Entrevista. David Erlich: “A má Política não tem relação com a Filosofia. A Filosofia tem uma relação com a Política quando a Política é boa e quando a Filosofia não é dogmática”

Terminados os vários debates frente-a-frente com vista às eleições legislativas, o filósofo David Erlich reflete sobre a relação da Política com a Filosofia – e está em crer que tem tido lugar uma TikTokização da Política, com vídeos curtos a preencherem a nossa atenção.
Não sabemos se os políticos leram o “Retórica”, de Aristóteles, mas a filosofia está em cada discurso e debate em que os políticos participam. Nos próximos tempos, teremos não uma, mas três chamadas às urnas. Temos eleições legislativas, autárquicas e presidenciais. Como pode a filosofia ajudar-nos nos dias que vivemos? A Política e a Filosofia sempre andaram de mãos dadas? E será que vivemos tempos de espetacularização da Política?
É com uma reflexão sobre retórica que começa este episódio do podcast “Ponto Final, Parágrafo”, em que falamos sobre o novo livro de David Erlich, “A Bebedeira de Kant”, editado pela Editora Planeta.
Magda Cruz: Não sabemos se os políticos de hoje em dia leram o “Retórica”, de Aristóteles, mas a Filosofia está em cada discurso e debate em que participam. Nos próximos tempos, como sabemos, vamos ter não uma, mas três chamadas às urnas. Temos legislativas, autárquicas e presidenciais. Como é que pode a Filosofia ajudar-nos nos dias que vivemos, com tantas decisões a tomar e tendo em conta que vivemos num mundo globalizado?
David Erlich: Eu diria que depende do modo como vemos a Filosofia. Hoje em dia, temos uma sensibilidade filosófica maioritariamente amiga do espírito democrático, mas um dos modos filosóficos de encarar a democracia, que não é o meu, é simplesmente o projeto de anulação da democracia em prol de um projeto em que o exercício do poder político se conjugue com a posse da sabedoria. Era essa a ideia de Platão com a sua Sofocracia. Essa ideia ressurge com o despotismo iluminado e depois também ressurge, por exemplo, no positivismo de Auguste Comte, a ideia da tecnocracia. Esse seria um modo de aproximar-nos à democracia desde um ponto de vista filosófico, que seria defender a sua anulação. Não é o meu modo. Como é que então podemos aproximar-nos ao fenómeno democrático e, especificamente, ao debate democrático desde um ângulo filosófico? É que eu diria que uma campanha será tão mais filosófica quanto ela se basear no debate entre ideias e não num debate entre passados, “o que tu fizeste, o que eu fiz”, ou pelo menos que não se feche aí. Toda a campanha tem uma componente ad hominem, no sentido dirigida à pessoa. Portanto, elegemos pessoas, somos representados por pessoas.
MC: Aqui já entramos na retórica e no carisma da pessoa.
DE: Sim, e é natural que isso exista numa campanha. Eu diria até que seria estranho que isso não existisse. O problema é quando isso é feito num tom exaltado. Todos nos lembramos de um certo candidato que no passado opinou sobre o batom que as suas concorrentes eleitorais usavam. E o problema é quando o debate em torno de questões pessoais ocupa grande parte do espaço mediático. Portanto, uma campanha será tão mais filosófica quanto, por um lado, assentar num debate de ideias. E será tão mais filosófica quanto assentar num debate de ideias para o longo prazo. Isto é, a Filosofia estuda as grandes questões da humanidade. E nesse sentido, uma campanha será tão mais filosófica quando ela debater questões de fundo que apresentam alternativas quanto à visão de país para o futuro. E será menos filosófica quanto se fechar nas questões instantâneas da espuma dos dias.
MC: Portanto, Filosofia e Política sempre andaram de mãos dadas.
DE: Eu diria que, na medida em que a Filosofia, reflexão sobre estas grandes questões, nas quais não conseguimos deixar de pensar e que nem sempre a Ciência consegue responder… Porque o mais interessante é que mesmo depois da emancipação da Ciência, face à Filosofia, ali no século XVIII e consolidada no século XIX, ainda assim existe Filosofia, ainda assim existem cursos de Filosofia, ainda assim existem filósofos e questões filosóficas, e ainda assim existem cada vez mais cientistas. Quer dizer, cada vez mais, não sei porque não gosto de fazer juízes de facto sem ter fontes, mas existem muitos cientistas que chegam à Filosofia depois de terem feito uma carreira científica ou ao mesmo tempo que fazem uma carreira nas Ciências. É muito interessante que exista a Filosofia. É quase estranho que existe a Filosofia.
MC: Como assim é estranho haver Filosofia?
DE: É estranho haver Filosofia porque ao longo toda a história da Filosofia, a investigação das grandes questões sempre esteve unida neste núcleo que era Filosofia, Ciência e Matemática. Pitágoras, Tales de Mileto eram cientistas, eram filósofos, eram matemáticos. E é fascinante que, mesmo com a autonomização da Ciência e mesmo com o facto de a Ciência estar cada vez mais avançada, a Filosofia não ter desaparecido e não ser apenas uma espécie de compêndio do passado. Ou seja, a Filosofia está viva. E portanto, refletir sobre a relação entre Política e Filosofia exige desde logo um certo espanto com o facto de a Filosofia existir hoje e não ter sido, como muitos, alguns deles até filósofos, não ter sido extinta. Então, a Filosofia investiga estas grandes questões da humanidade que, num certo sentido quase trágico, nós não podemos deixar de nos colocar essas questões, mesmo sem ter uma resposta concreta e medida através de dados. E portanto, a Filosofia tem uma relação com a Política quando a Política é boa e quando a Filosofia não é dogmática. Ou seja, há uma relação não entre a Política e a Filosofia, parece-me, mas sim entre a Filosofia não dogmática e a boa Política. Porquê? Porque se a Política for má, é a discussão do casinho, do ontem, do amanhã. É a discussãozinha do batom… É a simplificação. Quando a Política é má, e esse é um problema dos populismos. O problema do populismo é que simplifica e reduz pequenos vídeos, naquilo a que nós podemos chamar a TikTokização da Política, aquilo que é complexo. A má Política não tem relação com a Filosofia. A Filosofia dogmática também não tem relação com a Política, porque a Filosofia dogmática o que pretende é a anulação da Política democrática e o exemplo arquetípico é “A República”, de Platão. Portanto, eu diria que há uma relação muito fecunda entre a boa Política e a Filosofia não dogmática. Isto é que foi uma volta.
MC: Isto era todo episódio do teu podcast, que já vamos aprofundar. Mas já que entrámos neste lado da Política e falavas agora de populismos, queria falar da espetacularização da Política. Vivemos em tempos de espetacularização da Política, vê-se isso em algumas estratégias de políticos a tentarem passar a sua mensagem. Portanto, um político hoje dia tem de ser de alguma forma um ator, há algum filósofo que já tenha pensado sobre isso?
DE: Eu diria que não é de hoje, não é? Basta lembrar-nos dos discursos de Cícero, para ir à referência romana, ou aos sofistas. O grande perigo parece ser o da rede social como ela existe hoje em dia. Porque nós podemos ter uma concepção da retórica, como tinha Aristóteles e que já mencionaste aqui, não inimiga da verdade. Portanto, a retórica como uma ferramenta que pode ser usada para fins ilegítimos ou para os fins mais nobres. O problema, a meu ver, atual é a compressão da informação em vídeos muito curtos e vídeos muito curtos que dependem de uma âncora inicial para nós vermos até ao fim. Portanto, o facto dos vídeos serem muito curtos, o facto de haver uma competição pela atenção do utilizador e o facto de nós podermos mudar o vídeo assim que quisermos privilegia então que mensagens mais polarizadas, mais zangadas, mais chocantes ganhem o jogo da atenção. E isso, então, eu diria que já estamos para lá da própria retórica. Ou seja, o problema agora não é que estejamos muito sujeitos à retórica. É que já estamos num fenómeno que é para lá do retórico, porque não é linguístico apenas, é imagético, remete para o pulsional. Fazemos scroll, e há um vídeo de 20 segundos: candidato X destrói candidato Y, candidato Z aniquila candidato H.
MC: Porque depois são vídeos que pecam pela falta do contexto. É essa TikTokização da Política.
DE: Sim, porque há que relembrar que há aqui algumas subtilezas. Quando falamos redes sociais, há que recordar que as redes sociais quando começam, nós temos acesso sobretudo às atualizações dos amigos. Isso é muito diferente da rede social globalizada e em que o que te aparece no feed é comandado pelo algoritmo e não tem que ver com as tuas conexões. Tu podes ter um grande amigo teu e ele aparece no feed muito poucas vezes, e algo que o algoritmo diz que tu vais gostar e que tu não conectaste propositadamente aparece muitas vezes. O que me parece perigoso é a rede social comandada por algoritmo invisível, contrariamente à primeira geração da rede social em que nós viamos, sobretudo, os nossos amigos. A rede social que nos acompanha para todo o lado e a rede social assente nesta pluralidade de pequenos vídeos e sobretudo assente num modelo que depende da captação da nossa atenção. E portanto aqui, a meu ver, eu não sei até que ponto o perigo hoje é a retórica ou o perigo hoje é o esmagamento da retórica por algo que já se assemelha menos à retórica e mais a uma ideia de controlo cerebral ou lavagem cerebral, que é a TikTokização. Porque esses vídeos, muitas vezes, têm sucesso não é pelo conteúdo linguístico, é pela luz, pela posição da cara do candidato no vídeo, pela música do vídeo.
MC: São os chamados triggers visuais.
DE: Exatamente, e até há influencers que ensinam outros como fazer.
MC: Certas frases: “Cinco coisas que deve saber sobre estas legislativas”.
DE: Exatamente. Recentemente, também me dei conta que ajuda muito se estiveres a falar enquanto fazes alguma coisa. Quando estás a fazer uma tarte de amêndoa e… o trigger visual. E portanto, aí já estamos para lá da retórica no sentido clássico. A retórica no sentido clássico remete-nos para a estrutura da linguagem, a expressão da linguagem, ou o modo como o sujeito através da linguagem remete para si próprio ou o modo como o sujeito através da linguagem remete para uma ligação com o auditório. Eu acho que temos retórica a menos. Devíamos ter mais retórica no velho estilo da Política e menos esta TikTokização, que a meu ver, é indissociável à ascensão dos populismos. É difícil ter um debate racional quando o nosso attention span é de 20 segundos por vídeo.