coroa foi fundada numa altura de grande crise económica, em 2012. Hoje, o estado não atravessa um período de crise financeira, mas é uma altura de muita dificuldade para muitas pessoas, com a inflação, os preços da habitação e outros fatores. Daí a importância de que este trabalho de apoio a mulheres vulneráveis seja constante, por mais que as condições da sociedade se alterem?
Sim. Há muita gente que diz que o ideal de uma sociedade seria que não fossem necessárias ONG ou associações sem fins lucrativos, porque o Estado se comprometia a concretizar todos os direitos dos cidadãos. Apesar de ser muito otimista, tenho muitas dúvidas. Mesmo que fosse um Estado rico e responsável, que colocasse as pessoas e os seus direitos à frente de todas as prioridades, mesmo assim teria muitas dúvidas. Antigamente também subscrevia esta frase, mas estas ONG acabam por se especializar em determinadas necessidades das pessoas que um Estado pode obviamente tentar resolver, mas não tem a proximidade: estas associações ouvem mais as pessoas, e com tempo.
Estamos a caminhar para uma sociedade em que as pessoas não têm tempo umas para as outras. O Serviço Nacional de Saúde está como está, a Educação está como está, e a base disto tudo é quase a falta de tempo, o tempo que as pessoas podem já não ter para se ouvirem umas às outras e as suas necessidades. As ONG primam por isso: por uma enorme falta de recursos, de uma maneira geral, mas sobretudo por uma vontade enorme de fazer a diferença. Hoje em dia, já tenho autoridade para dizer isto, porque já são muitos anos a colaborar com as ONG — 23 com as Nações Unidas, 10 na Corações com Coroa, e a entrevistar muitas ONG nos “Príncipes do Nada” há 17. A maior parte das pessoas que trabalha nestes sítios são pessoas que querem mesmo saber, que se preocupam realmente, que querem mesmo levar até às últimas instâncias o problema daquela pessoa e vê-lo resolvido.
Isto, para responder que somos mesmo necessários, que temos de ser mais valorizados, inclusivamente pelo próprio Estado, que pode recorrer a nós de outra forma para que possamos pôr as nossas competências ao serviço de coisas que eles não conseguem fazer e que por isso seríamos uns braços complementares. É preciso que as pessoas em geral percebam — os cidadãos que podem ajudar e apoiar — a importância das ONG. Como dizias, não se compara com 2012, mas cada vez mais estamos numa situação com problemas muito graves.
Sim, e não se compara sobretudo ao nível estatal, da macroeconomia.
Sim, e há mais pessoas que imigraram para cá, e essa questão para mim é muito desafiante. As pessoas têm todo o direito a vir. Devemos, enquanto país com princípios humanistas, acolher, a questão é que não estamos a acolher bem: isso pode levantar discriminações, xenofobias e o isolamento das próprias pessoas que aqui chegam. O não estarmos a acolher como deve ser provoca situações ainda mais graves, porque as pessoas, depois, são vítimas de xenofobia e levam com o discurso de “vocês vêm para cá roubar os nossos trabalhos quando a situação está difícil”.
“Quem abusa das fragilidades dos outros, estes abutres que se aproveitam das fragilidades e dos buracos negros quer da sociedade, quer das fragilidades das pessoas, são para mim tudo menos corajosos. São verdadeiros cobardes que precisam da fragilidade dos outros para se colocarem em bicos de pés e terem poder.”
Daí a importância, mais uma vez, do trabalho feito pelas ONG e por associações da sociedade civil.
Exatamente. Garanto, com 10 anos de experiência na Corações com Coroa — que obviamente não é uma associação só para imigrantes, mas apoiamos muitas pessoas que vieram para cá — que as pessoas querem vir trabalhar, querem contribuir para os nossos impostos. Apoiamos, por exemplo, com consultas de psicologia, porque a saúde mental privada é caríssima, e a saúde mental no Serviço Nacional de Saúde não é suficiente: é dificílimo marcar um psicólogo e, muitas das vezes, as horas não são compatíveis com o horário laboral. Temos, aqui, essa possibilidade de articular: as psicólogas com que trabalhamos podem adaptar-se às circunstâncias das mulheres. É utópico, no entanto, pensarmos que vamos tomar conta da saúde mental, numa altura em que temos falado tanto dela, quando depois não temos psicólogos empregues. Temos muitos formados, atenção, há muitos psicólogos que estão no desemprego e, aqui, fazemos esse atendimento gratuito e também fazemos serviço social. As nossas assistentes sociais fazem exatamente esse trabalho: perceber quais são os problemas: cada vez mais fome, muitos problemas habitacionais, entre muitos outros.
Nota-se um grande aumento em relação à realidade de há cinco anos, por exemplo?
Nota-se mesmo: além dos problemas normais, os litígios, divórcios, relações complexas em que a maior parte das mulheres fica sem o apoio do homem. Isso notou-se muito na pandemia, um aumento enorme das famílias monoparentais de mulheres porque os maridos, os companheiros, não estiveram para assumir as suas responsabilidades, fica, então, uma mãe com os filhos. Como, muitas vezes, tiveram de fazer um esforço maior, também perderam empregos para poderem ficar com os filhos. Quando falamos em desigualdade de género, fala-se disto tudo. É tão ignorante alguém dizer que não existe desigualdade de género em Portugal. É fruto de falta de leitura e observação da realidade. Há, também, outra questão que está a aumentar cada vez mais: a discriminação no emprego das pessoas que viveram na Corações com Coroa. Também aí há discriminação.
Não têm tanta facilidade em aceder a uma vaga de emprego?
Não. Tal como não têm tanta resposta na habitação. Por exemplo, as pessoas negras têm menos possibilidades de alugar uma casa, e isto é gritante, temos aqui muitos casos desses. Depois, temos os casos de violência doméstica, e levamos as pessoas a tribunal e fazemos aconselhamento jurídico. Também temos casos de pessoas que vieram com problemas oncológicos e que estão completamente sozinhas — fazemos a ponte com o IPO. Mas os problemas estão a aumentar e as pessoas querem contribuir, querem trabalhar. Se tiver que dizer uma taxa de sucesso — e fala-se muito hoje nas carreiras de sucesso e pessoas com sucesso, já não há pachorra para isso — é bastante alta e fico muito grata pelo trabalho da equipa. E é algo que se aprende. Quando tentamos apoiar alguém e essa pessoa não quer os nossos conselhos, a grande aprendizagem é: aquela pessoa tem livre arbítrio. Isso é uma aprendizagem enorme para nós crescermos, para sabermos lidar com humildade. Porque, se tu não queres, como é que te posso “forçar”? Achando eu que isto poderia ser melhor e a tua vida poderia dar uma volta. Se tu não queres, a liberdade de escolha que tens também é digna e temos de o reconhecer. Isso é muito interessante, porque nos leva a investir mais tempo com as pessoas. Quem está muito dorido, muito ferido do ponto de vista emocional ou social, quem levou muita pancada, quem tem muitos problemas financeiros, não vai confiar logo à partida.
É um processo que leva o seu tempo.
Claro, a pessoa até pode, por vezes, ficar mais agressiva ou de pé atrás. Isto leva tempo. Acho que das coisas que mais me custam hoje em dia é a nossa falta de tempo. Para reerguermos uma pessoa, ou a vida de uma pessoa, leva tempo. Demora a haver um clique com a assistente social ou a psicóloga, tudo isto leva tempo. E a nossa obrigação enquanto associação sem fins lucrativos é que temos de dar um retorno de impacto aos nossos patrocinadores. Tenho que dizer números.
“Muitas das vezes uma figura pública — ou a arte em geral — pode ser absolutamente transformadora das realidades e mentalidades.“
Como é que se mede?
Tivemos de fazer um estudo para apresentar no décimo aniversário e dissemos que, em 10 anos, reerguemos mais de 500 vidas. É um número impactante, sim. Mas são 10 anos. Quem me dera poder dizer que foram mil vidas. Mas cada mulher são muitíssimas consultas.
Qual é a expectativa dos patrocinadores em relação a esses números?
Há de tudo. Sou uma privilegiada e é mais fácil, para mim, encontrar um parceiro que me dê um donativo do que as outras ONG que têm de recorrer a candidaturas. Ainda não estamos nessa fase, porque o dinheiro falta sempre, e ter de sensibilizar as pessoas é uma necessidade permanente, porque as pessoas se esquecem. Como isso não está no nosso ADN desde sempre, esta ideia de que temos mesmo de contribuir para a sociedade, porque a vida também está muito difícil para muita gente — embora não esteja para as grandes empresas, e eles às vezes esquecem-se e é preciso relembrá-los, e eu estou cá para isso. Mas isto para dizer que os patrocinadores procuram alguma publicidade nas nossas redes sociais, e os nossos financiadores fazem algo que em Portugal tem de ser cada vez mais falado que é a responsabilidade social e corporativa. As empresas estão um bocadinho mais atentas, até por causa dos objetivos de desenvolvimento sustentável que obrigam a que haja uma trilogia entre o Estado, a sociedade civil e a responsabilidade social nas empresas, mas muitas vezes essas áreas fazem uns eventos, pintam umas paredes, mas não é suficiente. Enfim, já temos 36 bolseiras formadas no ensino superior com apoio de financiadores que não se centra só nas propinas, é um apoio biopsicossocial porque, como sabemos, a falta de dinheiro, muitas vezes, inclui um pai doente, uma mãe desempregada ou um irmão deficiente, e a pobreza gera pobreza.
É um dominó.
Portanto, se os apoiarmos com um psicólogo, fazendo também o investimento para a universidade, essas histórias são lindas. Temos feito entrevistas a ex-bolseiras e é comovente vê-las falar. Uma é farmacêutica mas quer muito ir para esta área da responsabilidade social. Outra é a Jéssica Silva, que ainda não entrevistei.
A mais célebre das vossas bolseiras, a futebolista.
Sim! Estou sempre a dizer-lhe que é uma injustiça, porque as outras têm um super sucesso nas suas carreiras e só ela é que… [risos]. Ela diz: vou falar por elas, vou falar por elas! Promovemos encontros para elas, de vez em quando, se verem umas às outras e se motivarem. E ver esse investimento de que falava é mesmo bonito e os financiadores podem ajudar estas pessoas. Aos poucos vamos crescendo, a nossa saúde financeira está estável, e nunca damos passos maiores do que as pernas: não nos podemos esquecer de que é uma empresa social. O que significa que o lucro é ver as pessoas irem embora e dizerem: “Adeus, já não precisamos de vocês”. Isso é o lucro.
É difícil explicar isso ao mercado?
Às vezes é, mas não me posso queixar. Sou ambiciosa q.b. [quanto baste], mas se há 10 anos me perguntassem se eu imaginaria que agora a Corações com Coroa estaria assim, diria que está a correr mesmo muito bem. Mas é com muito esforço da equipa. Neste momento, já dou contratos de trabalho sérios e nada explorados, porque é outra ideia feita em torno das associações, que é serem feitas por voluntários. Não, não tem que ser assim.
Podem ser sem fins lucrativos, mas pagar salários. São coisas diferentes. Uma coisa é eu dizer que vamos ter um evento e teremos algumas pessoas a ajudar, isso são os meus amigos que vêm cá. Agora, o dia-a-dia é pago. Portanto, neste momento, tenho três assistentes sociais, duas psicólogas, uma pessoa de conteúdos e uma diretora-geral, mais quatro no café da associação, mais os atores que faço questão de pagar para irem às escolas, como é lógico, mais as técnicas alocadas ao projeto. Portanto, é uma empresa a pagar muitos impostos, mas só assim é que funciona, porque também não acredito em associações de voluntariado só por si. Não é possível.
“Não digo que não tenha ego, que não goste de atingir os meus objetivos, que não fique orgulhosa quando recebo um prémio, e essas coisas todas, mas o que sinto é que as pessoas estão muito centradas no seu umbigo.“
Porque não têm o mesmo impacto e a consistência desejada?
Claro que não, não tens os mesmos resultados. Não há tanto compromisso. Mesmo aqui, quando há meses muito difíceis, de muito trabalho, se vem um donativo maior há uma parte que eu dou à equipa, porque fazem das tripas coração e é assim que deve ser. Não posso correr o risco de ter uma associação implementada no terreno que serve para ajudar as pessoas e, depois, as minhas pessoas não estarem bem. É incoerente, não é? É muito fácil falar, fazer é que é difícil. Precisam de ter um ordenado digno, as suas regalias, os seus direitos. Também têm filhos, divórcios, problemas, contas para pagar, o supermercado também aumentou para elas. Portanto, é tudo igual.
Há pouco referia uma certa falta de empatia, que é algo que tem sido cada vez mais falado, de as pessoas não estarem naturalmente direcionadas para apoiar os outros. Isso é algo que tem de vir da educação de casa desde muito cedo?
Sim! Há duas semanas, fizemos aqui umas tertúlias sobre voluntariado, para desconstruir algumas ideias. Porque as pessoas não têm a mínima noção do que é que voluntariado quer dizer, o que é que pressupõe. Quando temos dinheiro, por vezes damos cursos gratuitos de voluntariado, mas percebeu-se nessa tertúlia que fizemos aqui com algumas pessoas — entre elas o [psicólogo e artista] Raúl Manarte e a diretora da Pista Mágica, a única escola de voluntariado que existe em Portugal, que forma pessoas para serem voluntárias profissionais — e uma das coisas de que falámos é que há países em que a empatia já se ensina como disciplina nas escolas. Nós nem a Cidadania ainda estamos a dar à séria. Nem estamos a dar a Educação Sexual Compreensiva. E a Cidadania é uma espécie de salada de frutas mal preparada que é extremamente volátil consoante a pessoa que dá a matéria, dependendo das suas próprias convicções, então não há uma transversalidade nos conteúdos.
Está mais do que provado que a empatia tem que se ensinar, desde sempre. Sei que é um lugar comum, mas o [Nelson] Mandela tinha uma frase muito interessante: ‘Ninguém nasce a odiar ninguém. E se ele aprende a odiar, também pode aprender a amar’. Tenho mesmo essa experiência, com estes anos todos a fazer este trabalho. O meu voluntariado, além da Corações com Coroa, é ir às escolas nas minhas poucas horas de tempo livre, quando vou conversar sobre direitos humanos. Noto completamente quando os miúdos estão lá a ouvir, e não é por ser eu, é porque há tempo para falar, para eles falarem, para fazerem questões. A seguir tenho mensagens dos professores ou dos próprios miúdos a dizer que houve ali algo que lhes despertou qualquer coisa e depois contam-me.
Portanto, há formas de o fazer e o nosso currículo escolar está completamente desajustado da realidade. Todos achávamos seca ir à escola, é um bocadinho verdade de uma maneira geral. Mas agora deve ser mais difícil ainda ir à escola, porque os currículos estão desajustados e a forma como estão a ensinar — os professores não têm culpa porque estão a ser maltratados — mas isto para dizer que fiquei muito desiludida na pandemia, porque achei que as pessoas iam todas sair super queridas umas para as outras. Sou otimista, é o que me faz andar cá. Mas enquanto sociedade temos de nos preocupar mesmo em promover a empatia. Há uma pessoa que faz isso muito bem que é o Dino D’Santiago. A forma como ele o faz intuitivamente…
Ele que também é um grande otimista, no geral.
E que eu adoro de paixão. É como eu, um otimista, um ativista e um empreendedor. Ao mesmo tempo, o que ele faz é fruto de uma convicção enorme. É o que eu também tenho. Claro que acabo por ter alguns resultados aqui que dão mais gasóleo à minha convicção, mas mesmo nos “Príncipes do Nada”, são sempre muitas mais as pessoas bem formadas do que as malformadas, mas nunca ouvimos falar delas. Temos um mundo tão errado em tanta coisa que pensamos que é porque existem muitas mais pessoas más, mas não é verdade, elas minam é muito as boas pessoas: tiram-lhes energia, recorrem à mentira, manipulam e, depois, conseguem resultados. Não podemos não olhar para o que se está a passar com a extrema-direita em Portugal, mas tenho pena das más pessoas, porque é muito mais bonito andar cá a gostar de gostar, de apoiar, de construir. Sou super feliz, nesse aspeto. Os nossos direitos nunca estão garantidos, sobretudo os das mulheres. Sempre que vêm ventos populistas, os direitos das raparigas ressentem-se.
Até porque normalmente quem governa são homens.
Exatamente. O acesso aos poderes de decisão é muito menor para as mulheres. Há um medo enraizado nos homens, da possibilidade de as mulheres decidirem mais, e isso está-se a ver com os talibãs no Afeganistão. Em Portugal também. Quem é que fica com os filhos?
Quando é preciso abdicar de certos direitos ou regalias, é sempre a mulher, não é?
Sempre, e muito mais coisas.
“Não podemos não olhar para o que se está a passar com a extrema-direita em Portugal, mas tenho pena das más pessoas, porque é muito mais bonito andar cá a gostar de gostar, de apoiar, de construir.“
No seu caso, as profissões dos seus pais foram determinantes para o desenvolvimento da sua consciência social? Por ter um pai jornalista, uma mãe professora, que ainda por cima dava aulas no ensino especial.
Quando as pessoas me perguntam, “porque é que é tão importante para ti esta coisa da solidariedade?”, digo sempre que há uma parte que nasce connosco. A minha irmã [Marta] é uma pessoa super bem formada, uma pessoa incrível que faz um trabalho notável na Galeria Zé dos Bois, mas não tem esta vocação: acho que é preciso tê-la. Vocação para depois pôr em ação uma profissão que tem a ver com a solidariedade, porque são coisas diferentes. Uma coisa é seres bem formado e possas ser empático e solidário à tua volta, alguém que apoia. Outra coisa é isso ser tão urgente dentro de ti! Eu não conseguia não o fazer. Não conseguia, tenho a certeza absoluta de que, qualquer que fosse a minha profissão — mesmo que não fosse comunicadora, até porque eu queria ser coreógrafa — eu faria sempre algo relacionado com a área, porque é aí que vou buscar o sentido. Encontrei o meu propósito e sinto que o é, naturalmente, desde sempre.
Lembro-me de a minha mãe me dizer que via um idoso sozinho na rua e eu ia a correr e ficava horas a falar com o senhor. Empatia é isso, é ninguém ser transparente para ti, e tenho essa antena. Um dia posso virar coach motivacional porque tenho uma antena de intuição [risos]. E acredito na espiritualidade, atenção. Não acredito é nas pessoas que fazem pseudo curas e que se aproveitam imenso: aqui voltamos ao extremismo e ao populismo. Quem abusa das fragilidades dos outros, estes abutres que se aproveitam das fragilidades e dos buracos negros, quer da sociedade, quer das fragilidades das pessoas, são para mim tudo menos corajosos. São verdadeiros cobardes que precisam da fragilidade dos outros para se colocarem em bicos de pés e terem poder.
Porque são oportunistas?
São e querem o poder. Tenho chegado a tantas conclusões, de tantas pessoas que vejo, em que percebo que as pessoas chegaram a um suposto poder que desenharam ali para as suas ambições e depois chegam lá e, afinal, estão sozinhos. Afinal, o poder sabe a solidão. Mas, sim, por a minha mãe ser professora do ensino especial, comecei a fazer voluntariado com nove anos porque quis, porque lhe pedi para ir tomar conta de jovens especiais numa instituição, e foi aí que constatei que, afinal, a sociedade era muito menos…
Terá sido a sua mãe a desbloquear isso, por estar associada à área?
Não sei se foi. O meu pai, como jornalista, trouxe sempre reportagens do mundo inteiro, muitas das quais sobre crianças trabalharem nos países em desenvolvimento. Um jornalista é um denunciador, não é?
E tem, de forma intrínseca, o fator de curiosidade sobre o outro.
Sim, eu sempre andei em escolas públicas e percebia muito as desigualdades sociais e as oportunidades que uns têm e outros não. Comecei muito cedo nas listas independentes das associações. Andava no conservatório, porque era bailarina, e andava sempre a perpetuar o ativismo. Portanto, foi muito cedo. Seguramente que essas sementes contribuíram, mas também é parte da minha visão. Cresci numa família que ela própria é um catálogo de estratos sociais [risos]. Tinha uma avó, mãe da minha mãe, muito privilegiada, com acesso à cultura, professora de belas-artes, e toda uma família de juristas: o meu tio-avô era o engenheiro Edgar Cardoso, que fez as pontes todas em Portugal. Depois tenho a família do meu pai muito mais humilde. A minha avó, que não sabia ler nem escrever, foi das pessoas que mais me ensinou, e o meu avô era bombeiro. Portanto, tenho este catálogo na minha família, de várias cores que mapeiam uma sociedade.
Por isso, não tenho aquela coisa da ascensão e de ter vindo não sei de onde; mas também não tenho o contrário: “Eu vim daquele bairro, ou daqui, e agora estou aqui”. Percebo que isso seja legítimo. Ou então o contrário, aquelas pessoas que sempre tiveram tudo, então é-lhes difícil pensar como é não ter dinheiro para não sei o quê. Sou tão sortuda porque tenho realmente este catálogo diverso. Só me apercebi disto quando a Porto Editora me convidou para escrever o “Adolescer é fácil, #só que não”, há quatro anos. Tive de fazer este exercício todo de memória, porque tive de perguntar aos miúdos como é que isto da empatia e consciência aparece e, mesmo quem não tenha este catálogo, pode tentar fazer este exercício. Como é que se faz? Ouvindo as pessoas, conversando, tendo curiosidade por elas. Os meus filhos, coitados, passam muito mal, porque vou a qualquer sítio e tenho curiosidade por toda a gente [risos]. Não é coscuvilhice, é interesse. E agora vim de Timor e trouxe duas frases de duas mulheres no meio do nada, numa aldeia, que foram “tau” nesta minha fase da vida pessoal por que estou a passar, não é preciso nenhum intelectual. Mas devemos querer potenciar e não ficarmos pelo “popularzinho”, porque isso também é estagnar e temos muito isso. Mesmo na televisão temos muito a promoção do popular.
Uma coisa é termos verdadeiramente orgulho nas nossas raízes e nas nossas festas populares, que acho o máximo. Agora, quando fazes isso e ao mesmo tempo alimentas a ignorância, não promoves o pensamento, o sentido crítico: isso é algo que não existe, é outra coisa que falta nas escolas portuguesas, falta imenso o sentido crítico. De um modo geral, os miúdos têm de memorizar. Se não és bom a fazer cábulas ou não tens boa memória, porque é que não és convidado a olhar para uma coisa e dizer o que achas sobre aquilo? Perde-se mais tempo, eu sei, mas também se está a perder esta capacidade de espírito crítico. Porque depois é dramático quando nas redes sociais há parágrafos taxativos que passam a ser uma verdade absoluta e, por isso, é bom haver tempo para desconstruir com os miúdos: leste isso onde? No Instagram? Mas o que é que isso quer dizer realmente? Não há tempo para isto.
“Quando arranjamos trabalho para os imigrantes, por exemplo, vemos como é que eles contribuem para a sociedade e para a Segurança Social, e são números gritantes. Esta informação tem que ser recorrente, temos de repetir que o dinheiro que se deu em subsídios para apoio é muito menor do que aquele que a Segurança Social ganhou com o dinheiro dos imigrantes.”
Falava da ignorância em torno do entretenimento televisivo, e obviamente enquanto mulher privilegiada no sentido em que tem uma grande visibilidade, utiliza-a para o bem, no sentido em que dá voz a muitas pessoas e a causas sociais. Mas muitas figuras públicas têm a mesma visibilidade e não o fazem. Como é que vê isso? É um desperdício de recursos? É uma falta de consciência social e de empatia?
Não tenho uma resposta certa para isso. Cada pessoa tem a sua história, mas lembro-me muito dos meus primeiros passos e, mais uma vez, seguindo sempre a minha intuição, para mim foi sempre muito importante não fazer determinados formatos televisivos, sobre os quais não acreditava que fizessem bem à sociedade. Não sei de onde é que isto vem, é uma coisa muito estranha, eu não consigo separar a minha personalidade.
Pode ser o lado ético do seu pai jornalista.
Sim, talvez, da seriedade. Porque não consigo. Eu sou apresentadora. Está bem que apresento eventos privados e faço publicidade, mas em televisão, que é o prolongamento da minha pessoa enquanto cidadã e mulher, não consigo dissociar. Lembro-me do início, há 32 anos, depois quando os diretores me diziam “olha aqui este formato” e eu olhava para aquilo, fosse um reality show ou o que fosse, e continuo mesmo sem perceber como é que os reality shows — cada vez mais estou isolada numa ilha. Não consigo, não vejo interesse nisso. Às tantas, o meu “não” acabou por ser um “sim”. É engraçado. Às vezes as pessoas dizem “não desistas dos teus sonhos, das tuas convicções”. Às vezes não corre bem, eu sei, mas se estivermos a mentir a nós próprios então é que não corre mesmo bem. Disse muitas vezes: se vocês querem mesmo que faça isto, vou estudar outra coisa.
Vou ser franca: se me obrigassem a fazer coisas com as quais não me revia, iria estudar outra coisa, mas depois os meus “não” correram bem. Foram absolutamente determinantes para os meus “sim”. Foram mais importantes os “não” do que os “sim”, até. Depois, vim sempre a fazer aquilo de que gosto de fazer. Nem sempre faço aquilo que quero fazer porque, infelizmente, não consigo convencer a RTP a fazer mais os projetos que eu queria fazer. Tenho muitas ideias, inventei alguns formatos, ainda há dois anos fiz o “É Urgente o Amor”, que veio da minha cabeça. Os “Príncipes do Nada” vamos ver se volta, se não. Queria fazer mais projetos e não sei se consigo. É bom as pessoas saberem que não faço tudo o que quero [risos], porque tenho diretores e porque não tenho ambição nenhuma em dirigir nada. Mas as coisas que faço são coisas com que me identifico e consigo sempre levar uma coisa qualquer para lá, mino as minhas equipas [risos]. Tal como no “The Voice”, um programa de entretenimento super visto, e que não deixa de ser um programa de talentos.
Pode-se educar e transmitir mensagens revestidas de entretenimento?
Sim, neste caso. Não acredito que num “Big Brother” isso seja possível.
A minha questão inicial até tinha mais a ver com pessoas que poderiam usar a voz que têm mas que optam por não a usar. Não necessariamente nos programas que fazem, podem nem sequer ser da televisão.
Sim, e acredito que haja muita gente famosa que até faz mais do que nós sabemos. Isso eu quero acreditar. Dou-te aqui um exemplo do William Carvalho [futebolista], que tem sido um apoiante da Corações com Coroa e nunca disse a ninguém que é. Estou eu a dizer porque ele merece que se diga. Depois, das outras pessoas tenho muita pena, porque passo a vida a ver quais são as oportunidades para tentar apoiar e também mudar mentalidades. Muitas das vezes uma figura pública — ou a arte em geral — pode ser absolutamente transformadora das realidades e mentalidades. Portanto, tenho pena que haja tantos recursos que não são aproveitados. Tenho pena. Mas tenho de respeitar, porque sou humanista e aceito toda a gente. Quer dizer, há coisas que não aceito. Mas tenho que aceitar que para elas não é uma urgência e para mim é. Para mim é uma prioridade, para essas pessoas não é. Não digo que não tenha ego, que não goste de atingir os meus objetivos, que não fique orgulhosa quando recebo um prémio, e essas coisas todas, mas o que sinto é que as pessoas estão muito centradas no seu umbigo. Umas talvez por necessidade de sobrevivência, outras porque estão mesmo embriagadas consigo próprias.
Vivem no próprio culto?
Sim, e se calhar até por insegurança. Acredito que as pessoas mais seguras — mas isto é uma convicção barata — e que estão melhores consigo, mais conscientes das suas qualidades e defeitos, são normalmente as que tendem a estar mais para os outros. Não têm tanto medo de si, é o autoconhecimento. Muitas vezes, no entanto, olhamos para pessoas que parecem altamente seguras, e se calhar há ali uma enorme insegurança e por isso é que estão no “eu” e no “eu”.
Já disse que um dia gostaria muito de concretizar uma espécie de loja do cidadão de direitos. No fundo, é aquilo que vocês já fazem aqui na associação, mas talvez estivesse a imaginar algo mais ambicioso. Com aconselhamento jurídico, psicológico, ou outras vertentes.
Sim, algo maior. Seria mesmo uma loja do cidadão, que está desenhada desde a primeira hora – há 10 anos que está num projeto na gaveta da Corações com Coroa. Teria que haver grandes financiadores e patronos, mas seria uma loja do cidadão onde as valências fossem exatamente áreas que promovessem a dignidade e reconhecessem e promovessem os direitos das pessoas. Na nossa conceção, as pessoas não só tinham alguém especializado em explicar — porque há muitas pessoas, de classes sociais mais baixas e que são menos informadas, que não conhecem os seus direitos, e para reivindicares tens de saber, em primeiro lugar — haveria, portanto, um departamento que explicasse os direitos às pessoas, como depois haveria apoio psicológico, apoio de serviço social, apoio para crianças, uma espécie de creche. É uma coisa que algumas ONG fazem. Imaginemos as crianças que são filhas de empregadas de limpeza, que vêm do outro lado do rio e acordam às quatro da manhã: essas crianças ficam onde? Esta seria uma loja que acolhesse. Obviamente, tinha que ter uma maneira de se sustentar, mas procuraríamos ter a certeza absoluta de que, passado um ano, estas pessoas estavam mais bem informadas, mais empoderadas e poderiam, depois, ser inclusivamente mais capazes de dar o retorno à sociedade. Isto de que falo não deixa de ser, também, uma promoção da economia em Portugal.
“Não digo que não tenha ego, que não goste de atingir os meus objetivos, que não fique orgulhosa quando recebo um prémio, e essas coisas todas, mas o que sinto é que as pessoas estão muito centradas no seu umbigo. Umas talvez por necessidade de sobrevivência, outras porque estão mesmo embriagadas consigo próprias.”
É capacitar.
Claro, estou a falar de dinheiro também. Quando arranjamos trabalho para os imigrantes, por exemplo, vemos como é que eles contribuem para a sociedade e para a Segurança Social, e são números gritantes. Esta informação tem que ser recorrente, temos de repetir que o dinheiro que se deu em subsídios para apoio é muito menor do que aquele que a Segurança Social ganhou com o dinheiro dos imigrantes.
Até porque os subsídios não são só atribuídos a imigrantes.
Claro que não, e grande parte são crianças.
E o RSI, por exemplo, é um valor bastante residual.
E, lá está, a maior parte é para crianças. Portanto, as pessoas estão enganadas quanto aos subsídios, e estão a ser enganadas. Não sabem que, se não fossem os imigrantes, não só não tínhamos uma Segurança Social tão robusta do ponto de vista financeiro, como postos de trabalho que, infelizmente — e não é razão para eles estarem cá, atenção —, os portugueses não fariam, porque são explorados e as pessoas sujeitam-se porque vêm de situações muito piores. Entrevistei muitos refugiados: por exemplo, no Bangladesh, no Líbano, na Grécia, no Uganda e até na Colômbia. As pessoas vêm desesperadas, no nosso caso chegam aqui a Portugal e aceitam estar em situações que elas próprias percebem que não são aquilo com que sonhavam, mas sujeitam-se porque, apesar de tudo, é um país que não tem guerra. Mas estão a ser exploradíssimos e nós não podemos aceitar isso. A resposta não é: não deixem entrar tantos. Não, nós temos capacidade, temos é que saber acolher. Para isso são precisos mais braços e respostas mais concertadas. Tem que haver mais rede em concertação para poder organizar isto. Temos de falar da nossa responsabilidade social partilhada. Só por nascermos, já temos uma responsabilidade. A ideia do mutualismo, esta ideia de que temos de estar cá uns para os outros, tem de ser cada vez mais uma realidade.
Esta entrevista contou também com os contributos de Rui André Soares e Marcos Coelho.