Entrevista. Documentário “As Fado Bicha” chega hoje aos cinemas “para ser visto por todas as pessoas”

por Lusa,    17 Abril, 2025
Entrevista. Documentário “As Fado Bicha” chega hoje aos cinemas “para ser visto por todas as pessoas”
DR

A realizadora Justine Lemahieu passou quatro anos a acompanhar as Fado Bicha, em palco e nos bastidores, e o resultado chega hoje às salas de cinema, num documentário construído “para ser visto por todas as pessoas”.

A experiência de ver as Fado Bicha ao vivo teve um “impacto forte” em Justine Lemahieu. “Fiquei muito comovida com a beleza e o talento delas. Estava à frente de duas artistas muito potentes, que estavam a mexer com barreiras e linhas de poder”, recordou em declarações à Lusa.

Ao tomar consciência de que o trabalho de Lila Tiago e João Caçador “era de facto muito importante”, sentiu “uma grande vontade de lhe dar visibilidade”.

Além disso, achou que a dupla a podia “fazer crescer” no que diz respeito a questões ligadas com os padrões de género, e interrogações que podia ter relativamente à sua condição de mulher.

“Elas estavam a ter um papel político em relação a estas questões. Questões sobre as quais também era importante para mim refletir, e partilhar com o público”, disse.

No início de 2019, decidiu contactar Lila Tiago e João Caçador para lhes apresentar o projeto, tendo a cantora inicialmente mostrado alguma resistência.

“O João é que insistiu para que aceitássemos encontrar-nos com ela. Por um lado, houve em mim um certo lugar de humildade – isto aconteceu quando o projeto era muito recente, pensava que não fazia sentido haver já alguém a seguir-nos para fazer um filme sobre nós -, por outro lado também desconforto, de haver alguém sempre a filmar-nos”, recordou.

No primeiro encontro, Lila e João ficaram “com uma ótima impressão” da realizadora e acharam “curioso e interessante que fosse uma mulher que não nasceu e cresceu em Portugal” a ter interesse em fazer um filme sobre as Fado Bicha.

O projeto Fado Bicha surgiu em 2017 e o primeiro ‘single’, “Namorico do André”, foi divulgado dois anos depois. O ‘cartão-de-visita’ da dupla apresenta bem o projeto que, através do fado, procura dar visibilidade às histórias da comunidade LGBTQIA+ (Lésbica, Gay, Bissexual, Trans, Queer, Intersexo, Assexual e todas as diversas possibilidades de orientação sexual e identificação de género que existam).

Trata-se de uma adaptação de um conhecido fado – “Namorico da Rita”, imortalizado na voz de Amália Rodrigues -, mas no qual as Fado Bicha cantam sobre o ‘namorico’ “entre o André que é peixeiro e o Chico que é pescador”.

Ao longo de quatro anos, Justine Lemahieu foi acompanhando Lila e João em concertos, tanto em palco como nos camarins, mas também em cenários mais pessoais.

“A Justine teve sempre uma postura, além de discreta e suave, atenta, curiosa, disponível para ouvir e entender”, referiu Lila, lembrando que ao longo do tempo a presença da realizadora “foi-se tornando cada vez mais invisível”.

Embora não seja percetível para quem vê o filme, Lila consegue perceber, porque se lembra de todos os momentos, a partir de quando se esqueceu que Justine estava a filmar.

“Isso tem que ver com a competência dela enquanto documentarista, cineasta, mas também com a relação que desenvolvemos e a minha tranquilidade em saber que aquele material ia ser tratado de uma forma muito cuidada; também em saber para onde nos encaminhávamos, que género de obra é que ela queria fazer sobre nós e aquilo que eu queria”, disse.

As filmagens aconteceram entre 2019 e 2023, com uma pandemia pelo meio, e ao longo desse tempo Justine Lemahieu acumulou 60 horas de filmagens.

Até chegar ao resultado final, com quase uma hora e meia, a realizadora foi partilhando o trabalho com as artistas.

“A relação foi-se construindo também através de visionamentos. É muito difícil retratar pessoas, conseguir ver e perceber melhor as pessoas, o que estão a dizer-me. Foi importante partilhar, mostrar. Montei o filme sozinha, mas sempre com o olhar da Lila e do João a guiar-me nas histórias que eu fazia”, contou.

Criar “As Fado Bicha” foi para Justine Lemahieu “uma experiência muito transformadora”, que a levou a regressar à universidade, para estudar Antropologia, e a escrever uma tese de mestrado sobre o processo do filme.

“Senti que é muito importante educar-me sobre as questões de género e também aprender sobre a história do Fado. Fui aprendendo muito através deste filme”, partilhou.

Depois de ter sido apresentado em três festivais (IndieLisboa e Queer Lisboa, em Portugal, e Festival Internacional de Documentários de Salónica, na Grécia), o filme “As Fado Bicha” tem agora estreia comercial e a realizadora tem um objetivo “muito claro” para ele: “chegar a um público o mais vasto possível”.

“Foi nesse sentido que construi o filme, para ver visto por todas as pessoas”, afirmou.

Lila gostava que o filme “pudesse chegar a pessoas que à partida não estariam muito para aí viradas”, mas “que de repente se emocionam com o que veem e sentem que há uma ponte de Humanidade em comum”.

“São duas pessoas queer a falar sobre a sua infância, a violência que sofreram, as famílias, sobre amizade, sobre amor. Cria uma possibilidade de empatia muito forte e isso é a grande estratégia, o grande recurso e a grande beleza de um filme como este. Possibilitar a uma pessoa que não tem qualquer relação com a comunidade, o pensamento, as pessoas, que acha que não conhece pessoas queer, de poder emocionar-se, comover-se, com as vidas de duas pessoas queer, que são portuguesas”, afirmou.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.