Entrevista. Companhia palestiniana de teatro leva “Laranjas e pedras” a Almada, metáfora sobre o seu país
A peça “Laranjas e pedras”, que a companhia palestiniana Ashtar Theatre apresenta de hoje a domingo, em Almada, é “uma metáfora” da situação na Palestina e do “genocídio” do seu povo, num conflito que se aprofunda desde 1948.
A afirmação foi feita à agência Lusa pela atriz Iman Aoun, diretora artística da companhia e protagonista da peça sem texto nem palavras, que, como afirma, deixa perceber tudo o que aconteceu e acontece na Palestina, onde “o problema dos palestinianos nada tem a ver com o povo judeu, até porque há palestinianos que professam o judaísmo”, mas sim “com o sionismo das autoridades israelitas.”
O espectáculo, concebido e encenado por Mojisola Adebayo, em que Iman Aoun contracena com Edward Muallem, é acolhido pela Companhia de Teatro de Almada durante este fim de semana, no Teatro Municipal Joaquim Benite.
Embora a peça “Oranges and Stones” (no título original) “remeta para a primeira vaga de imigração de judeus para a Palestina, após a Declaração de Balfour [1917],” ela é “mais uma metáfora do que se está a passar na Palestina”, sublinhou Iman Aoun, em entrevista à agência Lusa.
“A situação na Palestina começou com a primeira onda de imigração”, tal como começa o espectáculo, em cena na sala Experimental, e cuja ação tem início com a chegada de um israelita a casa de uma mulher que se encontrava “feliz e em paz a viver no seu lugar, com uma laranjeira num pequeno pedaço de terra”, observou a atriz.
“Neste momento estamos a assinalar os 75 anos da catástofre, a ‘Nakba’, o que significa que o genocídio que está a acontecer hoje tem acontecido com os palestinianos desde 1948 e o mundo ocidental continuam cúmplice e calado sobre o que continua a passar-se”, frisou.
A “Nakba”, a expressão árabe para catástrofe ou tragédia, designa o êxodo palestiniano de 1948, quando, segundo dados da Organização das Nações Unidas, mais de 700.000 palestinianos fugiram ou foram obrigados a sair de suas casas, devido à guerra israelo-palestiniana de 1947-1948 e à constituição do estado de Israel.
“Lentamente”, a mulher protagonista da peça apercebe-se de que o homem, um judeu pobre, do centro da Europa, que se refugia na Palestina após a Segunda Guerra Mundial, vem reclamar o que considera “um direito seu”, que é o lugar onde a mulher mora e a sua família sempre morou, o que leva a que a tensão entre ambos continue em crescendo até um “aprofundar do conflito” que desemboca na atual situação que se vive na Palestina, disse.
Questionada sobre se considera ser possível a paz na Palestina, Iman Aoun não hesita e responde: “Se vierem ver o espectáculo percebe-se tudo o que aconteceu na Palestina e que é contado sem nenhuma palavra nestes 48 minutos em palco.”
A possibilidade de haver paz ou não, de aceitação do outro ou não assim como a pressão do colonialismo estão em cena na peça, cuja ação se fixa num círculo delimitado por laranjas e pedras.
“Tudo o que estamos a viver [na Palestina] foi, de alguma forma, trazido para a ação no palco”, sublinhou a atriz, ressalvando que o problema na Palestina não tem “nada a ver com conflitos entre judeus e palestinianos”.
“A verdade absoluta é que o problema dos palestinianos nada tem a ver com o povo judeu, até porque há muitos palestinianos que professam o judaísmo, como há os que professam o cristianismo. Tem a ver com o sionismo das autoridades israelitas”, enfatizou.
O problema é “o sionismo que mistura a religião com razões políticas e económicas, e este é o maior problema que temos vindo a enfrentar desde os primeiros confrontos, em 1897, até ao momento.”
As autoridades sionistas “utilizam mal a religião para criar uma abordagem de tipo colonial vil”, de modo a “perpetrar o colonialismo”, observou, acrescentando que os ataques israelitas também não se resumem a uma resposta ao atentado do Hamas, em 07 de outubro de 2023.
Questionada sobre os maiores problemas que a companhia sente para fazer teatro em Ramallah, na Cisjordânia, Imans Aoun fixou o primeiro na ocupação israelita.
O facto de a sede do Ashtar Tehatre se situar em Ramallah, impede “muitas vezes” os atores de representarem em Jerusalém, já que “nem todo o elenco” obtém permissão para se deslocar, referiu.
Também não podem atuar para os seus conterrâneos nos territórios ocupados desde 1948, pelo que a companhia só consegue representar para “parte da comunidade ou sociedade palestiniana”.
O financiamento, uma vez que a Palestina não tem recursos próprios, obrigando a companhia a estar sempre dependente de “donativos internacionais”, é outro dos obstáculos com que se confrontam, indicou.
E isto passa-se “a todos os níveis, da cultura aos direitos humanos”. Uma situação agravada por dois fatores.
Primeiro, “a Autoridade Palestiniana também não é completamente livre, pelo que não financia a cultura” e, em segundo, porque as autoridades sionistas “também controlam os donativos internacionais.”
Por isso, a companhia tem de “encontrar meios modestos” para chegar à população palestiniana, ou então “fazer cooperação com teatros internacionais”, o que também “não é fácil de conseguir”.
“Tudo isto são verdadeiros desafios para a companhia”, observou Iman Aoun, acrescentando pretenderem “primar pela qualidade” dos espectáculos que apresentam, quer na Palestina, quer a nível internacional.
Fazer teatro na Palestina é, para Iman Aoun, uma forma de “chegar às comunidades internacionais”, no sentido de criar uma solidariedade, chamando a atenção do mundo para “os direitos humanos do povo palestiniano, da sua luta e do desejo de conseguirem um país livre”, disse.
Fazer teatro, permite ainda apresentar “o que não é dito ou mostrado nos ‘mainstream media'”, declarou. “Temos de dizer ao mundo que somos artistas, um povo com cultura, pessoas com ‘think tank’, pelo que é importante criamos diálogo com a comunidade internacional.”
Para Iman Aoun, os palestinianos “não são apenas uma cor”. “Somos um povo como o de outras nações, com uma cultura forte, bons artistas e merecemos uma vida como era suposto acontecer na nossa terra”, concluiu.
Sem ser documental, nem pretender contar “toda a verdade”, “Laranjas e pedras” conta “uma verdade possível”, segundo Mojisola Adebayo, a criadora do espectáculo.
Fundado em 1991, em Ramallah, Ashtar Theatre tem como objetivo “promover e divulgar, através do teatro, uma sociedade livre e aberta ao mundo”, escreve a Companhia de Teatro de Almada na apresentação do espectáculo, acrescentando que “parte dessa missão tem sido cumprida graças à passagem desta companhia por vários festivais internacionais, assumindo-se como uma verdadeira embaixadora da cultura palestina.”
“Laranjas e pedras” tem música de Rami Washaha. As récitas, hoje e sábado, são às 21:00, no domingo, às 16:00, sempre na Sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite.