Entrevista. Eduardo Relero: “A Argentina é um país à procura da sua identidade”
Esta entrevista é da autoria de João Rodrigues e Sousa e foi originalmente publicada no EI TRAPEZIO, publicação digital dirigida às comunidades de língua espanhola e de língua portuguesa, tendo sido aqui publicada com a devida autorização.
A obra mais recente do artista argentino pode ver-se em Águeda, retratando os guarda-chuvas coloridos que compõem, todos os verões, as ruas da cidade.
“Se trabalhas na arquitetura, tens de a levar a sério”. Foi a conclusão que fez Eduardo Relero (Rosario, 1963) deixar os estudos nesta área para se dedicar à arte da pintura, mais espontânea e livre. Ainda assim, não foi tempo perdido. Da sua formação mais clássica, também com passagens pela filosofia e pelas belas-artes, construiu uma voz artística ligada a um estilo particular: o anamorfismo. De facto, é um dos mais reconhecidos especialistas nesta técnica que consiste, essencialmente, em criar ilusões óticas através de uma imagem que só se pode compreender desde um certo ângulo de visão.
Sempre com as malas feitas, tem viajado em trabalho por todos os cantos do mundo, pontuando os lugares por onde passa com as suas pinturas efémeras, geralmente satíricas e cómicas. As figuras que idealiza têm sempre um lado teatral, dramático, oferecendo um leque infinito de histórias que o artista deixa ao critério e à imaginação de quem observa.
A mais recente obra em Águeda, em colaboração com o artista italiano Cuboliquido, foi o pretexto para uma longa conversa com Relero, que também tocou outros temas como a relação do seu país com a Península Ibérica.
É a sua primeira obra em Portugal?
Não, já fiz uma obra em Viseu [em 2018] para uma entrada da Feira de São Mateus. E gostei muito da experiência. Já tinha visitado Portugal noutra ocasião, há muitos anos, para decorar um hotel no Algarve. É um país de que gosto muito, tem algo ainda de virginal… Não sei. Talvez esteja menos deteriorado pelo tecido industrial que preenche outras zonas da Europa. Tem ainda algumas regiões que não foram exploradas, graças a Deus, ainda que o desenvolvimento turístico chegue a outras. Faz também um maior uso de energia limpa do que outros países, o que é também um valor muito bom. Para não falar das pessoas, da comida, que acho muito parecidas com o que há no Sul de Espanha, onde vivo.
Esta pintura em Águeda é, à partida, efémera, feita para sobreviver, pelo menos, ao festival de verão da cidade. Ainda assim, que tem de especial esta obra? Que ligação tem com a comunidade local?
É verdade. Poderão ver a obra até que acabe apagada. Lamentavelmente, as pinturas feitas no chão sofrem um desgaste maior do que na parede por causa das pessoas que as pisam, da chuva, do sol. Se mesmo aquelas que se fazem nas estradas, que levam um forte tratamento químico, sofrem dessas condições, imagine-se estas. Por isso, esta obra é capaz de sobreviver ainda uns meses, se ninguém a quiser apagar antes.
Quanto ao trabalho em si, eu fiz um esboço e o Tony (Cuboliquido) fez outro. Foi ele que me convidou para o projeto. E acabámos por pintar a rua Luís de Camões, uma das mais famosas, que a meu ver tem um ar assim melancólico. Ele dedicou-se a construir melhor este conceito da rua com os guarda-chuvas e eu fiz as personagens. E fizemos esta vista aérea da rua, uma metáfora das ruas de Águeda, com uma série de personagens que representam vários tipos de pessoas. Para uma delas, inspirei-me em Fernando Pessoa, porque casualmente pintámos no dia de aniversário dele [13 de junho]. Para as restantes, fui passeando pela cidade e descobrindo estes tipos, que fui misturando com as minhas ideias: o padre, o advogado, os amantes, a senhora da loja…. Até a mulher sexy [risos].
“Pintar na rua é como ser ator. Estás sujeito a que as pessoas te chateiem, mas também a que te estimulem. É paradoxal.”
O seu trabalho tem a particularidade de ser anamórfico, de produzir estas ilusões óticas que nos fazem ver a 3D. Por que pinta assim?
Bem, eu sou dos primeiros a pintar desta forma na rua. Mas não fui eu que inventei esta técnica: já vem do Renascimento, de pintores como Piero della Francesca. Só nos anos 2000 é que começou a ser aplicada à street art, primeiro com Kurt Wenner, que é um amigo meu que conheci em Roma quando estudava ali, nos anos 1990. E eu comecei em 2005, quando fui convidado por uma marca de relógios para fazer um desenho anamórfico. Foi a publicidade que começou por se aproveitar deste suporte, porque não se podia fazer promoção, por exemplo, ao álcool e ao tabaco. Conto isto para que se perceba que, por conta de decisões estratégicas, muitas vezes aparecem novos fenómenos artísticos.
Na altura, eu não conhecia muito bem o anamorfismo. Sabia a teoria, mas nunca a tinha praticado. E, a partir deste primeiro trabalho, nunca mais parei de fazer isto. Antes fazia um trabalho clássico pela minha formação de artista. Também estudei arquitetura. Mas esta técnica permitiu desenvolver-me enquanto artista. Através dela, posso fazer aquilo que gosto, desde a sátira social ao retrato da condição humana.
O que pensam geralmente as pessoas sobre aquilo que pinta?
Um pouco de tudo. Acho que pintar na rua é como ser ator. Estás sujeito a que as pessoas te chateiem, mas também a que te estimulem. É paradoxal. Mas, ainda assim, prefiro pintar no espaço exterior. Por exemplo, se me convidam para pintar algo numa casa privada, vou gostar menos do que se estivesse a pintar uma parede exterior. Não só porque menos pessoas vão ver o que fiz, mas também porque a experiência de pintar do lado de fora dá mais realidade àquilo que faço.
E importa-se com essa opinião?
Claro que sim. Não só com a opinião, mas sobretudo com aquilo que pensam da existência da minha obra. Tenho sempre alguns pruridos em pintar murais, por exemplo, porque sinto que são muito presentes e podem incomodar alguém da zona que não goste de uma figura que pintei. Pelo contrário, estas pinturas que se apagam, pela sua efemeridade, tiram-me esse peso. São mais elegantes: dizem o que têm a dizer e depois retiram-se. Como alguém que dança ou toca música.
“Não acho que o que faço seja a solução dos problemas. Simplesmente assinalo aquilo que não está bem.”
Há pouco disse que lhe interessava falar da condição humana. De que forma a integra na sua obra?
Faço-o em colaboração com várias organizações: Amnistia [Internacional], Greenpeace, Oxfam…. Com as Nações Unidas fiz um trabalho interessante para consciencializar para a invasão iminente da Síria. Também já pintei sobre o lixo eletrónico que contamina muitos rios em África. É um trabalho que gosto de fazer quando me chamam e me dão um desafio.
No meu trabalho mais corrente, trato deste tipo de questões através da sátira. Ou então sou mais atuante. Por exemplo, quando abrem um supermercado em zonas de comércio local, eu vou lá e faço uma pintura. Fiz isso em Madrid há pouco tempo. E sou assim também com outras coisas que me incomodam, que muitas vezes considero absurdas. Mas não acho que o que faço seja a solução dos problemas. Simplesmente assinalo aquilo que não está bem.
Mudando agora um pouco o tema, disse noutra entrevista que “ser cosmopolita tem algo de fracasso humano” pela perda de referências do lugar de onde nascemos. Para alguém que viaja tanto, a sua matriz ainda é a Argentina ou a sua cultura já é mais europeia?
Realmente não sei. Borges dizia que os europeus são só europeus. Um português é só um português, um espanhol é só um espanhol. Pelo contrário, os argentinos são um pouco espanhóis, italianos… Também somos muito europeus afinal [risos]. Mas temos ainda influência indígena, chilena, paraguaia, de praticamente toda a América Latina. Daí a Argentina ser um país à procura da sua identidade. E, por isso, vivemos toda a loucura do futebol, que funciona como o cimento que junta todas as pessoas. Tal como os guarda-chuvas serão esse cimento em Águeda.
A verdade é que tive a oportunidade de trabalhar em muitos sítios do mundo. Não fui necessariamente como um explorador. Se não fosse o trabalho, provavelmente não teria ido a sítios remotos como a Sibéria ou Machala, no Equador. E essa experiência de trabalhar não é a mesma que a experiência turística, porque crias uma fricção com o lugar que te permite conhecer as pessoas e te dá uma noção maior da realidade do que apenas o sorriso comercial que te recebe como turista.
Ainda assim, a vida cosmopolita faz-te perder muita coisa. Perdes essa cor local que tens com alguém que tem o mesmo passado histórico que tu e que te deixa à vontade para comunicar com termos económicos, mais precisos. Caso contrário, tens de ir buscar uma linguagem mais universal, quase científica, como faz a CNN, e que é um pouco antipática e fria.
“A História é sempre dos poderosos contra os mais fracos.”
Nesse sentido, como relaciona o seu país com Espanha, o país onde vive?
Ainda não tenho uma resposta para isso. Por um lado, acho que o Presidente do México tem alguma razão quando insiste que Espanha deve pedir perdão pela colonização. Por outro lado, Espanha também tem razão, porque é verdade que os Maias também eliminaram outras culturas indígenas que havia na região e colaboraram com os espanhóis para eliminar os Aztecas. A História é sempre dos poderosos contra os mais fracos. Não podemos saber o que teria acontecido se os espanhóis não tivessem chegado à América.
De qualquer forma, a herança cultural espanhola fez com que a Argentina não fosse um país como os Estados Unidos e o Canadá, com tanta imigração. A colonização predominantemente católica trouxe uma ideia de produção própria, mais ligada à culpa e a um sentido de responsabilidade diferente das religiões protestantes. Mas valorizo mais a relação que têm países como o México ou o Perú com o seu passado, mais poderoso do que o argentino, e que ainda mantêm vestígios dessas culturas anteriores.
“Os argentinos poderiam ser uma boa ajuda para os portugueses, contagiando-os com o seu entusiasmo criativo e sonhador.”
E com Portugal?
Messi e Cristiano [risos]. Não sei muito bem qual é a relação. Vejo-a mais com o Brasil, que está mais próximo. Conheço mais a música brasileira, a comida.
O que se pode fazer então para melhorar essa relação luso-argentina?
Talvez através da educação. Há muita força espiritual nesta geração de jovens. Têm muita energia e uma grande capacidade de trabalho. Na Argentina, há muitos centros gratuitos onde os jovens recebem uma boa formação técnica. Não são como Harvard, mas já é alguma coisa. Na arte isto também acontece. Mas estes jovens argentinos, maioritariamente de origem pobre, que têm uma enorme sede de conhecer mais, poderiam beneficiar de um sítio na Europa, como Portugal ou Espanha, que lhes permitisse desenvolver o seu trabalho, materializar os seus sonhos.
Pelo contrário, nas sociedades europeias desenvolvidas, essa energia já não se manifesta tanto porque há uma maior facilidade. Há apoios para tudo. E os jovens europeus, muitas vezes, encostam-se a um subsídio em vez de inventarem. Talvez aquilo que digo não seja politicamente correto, mas é normal que a alma humana se acomode, sacrificando ideais por um lado mais prático. É neste sentido que acho que os argentinos poderiam ser uma boa ajuda para os portugueses, contagiando-os com o seu entusiasmo criativo e sonhador.