Entrevista. Duarte Coimbra: “O cinema tem um poder demasiado grande, que as pessoas às vezes menosprezam”

por Sofia Matos Silva,    14 Agosto, 2019
Entrevista. Duarte Coimbra: “O cinema tem um poder demasiado grande, que as pessoas às vezes menosprezam”
Duarte Coimbra. Fotografia de Sofia Matos Silva / CCA

Duarte Coimbra é uma das pérolas a nascer no cinema português. Com apenas 22 anos, já participou em diversos projetos, mas o seu filme de final de curso é a sua maior obra prima até ao momento. Amor, Avenidas Novas tem 21 minutos e presença em mais de 20 festivais de cinema – europeus e não só. De momento, o realizador e argumentista está a trabalhar em dois projetos: O Filme Feliz, a sua segunda curta, e A Tempestade do Jacarandá, um filme com produção luso-brasileira.

Como nasceu Amor, Avenidas Novas?
Nasceu na necessidade de eu estar a acabar a Escola de Cinema e ter de ter um projeto. Tínhamos de preparar um filme e, na altura, estávamos a desenvolver um projeto, mas aquilo estava a deixar-nos um bocadinho frustrados e houve uma tarde em que estávamos todos juntos… nós trabalhamos com toda a gente do meu ano; cada um está repartido pela sua área, e temos de trabalhar todos juntos. Mas o núcleo central do filme era eu, o produtor e o argumentista – estávamos os três a escrever o argumento – mais o diretor de fotografia, a assistente de realização e a diretora de som, e juntávamo-nos regularmente para discutir o que era o filme e para pensar o filme. E houve uma altura em que nós estávamos então a preparar essa história que nos estava a deixar um bocadinho frustrados e o produtor lembrou-se: “há uns tempos tu contaste-me uma história sobre um colchão”. E depois, de repente, fiquei super entusiasmado com aquela ideia do colchão. Mandámos o outro filme que estávamos a preparar para o lixo e começámos de novo, com essa história dos colchões, porque, de repente, as pessoas estavam a ter assim uma reação efusiva. E acho que essa era verdadeiramente a história que sinto que conseguia contar naquele momento.

Foi uma curta que foi inteiramente planeada ou ias adaptando à medida que ias filmando?
Não, acho que planeámos tudo muito bem. Claro que houve momentos na rodagem, e há uma sequência do filme a meio que é assim meio mais… não sei se se pode dizer documental, mas em que o filme de repente deixa de ser uma narrativa em que tu estás a seguir as personagens e há assim um momento em que fazemos um retrato da cidade muito rápido. E esse retrato só foi possível porque houve um dia de rodagem em que acabámos mais cedo e eu disse “olha, vamos reunir uma equipa pequena de duas pessoas de imagem e uma de som, eu e a assistente de realização” e fomos assim cinco pessoas filmar o que se estava a passar nesse preciso momento, sem grande planeamento. Mas acho que, em geral, o filme é muito planeado. Eu sinto que os riscos que o filme toma são coisas muito mais na pós-produção, na maneira como o filme está montado e na maneira como está planificado. Mas no ato de filmar acho que não houve assim grandes loucuras.

Quais foram os principais desafios que encontraste?
Se calhar, como o filme é tão pessoal… o filme não é de todo biográfico, mas como acho que tem um fundamento muito pessoal. O filme começa com uma série de fotografias dos meus pais – que são realmente os meus pais – e ouvem-se umas cartas que eles escrevem um ao outro. Aquelas cartas não existem, fui eu que as escrevi, mas que são baseadas em coisas que eu sei que aconteceram na vida deles naquela altura. Por isso, sim, para mim, fazer este filme acho que o desafio era muito mais interior, que era, quais são os limites da maneira como este personagem se pode refletir na minha pessoa e vice-versa. Porque acho que é uma coisa que tu encontras muito facilmente no cinema português, esta relação entre as pessoas que estão a filmar e as imagens que são filmadas. E isso era uma coisa que me preocupava. Depois, em relação a coisas logísticas, ou dificuldades que encontrei no ato de filmar ou no ato de trabalhar o filme, acho que não. Acho que foi tudo muito orgânico, porque encontrei, de facto, este grupo de pessoas que rapidamente entendeu o que é que eu queria dizer com o filme e me ajudou a que eu fosse direto ao assunto, a que não andasse desconcentrado.

Still de Amor, Avenidas Novas.

Estás a começar a tua carreira, mas, ao mesmo tempo, já percorreste vários festivais. Como vês isto tudo?
Eu acho que é tudo muito bom e muito mau ao mesmo tempo. É muito bom porque, por exemplo, posso vir a festivais como este; só fiz uma curta na Escola e, de repente, hoje à tarde vou falar num painel – que é sobre uma espécie de uma nova vaga portuguesa, o que eu acho que é uma coisa muito confusa e que não sei se é bem verdade ou não. Ou seja, houve uma série de coisas que aconteceram na minha vida por causa do filme que são ótimas. De repente, houve uma série de oportunidades e de pessoas que estavam interessadas em trabalhar comigo que eu acho que é muito bom. Mas, ao mesmo tempo, acho que é um grande choque, tipo, o filme que tu fazes na Escola, que é um filme que nem é feito dentro do circuito normal, não é, não me candidatei ao ICA, ganhei um fundo e fiz um filme… eu fiz o filme porque, na verdade, precisava de o fazer para conseguir passar de ano – se bem que, depois, o filme cresceu e passou a ser muito mais do que isso. Já não queria saber da nota, queria saber do filme que estava a fazer. Mas acaba por ser um bocadinho vertiginosa esta ideia de o filme entra não sei onde… tipo, houve uma altura depois do hype todo que o filme teve e de ser tão bem recebido em vários sítios dentro do país e fora do país, que eu pensei “bem, não sei se vou conseguir continuar a fazer cinema, isto é demasiado overwhelming para mim”. Mas acho que depois entra a parte em que tu pensas que, de facto, começas a ver mais as partes boas e menos as más. Mas sim, acho que é sempre bom haver pessoas interessadas no que tu estás a fazer. E, nesse sentido, foi bom o que aconteceu ao filme.
Mais por curiosidade: que nota é que te deram?
Na Escola? No Seminário de Produção de Filmes, que é a disciplina onde tu és avaliado pelo filme que fizeste, eu e uma série de amigos meus tivemos 11 em 20. Porque nós tínhamos um professor… não sei se isto é bom material de entrevista, mas é engraçado. Eu e um amigo meu, o David Pinheiro Vicente – também ganhou no Curtas, a Competição Nacional – fizemos o filme na mesma semana, éramos da mesma turma, e o filme dele foi selecionado para as Curtas de Berlim e o meu foi depois selecionado para a Semana da Crítica em Cannes. E nós fomos as pessoas que tivemos a pior nota, porque tivemos um professor assim mais… não sei bem como hei de descrever esta pessoa; eu acho que ele não tem bem noção do que é o cinema, do que é realmente fazer filmes. Ele ficava muito transtornado com coisas que nós achávamos bastante normais e, por isso, fomos mal cotados. Mas, sei lá, há uma altura em que tu deixas… eu, pelo menos, houve uma altura na Escola de Cinema em que deixei um bocadinho de querer saber… não é de querer saber, mas comecei a perceber que as notas não eram realmente a razão pela qual eu estava lá.

Já trabalhaste noutros projetos antes. Queres falar um pouco sobre eles?
Falando desta coisa da Escola e do que é que a Escola me deu. Eu imagino que as pessoas que andem no técnico ou que estudem Direito ou Medicina vão à escola para, de facto, ter conhecimentos e para procurar uma carreira, para serem advogados, para serem médicos. Eu acho que a Escola de Cinema… eu não consigo dizer agora coisas que aprendi lá; se tu me perguntares matérias que demos na Escola de Cinema, eu acho que não te consigo dizer. Mas, para mim, acho que a Escola foi muito mais importante no sentido em que me deu o espaço e o tempo para eu encontrar uma série de pessoas que continuam a ser muito importantes na maneira como eu trabalho, no que aprendi na maneira como elas trabalham. Acho que tem muito a ver com o facto de na Escola de Cinema nós termos horários muito restritos e passarmos quase 24 sobre 24 horas com as mesmas pessoas. Há alturas em que eu via mais as pessoas com quem estudava do que as pessoas com quem vivia, os meus pais ou a minha irmã, e essa dinâmica de, tu sais da Escola, vais ao cinema, vais à Cinemateca ver um filme, discutes o filme; desse filme, outra pessoa traz outro filme para veres, discutimos sobre o novo disco daquela banda. Há assim uma dinâmica de partilha de referências e de partilha de experiências – eu acho que a Escola é muito importante nesse sentido, foi muito importante para mim. E pronto, nesse sentido, aparecem uma série de pessoas com quem eu me relaciono profissionalmente, mas que, acima de tudo, com quem me relaciono pessoalmente. São meus amigos e todos eles têm a ambição e as ideias para serem realizadores. Por isso, trabalhei numa série de filmes. Fizemos, recentemente, um filme do rapaz que produziu a minha curta, que é o Pedro Ramalhete. Há assim esta coisa: toda a gente tem a necessidade de filmar e toda a gente tem o espaço para filmar. E é esta dinâmica de, ele ajuda-me no meu filme e eu ajudo-o no filme dele, e há assim uma partilha.

Sempre quiseste trabalhar no mundo do cinema? Qual foi o momento em que percebeste que era isto que gostavas de fazer, que querias ser realizador?
Eu acho que percebi que queria ser realizador de cinema quando tinha à volta de 13, 14 anos. Foi uma altura em que eu andava numa escola e havia um professor de história com quem eu me relacionava muito – gostava imenso da maneira como ele dava as aulas – e ele criou um clube de cinema em que mostrava filmes. Eu comecei a ver os filmes que ele passava lá, que eram filmes do Chaplin, alguns clássicos com o Jimmy Stewart ou filmes do Woody Allen, do Tim Burton, que na altura foram realizadores que me disseram muito e que de facto me incentivaram. E desses realizadores eu fui à procura de outros realizadores de que eles gostavam ou que tinham alguma coisa a ver com eles, e foi assim o meu crescimento. E isto calhou também exatamente ao mesmo tempo da primeira vez que eu me apaixonei na vida, e o pai da rapariga com quem eu namorei também era assim um cinéfilo e deixava-me levar os filmes que eu quisesse da coleção dele. Foi assim uma altura em que eu tive tempo para ver e para experimentar, e para perceber quais é que eram os meus gostos.
Já disseste que o cinema surgiu na tua vida ao mesmo tempo que o amor.
Sim, e é esta a história. De repente, o cinema apareceu e, curiosamente, foi também a primeira vez que me apaixonei. Parece que houve assim uma ligação mística entre as duas coisas.

Poster de Amor, Avenidas Novas.

Quais são as tuas principais influências?
Tenho andado a pensar que, se calhar, eu não tenho grandes influências. Eu gosto muito de ver cinema, mas não acho que tenha muitas influências cinematográficas e todas elas são assim muito diretas e muito próximas de mim, porque eu gosto mesmo muito do cinema português. Gosto muito de realizadores portugueses; podemos falar desde o Manoel de Oliveira, do César Monteiro e, mais recentemente, do João Nicolau, do Miguel Gomes ou do João Pedro Rodrigues. Mas, ao mesmo tempo, existem coisas estrangeiras de que eu gosto muito, como do Nanni Moretti, e depois assim uma série de filmes pontuais que vão aparecendo nos últimos anos. Mas também acho que… estava a discutir isto assim em jeito de piada com uma amiga minha no outro dia. Ela é música e eu estava a dizer que, se calhar, a maneira como eu faço filmes ou construo uma ideia é mais ou menos como ela constrói uma canção. É uma coisa de como trabalhar o verso e o refrão, e estas ideias que parecem ser tão diferentes umas das outras, mas que numa canção fazem todo o sentido… tenho sempre a música nas minhas ideias e ouvir um disco consegue inspirar-me tanto como ver um filme.
Como as Pega Monstro.
Sim. Entre outras coisas. Ultimamente tenho andado muito fixado com os Talking Heads, também, que é uma banda que eu descobri recentemente, há cerca de um ano. É assim uma série de referências que tu do nada percebes que estás a ‘roubar’ muito mais à música do que ao cinema. Acho que isso pode ser interessante.

Regressando a Amor, Avenidas Novas: já disseste que o vês como uma carta de amor ao cinema. Porquê?
As coisas que eu digo [risos]. Na altura, eu vi um filme quando estava na Escola de Cinema, que se chama Táxi, que é de um realizador iraniano chamado Jafar Panahi (ele tem um filme novo agora, que também é muito bom). E há uma coisa específica nesse filme; o filme trata de um realizador que, devido ao país onde vive, foi proibido de filmar porque não cumpria uma série de didascálias que o governo exigia. Era censurado na maneira como a mulher é exposta nos filmes, na maneira como o Irão é exposto no filme, etc, uma série de alíneas. E ele faz um filme sozinho num táxi em que, aparentemente, põe uma câmara e vai filmando as pessoas que entram no táxi – e o próprio realizador é o condutor. Quando vi esse filme e estava no segundo ano da Escola de Cinema, eu tinha a sensação que, acima de tudo, aquele filme para mim – é uma pessoa que, no meio da confusão que é o país dele, na nuvem em que o colocaram, nunca mais vai poder filmar -, ele consegue fazer uma coisa tão sinceramente bela que se torna, em certo sentido, numa homenagem ao próprio cinema, às próprias possibilidades do cinema. E isso é uma coisa que eu espero que esteja no Amor, Avenidas Novas e eu espero que esteja em todos os filmes que eu venha a fazer a partir de agora. Porque eu acho que, para mim, no meio da confusão que hoje em dia o mundo se está a tornar politicamente, e todas as questões climatéricas, acho que a única maneira de lutar contra isso – ou de furar esta nuvem negra que nos está constantemente a ser criada – é através do cinema e é através da arte. Acho que as soluções… não sei se esta é uma ideia um bocadinho idílica, mas acho que as soluções são estas. Por isso sim, acho que o cinema tem um poder demasiado grande, que as pessoas às vezes menosprezam. Eu estou a falar de cinema a sério, eu também gosto muito dos Vingadores e também vou ver os Vingadores ao cinema, mas é isto. É um sítio onde eu encontro de facto essa energia renovadora; eu saio de um filme do Oliveira e, todas as forças que eu achava que tinha perdido para filmar e que nunca mais ia filmar, eu reencontro – porque um realizador fez um filme que me deu umas ganas enormes de filmar, e eu agora só consigo pensar em filmar. Eu acho que é essa energia, essa carta de amor ao cinema, é ter essa vibração quase violenta, de punho fechado.

 

Brincas um pouco com o som no filme. Qual é o papel do som e da imagem para ti?
Que pergunta complexa! Na Escola de Cinema eu andei em realização e som. E, na verdade, uma das coisas que eu acho que o Amor, Avenidas Novas tem é, eu gosto muito da imagem do filme, mas acho que a imagem… uma das coisas que eu gosto no filme é que acho que é um pouco precário, tu sentes que há assim uma cena de… Por acaso, eu estava a falar há bocado com um realizador que também vai participar no painel – ele viu o filme agora de manhã – e ele dizia-me “pá, o desenho de som parece que está mal feito, que está mal trabalhado”. E eu, a mim interessa-me essa coisa do cinema… é muito como quando eu ouço uma música punk e a maneira como quando eu ouço, por exemplo, as Pega Monstro, já que é uma banda que já falamos, uma das coisas que me atrai ali é verdadeiramente tu sentires que aquilo é feito por pessoas. Percebes que há um lado pessoal muito forte e que, se calhar, a maneira como ela passou de um acorde para outro, tu sentes que não foi perfeita, e sentes que há uma corda que se solta, e esse som, para mim, é um som mágico, porque eu senti que há ali uma fisicalidade na maneira como ela toca. E isso também me interessa muito no cinema: a mim não me interessa fazer filmes tecnicamente perfeitos, ou que tenham uma imagem incrível. A mim interessa-me conquistar as pessoas muito mais, acho que o cinema tem possibilidades muito maiores do que só fazer planos bonitos ou só trabalhar o som de uma maneira hermética, que fica ali tudo fechadinho. Por isso, sim, o som e a imagem são só materiais para eu experimentar e, de facto trazer essa coisa da fisicalidade. No cinema não sei se se pode chamar fisicalidade – a fisicalidade está mais ligada à música – não é, na maneira como as pessoas tocam, e tu sentes muito quando ouves um disco. Existem certos discos, sei lá, o Nevermind dos Nirvana, enquanto estou a ouvir o disco, eu estou a sentir o gajo que está a tocar bateria e estou a sentir a maneira como ele toca e é uma espécie de… sim, essa fisicalidade. E acho que no cinema interessa-me se calhar mais essa coisa, tu sentires que aquilo foi feito por pessoas. E que, da mesma maneira que o ser humano é imperfeito, existe uma imperfeição qualquer que me atrai muito, uma empatia que eu tenho quando sinto que a ideia que este realizador teve para esta cena é muito maior do que os veículos que ele arranjou para a contar. E, para mim, a imagem e o som têm este papel, que é, eu só quero experimentar, quero brincar, quero que o som desapareça e volte a aparecer, que existam sons que não estão lá e que são manipulações que eu ponho quando estou a trabalhar o filme na pós-produção. Acho que no Amor, Avenidas Novas houve mais tempo para explorar isto no sentido do som do que da imagem. Porque a imagem esteve muito ligada, lá está, à rodagem, que foi naquela altura na Escola, e a pós-produção do som foi feita quase um ano depois. Eu apresentei o filme na escola em junho de 2017 e depois o filme esteve parado no meu disco até janeiro de 2018, que foi quando eu peguei e fomos remontar o filme. Houve uma nova correção de cor, mas depois tivemos imenso tempo para fazer o som do filme. Então era pensar de que maneira é que nós podíamos brincar e que sons é que podiam… e ter tempo para, “hoje o programa é ir àquela lagoa em Sintra gravar o som daquele riachinho para vir por no filme”. E houve tempo para experimentar e para perceber que sons é que faziam sentido e para fazer essa tal construção. A imagem e o som são só os materiais do cinema com os quais eu me divirto, a brincar, a moldar, não é? Como uma criança com plasticina.

O que podes dizer sobre O Filme Feliz?
Como é que tu sabes do Filme Feliz? Quanto já se sabe do Filme Feliz [risos]? O que é que eu posso dizer sobre O Filme Feliz? Bem, agora apanhaste-me desprevenido, porque eu estão tão a trabalhar nesse filme, agora ainda é difícil falar sobre ele – não tenho a distância que tenho do Avenidas, ainda. Mas pronto, acho que é um filme que surge muito duma espécie de ressaca do Amor, Avenidas Novas. Desta vez, há um personagem principal, mas, acima de tudo, há assim mais personagens à volta dele e pode-se falar, se calhar, numa espécie de um personagem coletivo, daquelas quatro pessoas que protagonizam o filme, apesar de haver claramente um que se chega mais à frente. Talvez seja um filme menos romântico do que o Amor, Avenidas Novas. Não é uma história de amor, não tem nada a ver com comédia romântica ou todo um pastiche que eu queria trabalhar no Avenidas; desta vez, acho que tem muito mais a ver com a minha observação sobre as pessoas que estão à minha volta a começar a fazer cinema e o que é que significa fazer cinema em Portugal e todo esse processo. Todas essas frustrações que coincidem com o momento em que tu saias da Escola de Cinema e deixas de ser um adolescente e passas a ser um adulto. De repente, começas a ter responsabilidades de adulto. Acho que é um filme que eu gostava que tivesse todas estas tensões. Vamos ver.

E sobre A Tempestade de Jacarandá?
Sobre A Tempestade de Jacarandá: é um projeto de longa metragem, que eu já estou a desenvolver há um ano. É um filme mágico, em que a magia impera e é sobre as potencialidades românticas e sociais do jacarandá, da flor do jacarandá e da planta em si. Existe um fenómeno muito interessante em Lisboa… quer dizer, eu estive em Guimarães há pouco tempo e também vi jacarandás. Foi uma planta que foi trazido do Brasil, da América do Sul, e que existe em vários pontos do nosso país. É interessante porque é das únicas árvores que encontra a sua flor no verão, e a flor cai durante verão, não no outono, e deixa o chão muito colado – tu a andares por baixo de um jacarandá ficas com os pés colados ao chão. E a ideia do filme surgiu daí, mas o filme depois não tem nada a ver com isto. É o filme em que uma das ideias principais – e acho que isto eu posso dizer sobre o filme, não vai de todo mudar – ou uma das coisas principais que me impulsionou foi eu querer escrever um filme com uma personagem principal feminina e tudo o que vem com isso, o que significa eu como homem escrever sobre uma miúda, sobre aquilo que se passa na vida dela, de uma mulher… de uma miúda que está a perceber se é mulher, pronto, isso é uma coisa que se passa no filme. E esse desafio – acima de tudo era esse desafio – de escrever sobre algo que me dava algumas vertigens, sobre algo que eu se calhar não dominava, e estar a construir o filme já há algum tempo… tem sido este caminhar sobre, estudar o que para aquela personagem faz sentido ou não. Isto parece muito confuso, mas acho que vai ser muito bonito.

Como caraterizas o ensino de cinema em Portugal? Achas que é completo ou, como o ensino em quase todas as áreas, necessita de grande trabalho autodidático para nos prepararmos para o mundo?
Eu só posso falar pela Escola de Cinema, porque existem vários lugares onde tu podes aprender cinema em Portugal. Eu acho que existem professores na Escola de Cinema com os quais eu aprendi muito, mas eu sinto que aprendi com eles coisas que nós fomos discutindo, se calhar em situações mais pessoais ou coisas fora das aulas, do que propriamente no momento em que tu estás três horas numa sala a ouvir alguém a falar… dessas coisas eu não retive muito. E depois aprendi muito mais na Cinemateca, a ver filmes e a, lá está, nesta dinâmica de vais à Cinemateca e vais jantar com os teus amigos que também andam na Escola de Cinema e nesse jantar discutimos este filme, e discutimos que eu sou a favor do filme e tu és contra e nesta discussão surgem uma série de ideias que vão impulsionar uma discussão sobre outro filme e outro realizador que tu não viste e então vais ver, percebes? Acho que o meu crescimento foi muito assim. E, nesse sentido, a Escola de Cinema é muito importante porque é o sítio onde se encontram estas pessoas; dá um espaço e um tempo. É pena é termos que ir até à Amadora para nos encontrarmos [risos].

Com que realizadores, atores, etc, gostarias de trabalhar?
Não sei. O Amor, Avenidas Novas é feito sem… as pessoas que entram no filme não são atores. O ator principal é o Manel – que é músico, é o Primeira Dama – e depois os outros três atores do filme, a rapariga (a Rita), o outro rapaz (o melhor amigo do Manel), e a namorada desse rapaz, são tudo pessoas que estavam a estudar cinema na Escola de Cinema, estavam a estudar para ser cineastas, e eu achava que fazia sentido eles entrarem no filme – e depois eles acabaram por entrar. E depois existe a personagem da mãe, que é a minha mãe na vida real, e que foi dar a voz no final do filme. E a mim ainda me interessa muito esta dinâmica do que é que trazem os não atores, não é, as pessoas, e o processo de casting até agora tem passado sempre por perceber quem é que pode ser o quê, o que é que aquela pessoa pode trazer para aquela ideia que eu tenho daquele papel, daquela personagem que, no fundo, só fica definida quando aquela pessoa entra e tem um input pessoal sobre a personagem. Só para te dar um exemplo, agora em relação ao Filme Feliz, uma das pessoas que vai entrar no filme é a mesma rapariga que entrou no Amor, Avenidas Novas – a Beatriz Luís, que faz de Rita no Avenidas. E existem coisas do género, ela leu o filme, e quando nos encontramos – somos amigos, por isso há claramente uma parte da conversa que é perceber o que é que ela anda a fazer agora, etc – eu soube que ela andava a estudar alemão. Na altura, fiquei super entusiasmado com a ideia de, se calhar, esta personagem poder falar alemão no filme. Por isso, existem uma série de coisas do dia a dia. Eu estar a tomar café com alguém… da altura do Amor, Avenidas Novas, dos encontros que tinha com o Manel (o ator principal do filme) ou com o Marcelo (que faz de melhor amigo dele), e coisas que eles diziam, expressões, interjeições, gestos, que eu achava que tinha de guardar aquilo e que aquilo fazia sentido no filme. Claro que há pessoas que eu admiro em Portugal. Eu adorava trabalhar com uma atriz, por exemplo, como a Rita Blanco. Adorava. Só que não sei se estou na altura certa para fazer isso. De realizadores não sei se queria trabalhar com algum [risos]. Acho que tenho um bocadinho de medo de trabalhar com ídolos ou com pessoas que eu admiro muito.

Os teus filmes baseiam-se em ti, nos que te rodeiam ou apenas em personagens abstratas?
Uma pergunta muito interessante. É um bocadinho de tudo, acho eu. Quer dizer, é um bocadinho de tudo porque, para falar de mim, eu sinceramente tenho um problema – que eu acho que é verdadeiramente um problema – que é, eu não consigo trabalhar filmes, não consigo trabalhar ideias, sobre coisas sobre as quais eu não conheço, ou sobre as quais eu não me disponibilizo para conhecer. Depois é sempre complicado trabalhar personagens… sei lá, eu adorava fazer um filme sobre… há bocado estava a almoçar com um amigo e ele estava a contar uma história sobre um casal de velhinhos, uma situação que ele viu, que eu achei delicioso e que dava um filme incrível, e eu não sinto que fosse capaz de o filmar, porque eu não conheço essa realidade. Mas acho que é um bocadinho de tudo. A mim influenciam-me coisas tipo estar um grupo de amigos a almoçar e alguém estar a contar uma história sobre a qual eu se calhar não fico logo fascinado, mas sobre a qual eu não consigo deixar de pensar nos tempos a seguir e começo a pensar que talvez haja alguma maneira de incorporar isto no filme em que estou a trabalhar agora, ou nos filmes em que eu posso vir a trabalhar no futuro. Ou coisas do género, na Tempestade do Jacarandá houve uma altura em que cheguei a uma espécie de um tratamento final do filme, em que o filme parecia que estava fechado, e no outro dia a minha irmã… existe uma grande ligação entre a minha irmã e o filme. A personagem principal tem muito a ver com ela e tem muito a ver com o facto de ela ter ido viver para longe, agora neste último ano, e na relação que nós temos mantido. Ela foi viver para os Açores porque foi trabalhar e, no outro dia, eu estava a deixar uma encomenda nos Correios para lhe enviar e encontrei o pirilampo mágico, que é uma coisa tosca da cultura portuguesa, mas que, de repente, fazia todo o sentido para este filme. Fazia sentido o pirilampo mágico ter uma função que, lá está, vai de encontro àquela ideia mágica (que estávamos a falar há bocado) que o filme pode ter. Pronto, são coisas assim da banalidade, não é? Acho que são as coisas que nos aparecem no quotidiano e que ficam connosco. A mim parece que funcionam como uma espécie de fogo de artifício criativamente.

Todas as pessoas têm aquelas ideias ou sonhos impossíveis; no mundo do cinema, é um pouco mais possível. Que ideias absurdas gostavas de conseguir passar para o ecrã?
Eu adorava fazer um filme de super-heróis. Mas vá, à sua maneira, eu acho que o filme do Jacarandá já pode ser um filme de super-heróis. Por isso, não sei. Mas eu adorava no sentido em que fantasio sobre isso, porque acho que ia ser horrível eu fazer um filme assim com um budget gigante. Eu tenho um grande problema, e eu estava a discutir isto com uma realizadora que conheci quando o filme estreou em Cannes. Num festival onde o meu filme passou agora recentemente na Holanda (eu fui lá ver) havia uma secção que era um foco sobre essa realizadora – ela já fez várias curtas e passaram as curtas todas – e ela estava a dizer que achava que com o dinheiro só vinham mais problemas e que gostava sempre de manter o filme num budget reduzido. Ela tem esta teoria – que eu talvez partilhe – de que é quando tu não tens uma solução que pode ser feita através de pores não sei quantos mil euros para cobrir aquilo, quando tu tens que arranjar uma solução quando não tens dinheiro para uma ideia que era muito cara para tu fazeres, acabas por ir de facto ao cerne daquela ideia, ao cerne daquela questão, e acabas por encontrar maneiras e veículos diferentes cinematográficos para tratar aquela ideia. Eu acho que este instinto de sobrevivência pode ser superinteressante. Por isso, não sei. Acho que ia ser complicado trabalhar com um budget assim de milhões e milhões de euros, apesar de ser algo que seria sempre curioso, seria uma experiência em que eu iria crescer, de alguma maneira.

Última coisa: porquê essa t-shirt?
Olha, também tem muito a ver com O Filme Feliz, na verdade. Tem tudo a ver com O Filme Feliz [risos]. Estou a brincar. O Menino da Lágrima surgiu como uma piada e agora parece que, de repente, se tornou numa coisa mais séria. Eu comecei a usar as t-shirts do Menino da Lágrima há imenso tempo, nem sei bem porquê. Na altura eu gostava muito de umas t-shirts de uma loja chamada Cão Azul, que não sei se ainda existe hoje em dia, e eles tinham estas t-shirts do Menino da Lágrima, eu comecei a usar e depois comecei a comprar em diferentes cores. De repente, houve assim uma ideia de eu fazer várias t-shirts do Menino da Lágrima para todos os dias durante o Festival andar sempre com uma t-shirt do Menino da Lágrima – isto em Cannes. Pá, e quando faltava meia hora para o filme estrear, nós estávamos assim no nosso apartamento e foi tipo, “porque é que não usamos todos uma t-shirt do Menino da Lágrima”? Foi assim uma ideia meio parva, mas que depois ficou, e agora está imortalizada numa foto, não é, nós lá na Semana da Crítica todos com a t-shirt do Menino da Lágrima. Mas não há assim nenhuma razão; eu gosto muito da imagem, gosto muito do quadro e daquilo que ele significa, mas não há assim nenhuma razão espiritual ou assim… se calhar há, não sei, e eu não estou a conseguir explicar. Mas, de facto agora, tornou-se… e houve pessoas a perguntar-me se era uma espécie de merchandising do filme, se era assim o símbolo do filme, do Amor, Avenidas Novas. É uma imagem que é cada vez mais associada à minha pessoa, porque é também o meu nome no Instagram e assim. Mas não te sei explicar [risos]. É uma coisa que começou à toa e se tem tornado cada vez mais séria.

 

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