Entrevista. Didier Eribon: “Quando falamos de idade, temos de a cruzar com a noção de classe, porque a idade não é a mesma consoante as profissões e os meios sociais”
O pensamento de Didier Eribon tornou-se num fenómeno de amplitude refletora com “Regresso a Reims” (ed. Dom Quixote, 2019), ensaio dorido e biográfico sobre o operariado, as transformações políticas de um país atravessado por crises de identidade decorrentes de derivas liberais e economicistas, que, à escala familiar, eram também uma leitura para a composição de identidades onde a sexualidade era normativa. A vivência da sua homossexualidade, a ascensão da extrema-direita e a falência do Estado Social eram motores para uma análise que encontrou eco noutros contextos, latitudes e gerações que viram nesta trânsfuga de classe, herdeiro de Michel Foucault e autor de uma importante obra que, em português, conhecemos mal, um exemplo sobre como se podem enfrentar os valores conservadores disfarçados de herança, o pensamento académico desajustado das lutas sociais, ou as relações interpessoais como janela de respiração para as múltiplas e micro agressões quotidianas.
As traduções das biografias de Claude Lévi-Strauss (“De Perto e de Longe”, ed. Nova Fronteira, 1990) e Michel Foucault (“Michel Foucault”, ed. Livros do Brasil, 2008), estão há muito esgotadas, pelo que a edição, para o grande público, de “Regresso a Reims”, surge como um primeiro contacto com o seu pensamento, do qual desconhecemos os essenciais “Réflexions sur la question gay” (ed. Fayard, 1999, em português “Reflexões sobre a questão gay”), “D’une révolution conservatrice et de ses effects sur la gauche française” (Léo Scheer, 2007, em português “De uma revolução conservadora e os seus efeitos na esquerda francesa”) ou “La Société comme verdict: Classes, identités, trajectoires” (ed. Fayard, 2010, em português “A sociedade como veredicto: classes, identidades, trajetórias”), falso tríptico que muito contribui para um olhar no qual é inevitável projetarmo-nos, enquanto país onde a esquerda teve um papel determinante na defesa dos valores que consideramos fundamentais; enquanto uma sociedade que se vê atravessada por políticas e comportamentos liberais e individuais; enquanto indivíduos que se pensem enquanto agentes e seres políticos, onde a sexualidade, porque também traduz identidade e afirmação, é um espaço de defesa de direitos coletivos.
A publicação do seu mais recente livro “Vida, Velhice e Morte de Uma Mulher do Povo”, pela Zigurate, é o reencontro com um pensamento que quer juntar a emoção à teoria. Parte, novamente, da sua história, agora, a morte da sua mãe depois de sete semanas num lar a 30 quilómetros de Reims, onde voltou para confirmar que nada havia mudado. Mas é, sobretudo, um poderoso e denunciador ensaio sobre as consequências das escolhas políticas que participam do desaparecimento dos velhos dos círculos onde nos movemos, das cidades aos projetos políticos, incluindo os que prometem integração, respeito e harmonia geracional.

A publicação deste seu livro em Portugal coincide, em alguns meses, com o lançamento de um conjunto de entrevistas reunidas em “Sociographie” (ed. Flammarion, 2025, com Geoffroy Huard), onde revela a importância não apenas do processo de pesquisa de cada um dos seus livros, mas sobretudo o modo como observa os ecos que cada um deles produz. E nele reflete amplamente sobre o impacto das suas observações, muitas vezes criticadas porque ambicionam observar a realidade sem deixarem de se envolver. Comecemos pela importância que dá às críticas ao seu método e pensamento.
Não leio muito o que é escrito sobre mim ou sobre os meus livros, porque infelizmente sei que partem de um conservadorismo cultural, académico e mediático. São sempre as mesmas objeções, mas estou muito atento à discussão, e mesmo à discussão crítica, quando vem de pessoas com ideias que permitam uma discussão, ver lugares de problemas e onde há uma discussão possível. Isso acontece muito mais com os que me acompanham, como o Édouard Louis e Geoffroy de Lagasnerie, ou a Chantal Mouffe e a Judith Butler, amigas próximas, cujas críticas às análises que quis elaborar podem ser muito benevolentes, mas ao mesmo tempo muito pertinentes. E que me fazem progredir mais do que as asneiras.
“A idade da reforma não pode ser abordada apenas a partir das profissões privilegiadas. É preciso pensar a questão a partir do trabalho difícil, do trabalho que destrói os corpos. (…) O corpo de uma operária que envelhece revela, à vista de todos, a verdade sobre as condições da existência das classes sociais”
Imagino que também partilhe ideias durante o processo de pesquisa e de escrita.
Claro. Quando discuto com elas, ou com o Édouard ou o Geoffroy, que vejo mais regularmente, comento sobre o que estou a escrever, e um comentário não é necessariamente uma crítica, mas uma reflexão que se junta, ou a referência a um livro. Dizem-me: “Leste o livro de tal ou tal autor? Acho que te poderia ajudar.” Estas discussões prévias, durante a própria escrita do livro, ajudam-me e trazem-me muito. Mas quando o livro sai, há pessoas que fazem o que poderíamos chamar de “objeções de rotina”, sempre as mesmas, e que nos remetem ao estado anterior do pensamento sociológico ou filosófico. Isso não me interessa.
Nesse livro, “Sociobiographie”, disse não pretender fazer uma prescrição sobre como devem os seus livros ser lidos nem propor uma grelha de leitura que se oferecesse como legitimador de referências. Mas é evidente que quando se fala do que pode ser a possibilidade de projeção num texto, usando-o como referência pessoal – como foi o caso do impacto de “Regresso a Reims”, por exemplo –, acontece aquilo que Geoffroy de Lagasnerie no livro sobre a vossa relação de amizade, – “Une aspiration au dehors” (ed. Flammarion, 2023, em tradução livre seria “Uma ambição para o exterior”; o livro reflete sobre a relação de Didier Eribon e o seu companheiro, Geoffroy de Lagasnerie com o autor Édouard Louis), descreve como a “transmissão prática”.
Nesse livro, ele diz justamente que é totalmente indiferente aos ataques exteriores, porque tem leitores rigorosos — Édouard Louis ou eu — que, quando ele nos faz ler o seu livro em preparação, lhe fazemos objeções e críticas que lhe permitem repensar e reescrever algumas passagens do livro e o mesmo acontece no sentido inverso para nós. A discussão crítica acontece antes da publicação. A amizade pode ser uma fonte de crítica e de progresso intelectual muito maior do que as críticas exteriores ou os ataques que possam vir do mundo mediático ou universitário, que tem sempre tendência a recusar toda a inovação intelectual. Os mesmos que nos podem atacar hoje eram os que atacavam Foucault ou Bourdieu, que atacaram Norbert Elias ou Erving Goffman. Portanto, a amizade é um princípio de discussão crítica extremamente importante. Se lermos as memórias de Simone de Beauvoir, ela conta como Sartre e ela liam o trabalho um do outro e o criticavam. Foi essa crítica que lhes permite reformular ideias. As críticas que vêm de fora são muito menos importantes porque são muito menos interessantes.
O que tento explicar no “Sociographie”, é que sei como escrevo, e porque o quero fazer, mas não posso dizer ao leitor como o deve ler. Sei como elaborei cada um dos meus livros, e trabalho que isso representou — é esse o princípio que orienta as entrevistas reunidas nesse livro —, mas num livro como “Regresso a Reims”, traduzido em 33 línguas, não posso dizer ao leitor: “Eis como deves lê-lo”. Sei que não se deve ser modesto perante a realidade, mas de facto, quando as pessoas me falam da sua vida, que não tem estritamente nada a ver com a minha, o que posso dizer é que “Regresso a Reims” é o relato de uma trajetória social, mas também uma grelha de análise teórica para compreender essa trajetória social.
Essa grelha, que os leitores podem ativar adaptando as minhas análises e os meus conceitos ao seu próprio país, à sua própria história, ao seu próprio mundo. Isso acontece em Viena, em Buenos Aires, em Tóquio, na Coreia, em Atenas ou na Eslovénia, de onde regressei e falei para auditórios de 500 e 600 pessoas, não faz da minha a sua história. Permite-lhes que compreender o que viveram e permite pensar a sua própria história.
Há um livro muito bonito da socióloga quebequense Caroline Dawson [1979-2024], “Là où je me terre” (Éditions Remue-ménage, 2020), para o qual escrevi agora o prefácio para a edição francesa, onde ela, filha de exilados chilenos em Montreal, conta e reconstrói a sua trajetória de filha de uma mãe empregada doméstica e pobre. Ela conta que foi “Regresso a Reims” que desencadeou nela a vontade de escrever. Eu fico muito impressionado porque, evidentemente, a sua história é completamente diferente da minha. Mas todas as etapas de um percurso de trânsfuga de classe, todas as emoções que ela sente — a vergonha, o desprezo de classe por outros, as dificuldades em passar de um meio para outro —, e tudo o que ela descreve, todas as etapas e todos os sentimentos, são praticamente exatamente os mesmos que eu descrevo em “Regresso a Reims”. Portanto, poderíamos dizer, claro, que ela se inspirou nesse livro para pensar a sua própria existência de exilada, de filha de exilados, e nele encontrar palavras para melhor compreender a sua realidade e a sua biografia, e, imagino, apropriar-se da sua própria história.
“A amizade pode ser uma fonte de crítica e de progresso intelectual muito maior do que as críticas exteriores ou os ataques que possam vir do mundo mediático ou universitário, que tem sempre tendência a recusar toda a inovação intelectual”
Interessa-me essa ideia de permanente regresso a uma estrutura comum, para evocar uma passagem em “Vida, Velhice e Morte de Uma Mulher do Povo” em que escreve sobre como ao regressar a Reims, após a morte do seu pai, para encontrar a sua mãe, compreendeu que as condições de que tinha fugido não tinham mudado. E é esse regresso que permite compreendê-lo, incluindo poder prestar homenagem ao esforço que a sua mãe fez para que pudesse ir estudar para a faculdade e tornar-se quem é. No fundo, ao escrever a sua biografia social, toma não apenas consciência da realidade da qual escapou, mas também aquela que construiu.
Escrevi “Regresso a Reims” após a morte do meu pai, porque queria refletir sobre a minha relação muito difícil e conflituosa com a minha família. Quis reinterpretá-la em termos de classe social. Eu nasci num mundo operário muito pobre, para o qual a situação económica era extremamente difícil. Aos poucos, os meus pais encontraram…, enfim, a sua situação económica melhorou ao longo dos anos. Mas eu quis deixar esse mundo operário para ir estudar para Paris e, uma coisa importante, para viver a minha homossexualidade mais livremente do que era possível numa cidade de província num mundo operário bastante homofóbico. O meu pai era muito homofóbico e eu quis deixar esse meio. Quando escrevi o livro, quis também reanalisar o meu percurso em termos de classe social, uma vez que as classes sociais tinham sido um pouco afastadas, aliás, muito, afastadas da discussão intelectual e política. Era como se as classes sociais já não existissem hoje e fossem uma noção do século XIX. Ao analisar o meu percurso, queria mostrar que há classes sociais, talvez não no sentido em que Marx elaborou a noção de classe, mas a teoria marxista das classes sociais era uma discussão implícita. Queria analisar como é que a estrutura de classe das nossas sociedades se manifesta nas profissões e nos corpos.
Quando analiso as fotografias da minha família, de mim noutros tempos e através do sistema escolar – para retomar as célebres e sempre muito pertinentes análises de Bourdieu sobre o funcionamento do sistema escolar enquanto máquina para eliminar as crianças das classes populares, privilegiando as crianças das classes já privilegiadas — precisei de introduzir, não apenas como simples análises conceptuais mas para compreender existências singulares, a minha existência e a existência dos meus pais, que deixaram a escola aos aos 13 ou 14 anos, para se tornarem, a minha mãe, empregada doméstica, e o meu pai operário.
Mas se a reintrodução das classes sociais [no debate público] foi o ponto de partida de “Regresso a Reims”, com “Vida, Velhice e Morte de Uma Mulher do Povo”, o ponto de partida era a questão da idade enquanto categoria teórica e política adicionada a todas as que usamos nas nossas discussões quotidianas: as noções de classe, género, raça ou sexualidade. Demorei cinco anos a escrevê-lo, comecei em 2018 e foi publicado em França em 2023, e fi-lo depois da morte da minha mãe. Quando falamos de idade, temos de a cruzar com a noção de classe, porque a idade não é a mesma consoante as profissões e os meios sociais. Não temos a mesma idade quando fomos operárias numa fábrica ou quando fomos uma artista, uma intelectual ou uma professora universitária. A situação não é a mesma, como não é a mesma coisa para um homem e para uma mulher. O que é comum, e deve ser adicionada à nomenclatura das categorias teóricas e políticas, é a grande velhice [em francês grand âge, fazendo referência às pessoas com mais de 80 anos].
O ponto de partida do meu livro são as mensagens que a minha mãe, que estava num lar, me deixava à noite: “Estou a ser maltratada aqui; estou infeliz, impedem-me de tomar banho; quando toco, ninguém vem; tenho frio, mas ninguém responde ou vem fechar a janela”, etc. E porque são realidades que é preciso abordar, como quando me dizia que se sujara, mas “eu toco e ninguém vem mudar as minhas fraldas”, considerei que as mensagens da minha mãe eram eminentemente políticas. A minha mãe morreu muito rapidamente após a entrada no lar. Ao pensar sobre a sua morte, considerei que as mensagens que me deixava eram protestos contra as condições de vida que lhe foram impostas, e que são impostas às pessoas idosas nas nossas sociedades.

No livro refere-se à condição política do indivíduo ao longo da sua vida. Considera que a sua mãe se reclamava enquanto indivíduo político, algo que sentia que já não a viam como tal?
Dizia a mim mesmo que estas mensagens eram muito políticas. Ela não o formulava dessa forma, foi assim que as entendi, porque, e é esse o ponto de partida do meu livro, esta é uma mensagem política que não chega à esfera pública, que não atinge a esfera política, e que fica confinada ao espaço familiar privado, ou seja, o atendedor do telefone do seu filho, neste caso, eu. Portanto, era uma mensagem política com um único destinatário: o filho da pessoa que expressava essa contestação. Consequentemente, levantei a questão: quem pode formular protestos políticos? Quem pode aceder a uma palavra política e quem não pode? A minha mãe não tinha acesso à palavra política, uma vez que estava na cama de um lar e já não se conseguia levantar sem ajuda. Já não podia, evidentemente, descer à rua com os outros residentes para se manifestar, não podia organizar um colóquio, nem uma petição, não podia publicar uma crónica num jornal ou um artigo científico numa revista da especialidade para analisar toda essa situação. Consequentemente, a minha mãe, como todas as outras pessoas que viviam na mesma situação que ela, e que a vivem hoje, estava privada de acesso à palavra pública. Estava privada de uma voz política. A minha mãe não tinha voz.
São as últimas páginas do livro, a sua conclusão, mas foi o ponto de partida: quem tem acesso à palavra política? E quando as pessoas não têm esse acesso, há a necessidade de se encontrarem porta-vozes, sejam associações, sindicatos ou intelectuais, escritores, sociólogos, filósofos, que se constituam enquanto tal, para fazerem ouvir no espaço público a voz dos que já não têm voz.
Durante este trabalho, inspirei-me num livro de Simone de Beauvoir, intitulado “La Veillese” [em português “A Velhice”, Éditions Gallimard, 1970, que não está publicado em Portugal], desconhecido até mesmo pelas minhas amigas feministas que tinham lido cada linha publicada de Simone de Beauvoir. Interroguei-me sobre o porquê desse desconhecimento, sendo um livro muito mais recente do que “O Segundo Sexo”, publicado em 1949 [em Portugal, a edição mais recente é da Quetzal Editores, 2015].
“Ao analisar o meu percurso, queria mostrar que há classes sociais, talvez não no sentido em que Marx elaborou a noção de classe, mas a teoria marxista das classes sociais era uma discussão implícita. Queria analisar como é que a estrutura de classe das nossas sociedades se manifesta nas profissões e nos corpos”
No seu livro diz que a Simone de Beauvoir considerava que era porque o assunto parecia demasiado mórbido…
No fundo, ninguém se interessava. Nesse livro ela coloca a questão do desinteresse: porque é que ninguém quer falar deste assunto? Para mim a resposta tornou-se evidente: nos movimentos feministas — porque não se pode falar do feminismo como algo homogéneo — existem livros que são referências, que andam nos bolsos de todas as jovens, estão nas coleções de bolso e nas listas de bestsellers há dezenas de anos, ainda hoje. São uma referência intelectual para um movimento político que existe, que se reproduz ano após ano, e cada nova geração. Mas as pessoas idosas já não podem andar, já não se podem mover, já não podem sair do seu quarto, portanto, não há movimento possível. Além disso, estas pessoas muito idosas, quando têm 85, 90, 95 anos, não se vão manifestar, ao contrário de uma rapariga de 20, 25, 30 anos. É evidente que desaparecem quando entram no lar para idosos.
São colocadas na margem da sociedade e do lugar público…
São colocadas à margem, mas também desaparecem, extinguem-se, morrem bastante rapidamente. Portanto, não há movimento de pessoas muito idosas, da grande velhice. E como não há movimento, não há um público para ler um livro como “A Velhice” de Simone de Beauvoir. Uma vez que, como não há movimento, não há necessidade de se constituir uma referência para pensar e refletir, criando uma base teórica e intelectual para esse movimento, consequentemente, e aqui a questão política é muito importante, as pessoas que quando eram mais novas tinham um estatuto, e eram um sujeito político, perderam-no com a idade. Foi todo o meu ponto de partida: o que faz com que percam esse estatuto?
A minha mãe, que trabalhou durante cerca de quinze anos numa fábrica, tinha um estatuto político. Era um sujeito político, não apenas por ser uma operária, mas porque participava. Existiam sindicatos importantes, nomeadamente a CGT, na época muito próximo do Partido Comunista, que era o grande sindicato, e que ainda é um grande sindicato. Tinha muitos aderentes e simpatizantes, e organizava greves massivas e longas nas fábricas. A minha mãe participava nestes movimentos de greve, dos quais se lembrava quando lhe falava nisso. Eram greves em que se via bem a violência da repressão patronal contra o movimento operário. Numa delas, um operário que fazia o piquete de noite em frente ao portão da fábrica foi assassinado por uma milícia patronal que atirou sobre os operários. Um deles, seu colega, morreu. Foi bastante traumatizante, e mostra bem que quando falamos de repressão patronal é algo que vem de longe.
Portanto, a minha mãe era um sujeito político que participava nas greves, que votava no Partido Comunista, que era muito de esquerda. Em minha casa dizíamos: “Nós, os operários, nós, a classe operária”. Quando havia greves, a solidariedade organizava-se. A minha mãe, quando os irmãos ou irmãs do meu pai faziam greve, vinham jantar a casa dos meus pais. A minha mãe fazia grandes omeletes para todos, por solidariedade com os membros da família que estavam em greve e que, portanto, já não tinham salário. A minha mãe foi colocada em pré-reforma porque a fábrica despediu e livrou-se de muitas pessoas. A minha mãe foi colocada em pré-reforma. Viu-se sozinha e afastada desse meio coletivo que era a fábrica e dos grandes sindicatos de esquerda. Ficou isolada em casa a ver televisão, e muito rapidamente, deixou de votar na esquerda e, tal como muitas pessoas na minha família, e muitas pessoas na classe operária francesa, começou a votar na extrema-direita, em Jean-Marie Le Pen e depois Marine Le Pen.
“Regresso a Reims” tenta analisar esse fenómeno: a minha mãe continuava a ser um sujeito político, uma vez que havia decidido votar na extrema-direita. Quando ela mo dizia, eu ficava indignado. Ela explicava-me as suas razões, porque não era um ato de loucura, era uma decisão refletida, argumentada, mesmo que eu achasse, evidentemente, que esses argumentos eram absurdos. Mas, quando ela entrou no lar, ela decidia e refletia sobre [o seu voto]…
“Quando falamos de idade, temos de a cruzar com a noção de classe, porque a idade não é a mesma consoante as profissões e os meios sociais. Não temos a mesma idade quando fomos operárias numa fábrica ou quando fomos uma artista, uma intelectual ou uma professora universitária. A situação não é a mesma, como não é a mesma coisa para um homem e para uma mulher”
Acha que esse voto na extrema-direita era também uma reivindicação, continuação ou prolongamento da sua condição política? Como se não quisesse perder espaço de identificação?
Já voltarei a este ponto, se me permite. Quero apenas dizer que quando ela entrou no lar, onde muito rapidamente deixou de poder andar, a sua condição deteriorou-se extremamente rápido. Nesse momento, ela já não era um sujeito político, uma vez que estava deitada na sua cama, não conseguia sair do seu quarto, e já não conseguia andar. Portanto, é evidente que, e mais uma vez, as pessoas que perdem o seu estatuto de sujeito político por causa das suas condições — neste caso a deterioração das suas condições físicas — precisam de porta-vozes políticos. Eu quis devolver-lhe um estatuto de sujeito político, descrevendo a situação de que ela se queixava nas mensagens que me deixava no meu atendedor telefónico.
Mas para ir ao encontro das razões de voto na extrema-direita, tratava-se, claro, de afirmar um estatuto de sujeito político. Quando ela começou a votar na extrema-direita, tal como em toda a minha família, o Partido Comunista tinha praticamente desaparecido naquele momento, ou estava a desaparecer. A minha família, tal como muitas pessoas da classe operária, sentiu-se traída e desprezada pelo Partido Socialista, que dizia que já não há classe social, apenas indivíduos que pertencem todos a uma vasta classe média. E, portanto, já não há necessidade de movimentos sociais. O Partido Socialista [francês] converge para a agenda económica e política do neoliberalismo, e para uma política anti-operária, anti-popular, antissocial. Evidentemente, e sempre que havia movimentos sociais, os governos socialistas enviavam a polícia de choque para os reprimir. E se diz a pessoas que vivem as suas condições como uma condição de classe, que não há classe e que são simplesmente indivíduos, as pessoas reconstituem-se como uma classe, como um coletivo social, através de um voto noutro partido.
Hoje vemos bem que em França mais de 50% dos operários votam no partido Rassemblement National, de Marine Le Pen. É horrível pensar nisso, mas foram estas as questões que me quis colocar: como é que, sentindo-se desprezada pela esquerda, uma boa parte da classe operária começou a votar na extrema-direita? É claro que há razões económicas, as grandes fábricas de que falava fecharam, portanto, já não há 2000 trabalhadores numa grande fábrica, nem a CGT organizava greves [como aquela] …
Já não há o contrato coletivo de trabalho. Hoje são contratos individuais, por isso também se perde a força do coletivo.
Também existe isso, sim. E a grande fábrica é o armazém da Amazon, com os seus empregos temporários na logística. Não digo que a classe operária tenha desaparecido, mas há uma nova classe operária que trabalha nos armazéns.
Exceto que ela não é visível, presta-nos serviços.
É uma classe operária com muita dificuldade em se organizar, porque há uma repressão feroz que se abate sobre toda a tentativa de organização sindical. São profissões onde os trabalhadores ficam muito pouco tempo, com empregos difíceis e fisicamente muito dolorosos, onde é preciso trabalhar muito, muito rápido e com um controlo permanente dos gestos, nos quais é impossível organizarem-se sindicalmente, e, portanto, politicamente. A classe operária de hoje é completamente diferente, não tem grandes estruturas coletivas de mobilização como podiam ser os sindicatos nas fábricas, que reagiam a governos que nos conduzem para uma política de direita antissocial e anti operária. Hoje [a entrevista foi gravada a 4 Outubro 2025] há uma mobilização muito importante para protestar contra a violência económica e social que [o Presidente da República francês, Emmanuel] Macron e os seus governos tentam impor, com a destruição dos direitos dos trabalhadores. O voto na extrema-direita advém, em grande parte, do facto de a esquerda ter abandonado a classe operária e as classes populares. E as pessoas que se sentiram abandonadas e, evidentemente, desprezadas pela esquerda, reportaram-se a outro partido que lhes restituía uma dignidade. Pelo menos, é o sentimento que eles…

… No qual acreditaram que lhes restituía a dignidade.
Claro. Porque a extrema-direita disse: “Hoje somos nós o partido dos operários, das classes populares, das classes precárias, somos nós que as representamos. Já não é a esquerda.” É claro que muitas pessoas aderiram a este discurso. Lamento, deploro, mas temos de o constatar e tentar compreendê-lo, precisamente para tentar mudar as coisas. A culpa recai muito sobre o Partido Socialista francês, o Partido Trabalhista britânico…
Os Partidos Socialistas um pouco por todo o lado, diria. Em Portugal é o mesmo. Estaremos apenas um pouco atrasados…
Um pouco atrasados. Sim, é isso. E na Alemanha, é claro, vejam hoje o SPD nas sondagens, está a 13%, e o AFD, o partido de extrema-direita, está a quase 30%. Há algo a passar-se que é global. A culpa recai sobre a social-democracia, que renunciou a todo o pensamento político de esquerda. O pensamento social-democrata tornou-se um pensamento político neoliberal e económico neoliberal. Vários estudos demonstraram que um dos grandes fatores que ajuda a explicar o voto na extrema-direita é o desaparecimento dos serviços públicos. Quando em regiões inteiras já não há serviço público; fechou o hospital, fechou a escola primária…
“A minha mãe morreu muito rapidamente após a entrada no lar. Ao pensar sobre a sua morte, considerei que as mensagens que me deixava eram protestos contra as condições de vida que lhe foram impostas, e que são impostas às pessoas idosas nas nossas sociedade”
O carteiro deixa de passar, porque os correios se tornaram num negócio pouco rentável…
Sim, fecharam os correios, a estação ferroviária fechou, e o comboio que passava e parava cinco vezes por dia, agora para uma vez por dia, etc.. Fechou tudo. Para se ir ver um médico é preciso fazer 150 km, o que é caro em combustível. Tornou-se tudo muito complicado. As pessoas que vivem nestas situações, ou seja, nestas pequenas cidades privadas de todo o serviço público, sentem-se não só relegadas, mas também desprezadas, ignoradas. E a sua maneira de protestar contra esse sentimento, e contra essa situação, é votando na extrema-direita. É um voto de protesto. E os estudos de que acabei de falar mostram que quando se restabelecem os serviços públicos o voto na extrema-direita diminui imediatamente. A política que consiste em destruir e desmantelar os serviços públicos é uma política não só criminosa — porque quando se fecham hospitais públicos é criminoso —, mas é também um desastre político, uma vez que fechar o hospital público e fechar a escola, produz consequências no voto.
Sim, é trair também o Estado social, que é um pilar fundador de uma ideia de Europa.
Não posso falar pelos outros países, mas França tinha um sistema público extremamente poderoso. Havia um serviço de saúde, hospitais públicos, a educação era pública e tudo isso está a ser posto em causa pela vontade de fazer economias. Fazem-se economias na educação, suprimindo escolas, professores, ou não os renovando quando os professores se reformam; fecham-se hospitais e setores inteiros, diminuem-se camas em hospitais de pequenas cidades, porque isso custa caro. Um hospital não tem como função ganhar dinheiro, mas tratar as pessoas que precisam. Essa é uma explicação para a cólera popular que, infelizmente, se exprime por um voto na extrema-direita. E aí, a questão do serviço público, e, portanto, do Estado social, como acabou de dizer, do welfare state, é uma questão crucial. Devemos lutar pela restauração do Estado social, ou seja, dos serviços públicos, da assistência pública, do direito ao desemprego, do direito à reforma e dos direitos médicos. Esta assistência pública e este welfare state são elementos muito importantes da sociedade moderna que foram sendo, pouco a pouco, destruídos pela imposição de uma ideologia neoliberal, onde é claro não haver qualquer racionalidade económica nem política. É simplesmente uma ideologia que se constituiu contra o pensamento de esquerda e que, infelizmente, foi adotada por partidos como os partidos social-democratas que se diziam de esquerda e que traíram tudo o que definia a esquerda como sendo a esquerda.
Durante a pandemia, vivemos a importância do Estado social, e nomeadamente o enfraquecimento das condições em que esse investimento era feito, nomeadamente nos lares para idosos. Este livro, escrito durante esse período, revela o que já sabíamos, mas de que não tínhamos as imagens, ou o horror dos números. Este é um livro que aponta também para as ferramentas para combater, no imediato e individualmente, essa realidade.
Quando a minha mãe deixava mensagens dizendo-me como era maltratada, que lhe era proibido tomar banho, eu telefonava para a médica do lar onde ela estava e dizia: “A minha mãe diz-me que lhe proíbem de tomar banho”. E essa médica, muito simpática, muito competente, dizia-me: “Não, não a proibimos de tomar banho, mas a sua mãe precisa de dois auxiliares, dois homens, para a ajudar a sair da cama e levá-la à casa de banho para tomar um banho. Ora, não tenho pessoal suficiente, e isso só é possível uma vez por semana”. Compreendi algo absolutamente revoltante e insuportável. É que embora não fosse sua culpa, ela não tinha o pessoal necessário para realizar essa tarefa. Eu dizia a mim mesmo: “Como é possível que me respondam que a minha mãe só pode tomar banho uma vez por semana porque não há pessoal suficiente?”. Era um lar público. Teoricamente, o lar público deveria ter sido suficientemente financiado para que houvesse pessoal para cuidar dos residentes. E compreendi naquele momento que, quando a minha mãe tocava à noite porque tinha frio e ninguém vinha fechar a janela, era pela mesma razão: não havia pessoas suficientes para serem auxiliares ou enfermeiros. O serviço público de apoio à velhice, portanto, os lares, está subfinanciado porque custa demasiado caro.
Os relatórios oficiais chamam a isso “maus-tratos institucionais”. Não há dinheiro e, forçosamente, os residentes dos lares são maltratados, porque a enfermeira ou a auxiliar, estão sobrecarregadas, e têm de correr de um quarto para o outro. Os residentes são maltratados, mas as pessoas que trabalham, os assalariados desses lares, também são maltratados, porque o trabalho é muito difícil. Toda a gente é maltratada nestes lares porque estão subfinanciados. Perguntei-me se a minha mãe tivesse sido instalada, por mim e os meus irmãos num lar privado, teria sido muito caro, muito mais caro, mas teria sido mais bem tratada. E enquanto escrevia, saiu um livro “Les fossoyeurs: Révélations sur le système qui maltraite nos aînés” [“Os coveiros: revelações sobre um sistema que maltrata os nossos velhos”, ed. Fayard, 2022], de Victor Castanet, uma investigação jornalística dos lares privados [Ehpad, na sigla francesa, equivalentes às residências medicamente assistidas], onde o preço a pagar mensalmente num lar reservado a pessoas de famílias muito ricas no subúrbio mais rico de Paris é de 12.000 € por mês. O jornalista descreve as práticas de um grupo [Orpea], que quer lucrar com as pessoas idosas, onde retiraram o sumo de laranja, e passaram de dar dois biscoitos para darem apenas um, ou deixaram de mudar as fraldas duas vezes por dia, para fazerem economias e ganhar dinheiro à custa da situação das pessoas idosas.
“Há a necessidade de se encontrarem porta-vozes, sejam associações, sindicatos ou intelectuais, escritores, sociólogos, filósofos, que se constituam enquanto tal, para fazerem ouvir no espaço público a voz dos que já não têm voz”
Explorando a sua fragilidade.
Explorando a fragilidade dessas pessoas, sim. As famílias não o sabem, ou descobrem pouco a pouco, mas não podem fazer nada.
Também porque, imagino, as próprias pessoas terão vergonha de contar este tipo de histórias.
Exatamente. A empresa que gere estes lares — há muitas, e é igual em todo o lado — quer lucrar com as pessoas idosas para dar dividendos aos acionistas. Por isso, privam as pessoas idosas dependentes de tudo, porque estas não podem protestar, e porque é preciso ganhar dinheiro. Há, por um lado, o serviço público que está tão subfinanciado e onde a situação é catastrófica. E o setor privado, onde reina a mais obscena lei do lucro, onde as pessoas são ainda mais maltratadas do que no serviço público.
Mas o problema não é o público ou o privado, mas como é que a velhice, a grande idade, é tratada nas nossas sociedades. Como é que aqueles que perderam a sua autonomia física são tratados de forma absolutamente escandalosa porque ninguém pode protestar. Como eu disse, a minha mãe deixava-me mensagens, mas eu era o seu único destinatário. A sua mensagem não acedia ao espaço público. Consequentemente, senti aqui um dever de levar a voz da minha mãe para o espaço público e político. Ao fazê-lo, não podia apenas falar da sua passagem por esse lar, quis percorrer toda a sua vida. Por isso o livro chama-se “Vida, Velhice e Morte de Uma Mulher do Povo”. Isso significa que não é apenas a sua velhice e a sua morte, é também sobre a sua vida enquanto era empregada doméstica, a sua vida na fábrica quando era operária, a sua vida de mulher casada, já que ela sempre foi muito infeliz.

Há uma passagem bastante bonita quase no fim, onde conta que se lembra de que ela o deixava, a si e ao seu irmão, no jardim quando eram crianças, quando ela os levava para onde trabalhava nos dias em que não tinham escola. E que, aparentemente, estava persuadido de que havia um caso entre a sua mãe e alguém de uma das casas que limpava. É a descoberta de uma vida que a sua mãe tinha, apesar de tudo o que lhe acontecera.
Naquela altura ela era empregada doméstica e fazia limpezas várias vezes por semana em casas diferentes, incluindo na casa de um homem que estaria sozinho. Eu era uma criança, mas tenho a certeza de que ela tinha um caso afetivo, sexual, com ele. Ela era infeliz com seu o marido, ou seja, com o meu pai, que sempre detestou, exceto nos primeiros tempos do seu encontro e casamento. O meu pai era alguém detestável e horrível, portanto, ela o detestava com razão. Se ela teve um caso sexual com alguém na casa de quem trabalhava, não sei, nunca falámos sobre isso. Mas quando penso nisso, digo a mim mesmo que se aconteceu, é formidável, porque ela era infeliz, mas soube encontrar espaços de liberdade e de felicidade onde estava contente, se podia sentir livre e feliz. O meu pai vigiava cada um dos seus gestos, cada uma das suas palavras, e em casa, a minha mãe era infeliz. Mas, no seu ofício de empregada doméstica, soube inventar espaços de liberdade e de felicidade. Quando foi trabalhar para a fábrica, terá sido mais difícil, porque eram oito horas por dia na cadeia de produção…. Obviamente não podia ir para um canto da fábrica com… [risos]
[risos] Nunca se sabe, nunca se sabe. Nunca trabalhámos numa fábrica, por isso não sei se não existem recursos, talvez existam. Mas, em todo o caso, espero que ela o tenha conseguido, porque acho essa história maravilhosa. Mas isso é também um ponto do livro: falar da identidade ou das identidades compósitas de alguém, nomeadamente uma mulher a redescobrir o prazer após a morte do seu pai. Ela revelar-lhe-á que está apaixonada e há algo que…
… apaixonada por um homem de um lugar vizinho aquele onde ela morava. Foi dois ou três anos após a morte do meu pai. Um dia, perguntou-me: “Achas que podemos estar apaixonados na minha idade?”. Eu disse: “Sim, claro, podemos estar apaixonados em qualquer idade. Mas porque me fazes essa pergunta?”. Ela respondeu: “Ah, por acaso”. Eu perguntei-lhe: “Estás apaixonada?” e ela disse que sim. Então perguntei-lhe: “E por quem?”. Ela começou a falar-me desse homem que tinha conhecido, que a tinha ajudado a carregar as compras no parque de estacionamento do supermercado, e que morava num lugar vizinho. “Estás mesmo apaixonada?”, disse-lhe. “Sim. O que achas que devo fazer?”, disse ela. Respondi-lhe: “Não me perguntes o que deves fazer. Faz o que quiseres, o que te apetece. Não me compete a mim dizer como deves viver e como deve ser a tua vida. O essencial é que sejas feliz”. Ao que ela disse: “Ah, sim, sou feliz”. E eu: “Então, vai em frente, porque me fazes a pergunta?”. Foi aí que ela me pediu: “Não fales com os teus irmãos, porque eles ficariam furiosos”.
O Geoffroy [de Lagasnerie] acha que, na verdade, ela perguntou ao filho gay, porque ela sabe que o filho gay lhe dirá: “Faz o que quiseres, o essencial é que te sintas livre. O essencial é que sejas feliz”. Reprimi tanto — agora já não tanto, mas ainda assim… — a minha sexualidade quando era adolescente, a homofobia perseguiu-me durante toda a minha vida, e ainda hoje há ataques que, sem serem diretamente homofóbicos se baseiam numa espécie de homofobia fundamental, mesmo entre académicos que se consideram de esquerda. Toda a minha sexualidade foi constituída como algo que não se devia ser, que quando a minha mãe me fez esta pergunta, eu disse a mim mesmo: “ela foi infeliz durante toda a vida, viveu durante 55 anos com um homem que sempre detestou, se após a morte do meu pai, conheceu um homem, estava apaixonada e feliz, essa era a sua escolha, era a sua vida”. É evidente que me perguntou sabendo que eu lhe diria para fazer o que quisesse, “tens a minha bênção, mas não precisas, porque és completamente livre para fazeres o que quiseres. Não me compete a mim dizer-te o que deves ou não fazer”. Foi o que ela fez. A relação com esse homem durou bastante tempo, até à sua morte, aliás. Ela foi para um lar porque ele quis interromper a relação, não sabia lidar com as necessidades que começava a precisar de atender. Mas durou alguns anos, e estou muito feliz por ela ter podido, depois dos 80 anos, ter esses momentos de liberdade e de felicidade, com um homem, quando tinha sido uma mulher infeliz durante toda a sua vida.
“As pessoas que perdem o seu estatuto de sujeito político por causa das suas condições — neste caso a deterioração das suas condições físicas — precisam de porta-vozes políticos. Eu quis devolver-lhe um estatuto de sujeito político, descrevendo a situação de que ela se queixava nas mensagens que me deixava no meu atendedor telefónico”
Acha que isso foi também uma forma da sua mãe se reconstruir enquanto ser político, com uma espécie de poder de controlo e de opinião sobre si mesma, dado o caminho que teve de percorrer?
Se entendermos a palavra político nesse sentido, sim. Era, finalmente, livre nos seus gestos, nos seus pensamentos, em tudo o que desejava. É claro que essa liberdade é política. Mas ela não pensava nisso como algo político. Ela pensava nisso como uma espécie de felicidade amorosa e, diria eu, sexual. Não sei como era a sua vida sexual. Ela falou-me da sua felicidade. Ela, evidentemente, não me deu…
…e bastou-lhe. Isso bastou-lhe, sim.
…eu não ia pedir detalhes. Era, afinal, a sua vida. Enquanto filho, se me tivesse falado, eu teria escutado. Mas como não me deu detalhes, evidentemente não perguntei, porque teria sido indelicado. Na relação de filho para mãe, é algo que não podia ser discutido. Poderia ter falado com uma das suas amigas, em vez de com um dos seus filhos, claro. E, de facto, quando os meus irmãos souberam ficaram furiosos. Enviaram-me mensagens que diziam: “A mãe ficou louca! O pai morreu há apenas 3 anos!”. E eu respondia: “Mas ela tem mais de 80 anos! Querem que ela espere quanto tempo?”.
Acha que teriam a mesma reação se fosse o seu pai a encontrar uma nova pessoa, ou há aqui uma dimensão relacionada com o facto de ser mulher?
Sim, numa certa dimensão. Se tivesse sido o meu pai, teria sido algo normal, natural. Mas de repente descobriam que a sua mãe tinha desejos, vontades, fantasias… Que a mãe deles não era apenas a mãe deles, mas era também uma mulher sexual, apaixonada e dotada de capacidades amorosas e sexuais. Mais uma vez, não conheço os detalhes da sua sexualidade, mas eles descobriam que a sua mãe era um ser de desejo, e não apenas a dona de casa que fazia a limpeza da casa, lavava a loiça, passava a roupa, preparava as refeições. Era também uma mulher apaixonada, e isso incomodava-os. E enviavam-me mensagens a comentar: “Mas ele é mais novo do que ela”. Eu respondia-lhes: “Bem, como ela tem 80 anos, é melhor que seja mais novo do que mais velho”. Eu estava exasperado com conservadorismo moral. E dizia para mim mesmo: “Mas com que direito vêm julgar a vida da mãe deles? Será que ela interfere na vida deles?”. Fiquei bastante aborrecido. Sempre considerei os meus irmãos como imbecis. E ali, descobri que eram três imbecis.
“Reprimi tanto — agora já não tanto, mas ainda assim… — a minha sexualidade quando era adolescente, a homofobia perseguiu-me durante toda a minha vida, e ainda hoje há ataques que, sem serem diretamente homofóbicos se baseiam numa espécie de homofobia fundamental, mesmo entre académicos que se consideram de esquerda, toda a minha sexualidade foi constituída como algo que não se devia ser (…)”
Confirmou novamente que não se tinha enganado relativamente ao que já sabia sobre eles, e que esteve também presente na sua fuga do contexto familiar que descreve em “Regresso a Reims”. Ao ler este novo livro, perguntamo-nos sobre o que faremos quando for a nossa vez de nos vermos nesta situação? E é muito interessante pensar na nossa própria condição de sujeito político, novamente no sentido mais lato do termo. Qual é a nossa capacidade de distinguir entre a obrigação moral e ética de falar, e aquilo que é uma dimensão mais pessoal. Para escrever este livro, expõe a intimidade da sua mãe, mas fá-lo num plano de questionamento da emancipação do indivíduo quando é posto de lado pela sociedade. Nomeadamente quando a sociedade deveria protegê-lo, mas falha.
Sim, digamos que o meu livro tem como ponto de partida a experiência vivida pela minha mãe, e a minha experiência quando a instalámos num lar. Tudo o que conto da história da minha mãe, da sua juventude, da sua idade adulta é uma experiência pessoal e íntima, mas eu não sou um romancista, não sou um escritor. Sou um sociólogo, um filósofo, um teórico. O meu livro tem como objetivo propor conceitos e pensar estas questões e dar, como em “Regresso a Reims”, uma grelha de análise para pensar todas estas questões. Mas é claro que não se pode separar as duas coisas. Quando ia ver a minha mãe ao lar que ficava a 30 quilómetros de Reims, pensava: “Um dia serei eu nesta situação, e como é que a irei viver? O que irá acontecer?”. Não podemos evitar pensar que, um dia, a pessoa no lar seremos nós. Nem que fosse por um sentimento de egoísmo, deveríamos preocupar-nos com a situação da grande velhice nas nossas sociedades. Deveríamos preocupar-nos, nem que fosse por egoísmo, com o financiamento do sistema de saúde, do hospital, dos lares. Nem que seja por egoísmo, deveríamos dizer a nós mesmos: um dia serei eu a ser afetado.
Havia uma obrigação moral, política, social, quase afetiva, já que se tratava da minha mãe, mas também podemos dizer, que é uma reflexão que deve envolver a todos: um dia, seremos nós a ocupar essa posição que era a da minha mãe e das outras pessoas no lar. Existem todas as obrigações políticas, teóricas e morais, mas também o sentimento pessoal que nos deve guiar na exigência de reformas na maneira como as nossas sociedades gerem a velhice, e nomeadamente, da velhice dependente, quando as pessoas que perderam a sua autonomia física precisam de ajuda em cada um dos seus gestos.
“Devemos lutar pela restauração do Estado social, ou seja, dos serviços públicos, da assistência pública, do direito ao desemprego, do direito à reforma e dos direitos médicos”
No livro, os exemplos de Simone de Beauvoir ou de Norbert Elias surgem também para falar da ocultação da velhice pela filosofia, que não se preocupa com o tema. Portanto, como abordar este assunto?
Há, por um lado, a emoção e, por outro, a teoria. Eu queria, justamente, que a abordagem teórica integrasse a emoção. O livro deveria começar com um epílogo intitulado “Pode a teoria chorar?” onde refletia sobre como a teoria não pode ser neutra nem distante quando falamos de emoção, de sentimentos e de afetos. A teoria é forçosamente marcada por aquilo que tenta analisar. Portanto, deve integrar a emoção. A resposta a essa pergunta é que devemos elaborar teorias e desenvolver análises que integrem a dimensão pessoal, a dimensão da emoção, do sentimento e do afeto. Mas a minha editora estava impaciente porque eu estava, como sempre, atrasado na entrega do livro, e não tive tempo de terminar esse epílogo. Talvez volte a ele depois.
Há outro livro que me inspirou muito, do sociólogo alemão Norbert Elias, o sociólogo “A Solidão dos Moribundos” (no original alemão “Uber die Einsamkeit Sterbenden” [“A Solidão dos Moribundos nos Nossos Dias”], 1982, Suhrkamp Verlag, inédito em Portugal), onde ele procura fazer uma análise histórica e sociológica da situação das pessoas idosas, da grande velhice e da morte. É um livro muito, muito bonito que integra esta dimensão pessoal da relação com a velhice na análise histórica e sociológica, observando historicamente as transformações da relação das sociedades com a velhice. Num dos textos, ele fala da sua situação pessoal: “Compreendi o que significava envelhecer quando me encontrei a mim mesmo nesta situação”. E isso é bastante interessante, porque Simone de Beauvoir diz o mesmo. “Comecei a escrever sobre a velhice num momento em que eu própria estava a entrar na velhice, e queria compreender o que isso significava”. É claro que as coisas mudam, porque quando Simone de Beauvoir diz que está a entrar na velhice, ela tem 58 ou 59 anos. Hoje, ninguém diria que aos 58 anos se é…

Como dizia no início da nossa conversa, a idade de uma mulher não é a idade de um homem. E a consciência social de entrar numa idade em que, no fundo, ou a mulher já teve filhos, ou já não trabalha, ou o seu casamento está realizado. Isso deve também mudar a sua relação com a idade.
Claro. Mas quando eu falo de pessoas idosas, não falo de pessoas que têm 58 ou 60 anos, como falava Simone de Beauvoir em 1970, mas das que têm 85, 90, 95. Aos 58 anos, ela podia andar, escrever, ir às manifestações, participar em movimentos políticos. O que fazia, aliás.
“Deveríamos preocupar-nos com a situação da grande velhice nas nossas sociedades. Deveríamos preocupar-nos, nem que fosse por egoísmo, com o financiamento do sistema de saúde, do hospital, dos lares. Nem que seja por egoísmo, deveríamos dizer a nós mesmos: um dia serei eu a ser afetado”
Quando discutimos a idade da reforma, por exemplo, não será a mesma para todas as pessoas, nem para todas as classes sociais e ou condições profissionais. E, sobretudo, é uma discussão política e económica, nunca é uma discussão social, mesmo que a esperança de vida tenha aumentado.
Sim. Quando se é professor universitário, pode-se ensinar até aos 70 anos e até se tem vontade de continuar a ensinar até aos 70 anos. Não há vontade nenhuma em se reformar. Quer-se continuar a ter estudantes, a dar aulas. Mas se se é alguém que trabalha como operário ou operária numa fábrica, aos 70 anos não é possível. Por isso, quando o governo nos diz que as pessoas vivem mais hoje, e que é preciso adiar a idade da reforma, a quem é que isso afeta? Os estudos demonstram que 25% dos operários morrem antes de atingir a idade de 62 anos. Ou seja, até podem ter direito à reforma aos 62 anos, mas estarão mortos. É preciso ver que a idade da reforma não é apenas fixar se acontece aos 62 ou 65 anos [em França o debate sobre a idade da reforma, fixada aos 64 anos para quem nasceu antes de 1968 tem levado a sucessivas crises governativas e está na base de muitas das manifestações populares, n.d.r.].
A idade da reforma não pode ser abordada apenas a partir das profissões privilegiadas. É preciso pensar a questão a partir do trabalho difícil, do trabalho que destrói os corpos. Como digo em “Regresso a Reims”, quando via a minha mãe com dores pelo corpo todo, um corpo destruído pelo trabalho operário na cadeia de produção de uma fábrica durante 15 anos, não é o mesmo que o corpo de uma mulher da burguesia, de uma mulher das classes intelectuais. O corpo de uma operária que envelhece revela, à vista de todos, a verdade sobre as condições da existência das classes sociais.
“A maioria das pessoas que cuida dos pais são mulheres, é sobre elas que cai a responsabilidade que deveria ser da sociedade”
E, ao mesmo tempo, a ideia de modernização da sociedade para nos assegurar tempo livre, com o qual não vamos saber o que fazer, não só porque não se ganha o suficiente, como parece desenvolver-se no pressuposto da exclusão dos velhos — a digitalização dos serviços, dos públicos às caixas de supermercado; a privatização do espaço público, onde para nos podermos sentar num banco, quando os há, é preciso consumir; e não sabemos para fazer o quê se, no fundo, não se ganha o suficiente para viver a vida como gostaríamos. Não estaremos a evoluir para uma exclusão disfarçada de progresso e inovação? Será que não caminhamos para uma sociedade onde os velhos não terão espaço?
É certo que o lar de idosos é um espaço de relegação, de afastamento e de invisibilização das pessoas idosas. Como disse, o lar público onde os meus irmãos e eu instalámos a nossa mãe ficava a 30 quilómetros a norte de Reims, a sede do município. É como se fosse preciso afastar as pessoas do centro. Decorre também do preço do terreno e dos edifícios, mais baratos do que nas cidades. Há esta invisibilização, mas há também o facto de que ninguém querer ver as pessoas idosas nos nossos centros. Há um certo idadismo nas nossas sociedades, não apenas individual. Este é um problema que coloco no meu livro: qual é a nossa própria relação com as pessoas idosas? Mas é também um problema filosófico.
A filosofia e a teoria em geral não se interessaram muito pela velhice. Há, claro, algumas exceções, Beauvoir e Elias são disso exemplos. Ou mesmo Jean-Paul Sartre, em “O Ser e o Nada” [“L’être et le néant”, 1943; a edição portuguesa mais recente é de 2003, na Edições 70]. Mas Maurice Merleau-Ponty, de quem Beauvoir era próxima, no seu livro “Fenomenologia da Percepção” [“La Phénoménologie de la perception”, 1945, inédito em Portugal], descreve a existência humana como a capacidade de se projetar no futuro e de se deslocar no espaço. Quando o descobri, fiquei muito impressionado. Nunca tinha pensado nesta questão antes de escrever sobre ela.
É uma definição da existência humana que exclui uma pessoa como a minha mãe no lar, uma vez que a minha mãe já não se podia projetar no futuro, pois já não podia sair do seu quarto, nem sequer se deslocar no espaço, pois já não se podia levantar da sua cama. Mesmo no espaço limitado do seu quarto no lar, ela já não se podia deslocar. Portanto, todos os conceitos da filosofia, seja qual for a tendência dessa filosofia, baseiam-se numa espécie de exclusão fundamental da velhice. Eu quis interrogar estas tradições filosóficas que, nos seus primados, não atribuem um lugar ao corpo das pessoas idosas e muito idosas. É por isso que admiro alguém como Simone de Beauvoir, que, estando inscrita nessa tradição filosófica teve, digamos, a criatividade intelectual necessária, a independência de espírito para constituir a categoria “as pessoas idosas”. Em francês, diz-se les vieillards [os velhos], mas é uma palavra que hoje já não se usaria. Podem-se criticar muitas coisas em Simone de Beauvoir, mas é alguém que admiro muito, porque era inventiva intelectual e politicamente. Em 1949, com “O Segundo Sexo”, constituiu a “as mulheres”, não só enquanto categoria social, mas política. E em 1970, com “A Velhice”, as pessoas idosas, e as muito idosas, foram igualmente constituídas como categoria social e política. Não eram apenas indivíduos que envelheciam, tornaram-se uma categoria social e uma categoria política, portanto, uma categoria filosófica. Ela dá um lugar na filosofia, na teoria, a esta categoria, ao constituir as pessoas idosas como uma categoria filosófica e política. Este seu livro deveria ser uma referência para todos os leitores, tão importante para pensar os problemas das nossas sociedades como foi o “O Segundo Sexo”.

Conta que a sua mãe morreu sete semanas após ter dado entrada no lar, muito pouco tempo que uma enfermeira haverá de lhe explicar como sendo síndrome do deslizamento [syndrome du glissement, em francês], algo que imaginaríamos existir, mas para o qual eu, por exemplo, não sabia que havia um termo para o descrever. Refere-se a uma desistência da pessoa, ao mesmo tempo sendo um gesto, se calhar o último, de imensa liberdade e de reivindicação, na continuação do ser político, quando dele se está consciente.
Claro. Mas mesmo quando não se está consciente, trata-se de decidir por si mesmo: já não quero comer, já não quero levantar-me. E, portanto, há uma espécie de consciência, mesmo que esteja para lá de toda a possibilidade de alguém se reivindicar ainda como indivíduo.
Quando instalámos a nossa mãe no lar, perguntava-me: “durante quanto tempo a vou visitar? Uma vez por mês, não é suficiente. Três vezes por mês é muito, porque eu moro em Paris.” Procurava refletir sobre quantas vezes a poderia visitar, e durante quantos anos, se dois, três, quatro ou mais. E depois ela morreu passadas 7 semanas. Foi a médica do lar que mo explicou: “Sim, é a síndrome do deslizamento. Ela já não queria comer, já não queria beber, já não queria falar”. Evidentemente, se voltarmos à definição da existência humana como podendo projetar-se no futuro e no espaço, a minha mãe estava completamente desesperada por já não poder sair da cama. Ela sabia que a situação não melhoraria e sentia-se como uma prisioneira do lar, no quarto naquele lar, na sua cama. E, portanto, decidiu deixar-se morrer, recusando-se a fazer todos os gestos que a pudessem ter mantido viva, ou seja, comer, beber e falar.
Depois de falar com a médica do lar, informei-me sobre o que era a síndrome do deslizamento. Fiz pesquisas na internet e descobri que haviam sido geriatras, médicos e psiquiatras franceses a elaborar esta noção. Os psiquiatras que tinham elaborado esta noção diziam que era uma forma de suicídio inconsciente. “Mas por que dizem eles inconsciente?”, pensei. Acredito que a minha mãe tivesse perfeitamente consciência de que, para ela, tinha acabado. Uma vez que o suicídio assistido não é permitido em França, e ela não podia pedir a alguém para lhe dar uma injeção, como acontece num suicídio com assistência médica, a única maneira para se suicidar era parar de comer.
Quando penso nisso, e na coragem e determinação consideráveis que isso deve exigir…. fico muito emocionado. Significa que, durante quinze dias, se recusou a comer e a beber. Estas formas de suicídio são corajosas, difíceis, dolorosas. E é por isso que sou, claro, partidário do direito à eutanásia, ao suicídio assistido, com todos os controlos médicos, sociais, etc., possíveis e imagináveis. Nunca falei sobre isso com a minha mãe, e agora lamento-o. Mas, sem dúvida, que ela me teria dito: “Sim, prefiro morrer agora”. Eu não teria podido fazer nada, porque se eu a tivesse ajudado a morrer hoje, não estaríamos a falar. Eu estaria na prisão, visto que, em França, mesmo que seja a pessoa que quer morrer a pedir-lho, que lho suplique, que lho implore, quem ajudar é processado, condenado e preso. Portanto, a questão não se colocava. Mas há aqui uma questão ética, moral e legal muito importante: podemos imaginar uma sociedade na qual pessoas que querem acabar com a sua existência podem pedir a alguém para as ajudar a morrer? Ao mesmo tempo, é fácil [dizer isso]. Se a minha mãe me tivesse dito: “Quero morrer, ajuda-me”…[pausa]
E sobretudo, e sobretudo se isso é o resultado de uma reflexão… Alguém que está num lar público, onde deveria ser acompanhada e, no fundo, apercebe-se de que não tem essas condições básicas de assistência asseguradas.
Tem razão em insistir neste ponto. Se tivesse havido mais pessoal para cuidar da minha mãe diariamente, a cada instante em que ela precisasse, talvez ela não se tivesse deixado morrer. Também aqui a decisão de morrer, de acabar com a sua existência, está ligada às condições que são oferecidas às pessoas idosas no lar. Este livro já foi editado em vários países [Alemanha, Argentina, Áustria, Brasil, Eslovénia, Eslováquia, Estados Unidos da América, Grécia, Holanda, Inglaterra, Itália, Polónia, Suécia, Turquia], mas na Polónia, onde até a esquerda cultural está bastante ligada a valores tradicionais, perguntavam-me em todas as entrevistas: “Porque é que não levou a sua mãe para sua casa?”. Eu respondi: primeiro, porque a minha casa é um apartamento de 50 m², com dois quartos, num 3.º andar sem elevador. Como é que eu podia instalar aí a minha mãe em dois quartos e cuidar dela? Significava que já não poderia sair, nem que fosse para ir comprar um livro, fazer compras, para fazer o meu trabalho, ou seja, ir dar uma conferência na Áustria, na Grécia, etc… A minha vida ficaria comprometida. Mas, de qualquer forma, é algo que não se pode pedir às pessoas. É demasiado pesado, demasiado complicado, demasiado difícil. Admito humildemente que me era impossível.
“O livro chama-se “Vida, Velhice e Morte de Uma Mulher do Povo”. Isso significa que não é apenas a sua velhice e a sua morte, é também sobre a sua vida enquanto era empregada doméstica, a sua vida na fábrica quando era operária, a sua vida de mulher casada, já que ela sempre foi muito infeliz”
Mas é também por isso que temos o Estado social.
Eu dizia nessas entrevistas: “A vossa questão é muito conservadora. Porque remetem a responsabilidade para os indivíduos. São responsabilidades individuais: o filho que deve cuidar da sua mãe, em vez de remeter a responsabilidade para os poderes públicos, para o Estado, para os governos que deveriam financiar o serviço público”. E, sobretudo, como eram muitas vezes mulheres que me faziam esta pergunta, eu acrescentava: “O vosso ponto de vista é muito antifeminista”. A maioria das pessoas que cuida dos pais são mulheres, é sobre elas que cai a responsabilidade que deveria ser da sociedade. Fazer cair sobre as mulheres de 50 ou 60 anos a responsabilidade de cuidar da mãe de 80 ou 90 anos…
…da sogra, às vezes.
…ou da sogra, sim. Atribuem às mulheres um papel que implica perderem a sua liberdade para cuidarem da mãe, do pai ou de um sogro. Esta é uma questão muito mais vasta, e que é preciso ser formulada a partir de alternativas que envolvam urbanistas, arquitetos, e planeamento de cidade e de sociedade, que envolvam os mais jovens na companhia aos mais velhos, não para assegurar os cuidados médicos ou as tarefas domésticas, mas simplesmente fazer companhia…. Há quem pense nestas questões, mas toda a gente acha essas ideias formidáveis, que depois são guardadas numa gaveta e totalmente esquecidas. Seria preciso uma reflexão coletiva, que eu desejo que se desenvolva, que se tornem projetos políticos e projetos sociais. E temos de lutar por isso.

