Entrevista. EU.CLIDES e o poder de transformar um precipício numa rampa
“Não há altos sem baixos mas, ao menos, enquanto há o pânico da descida e o esforço da subida, há vida.” É esta a frase que serve de mote ao álbum de estreia de EU.CLIDES, Declive, e que anima a sua forma de lidar com momentos de crise. É o reconhecimento de que no movimento ao longo destes altos e baixos, a vida acontece. É a percepção de que as coisas mais interessantes acontecem quando não estamos parados. Esta transitoriedade é o que leva o artista, forçosamente, à criação musical. Essa urgência sente-se ao longo das 11 faixas de um álbum de sonoridade introspectiva e ponderada, cujas letras desabrocham em temas maiores, compartilhados por todos nós.
É num discreto bar no bairro dos Anjos, em Lisboa, que nos encontramos com o artista português, nascido em Cabo Verde e radicado em Paris, para uma conversa musicada pelos sons de bolas de bilhar a chocar entre si, sinos de igreja e uma guitarra dedilhada pachorrentamente por outro conviva. O entusiasmo é mútuo: para nós, é a oportunidade de conversar com o mais recente recipiente do galardão de Artista Revelação, nos prémios Play, o intérprete de “VOLTE-FACE”, uma das mais adoradas canções do Festival da Canção de 2021, e o dono de uma aveludada voz que parece pronta a deixar marca na música nacional; para o próprio Euclides, é o dia de lançamento de Declive.
“Lidei com muitas crises de ansiedade que estavam relacionadas com a vida que tive antes, de guitarrista, de estar em viagens e tudo o mais. O disco surgiu de tentar lidar com estas situações”
EU.CLIDES
Por mais que seja uma efeméride bonita, Euclides conta-nos que o dia mais feliz e de maior alívio foi quando enviou os masters do disco para distribuição, uns 15 ou 20 dias antes. Não admira: foi o culminar de dois anos dedicados à produção do álbum, marcados por algumas fases más. “Lidei com muitas crises de ansiedade que estavam relacionadas com a vida que tive antes, de guitarrista, de estar em viagens e tudo o mais. O disco surgiu de tentar lidar com estas situações“. As canções de Declive contam histórias da sua perspectiva, transpondo os desafios pessoais pelos quais passou para a vida dos outros. Essencialmente, pegar na experiência individual e torná-la universal.
Mas, como aprendemos na movimentação da vida, para todos os baixos há os altos correspondentes. Para além de isso ser emulado no alinhamento do álbum, cada ponto baixo é usado nas canções como uma forma de aprendizagem. “Foco”, a canção que abre o disco, termina com a frase “fiz do precipício uma rampa“. “Cada um dos temas acaba por ter uma finalidade positiva“, diz Euclides, que traça o paralelismo entre a canção “99” e a Parábola da Ovelha Perdida, que conta a história de um pastor que abandona 99 das suas ovelhas para procurar uma que se perdeu, como se tivesse mais valor que todas as outras.
Quanto mais falamos, mais o nome “declive” faz sentido. “Haviam várias propostas de nomes para o disco e Declive não foi logo a opção de que mais gostei, mas quando o vi escrito pensei: «isto faz sentido»“. É um nome que tem peso e marca bem uma primeira obra, ainda para mais quando pensamos na parafonia entre “declive” e “Euclides”. O disco foi um esforço colaborativo entre o próprio artista, o omnipresente e inventivo Pedro da Linha, a cargo da produção musical, e o letrista Tota. “O Tota é super forte. Desde os meus primeiros temas que o Tota escreve as letras e acaba por ser muito intuitivo chegar ao resultado das letras que estão no disco“.
“Tento sempre ser o mais honesto na forma como faço a minha música. Trata-se mais de ser transparente na forma como abordo a música do que tentar posicionar-me em algum sítio.”
EU.CLIDES
Quando mencionamos vagas comparações a artistas como Dino d’Santiago e Mayra Andrade e lhe perguntamos onde se quer posicionar no mundo da música, a resposta é tão diplomática como genuína. “Tento sempre ser o mais honesto na forma como faço a minha música. Trata-se mais de ser transparente na forma como abordo a música do que tentar posicionar-me em algum sítio. Quando lanço a música, aí é que descubro para quem é que estou a falar, mas com a minha mensagem tento chegar a toda a gente.” Se nesta mensagem fica clara uma intencionalidade, na música encontramos tudo o que foi consumindo ao longo da vida.
Declive não se foca num só estilo, reflectindo o crescimento do artista, rodeado de música cabo-verdiana e música tradicional portuguesa, particularmente a nível da estrutura das canções e suas estrofes, tendo referências como Zeca Afonso, que são notórias em canções como “99” ou o bem sucedido single “Venham Mais 7”. Relativamente à sonoridade, o principal detalhe que Euclides destaca é a presença da guitarra clássica na maior parte dos temas, que, apesar de fazer parte da sua formação e estar habituado à mesma, não estava tão presente nos trabalhos anteriores. “É um disco muito português, mas ao mesmo tempo tem muitas influências africanas, em termos de grooves“.
Euclides veio para Portugal com 1 ano, devido a questões de saúde, e cresceu entre Lisboa, Palhaça, Pombal e Coimbra. Tendo um pai guitarrista e frequentando a igreja, a música acabou por naturalmente estar sempre presente na sua vida. “Lembro-me que o meu pai emprestava a guitarra a mim e ao meu irmão para tocarmos e eu queria ser sempre o segundo, assim tinha mais tempo para tocar. Para uma criança de 6 anos pensar nisso, é mesmo porque é muito apaixonada por aquilo“.
“Sempre fui um miúdo muito curioso na parte da música“, diz-nos Euclides, recordando a criança envergonhada que não aprendeu directamente com o pai guitarrista, mas vendo outras pessoas e pondo isso em prática quando estava sozinho. “Podia ter dois velhotes a tocar piano e guitarra e uma data de crianças a jogar à bola, eu preferia ficar lá a ouvir aqueles dois músicos“, conta-nos enquanto se ri. Essa afinidade levou à formação em guitarra clássica nos Conservatórios de Aveiro e, posteriormente, Coimbra.
“Podia ter dois velhotes a tocar piano e guitarra e uma data de crianças a jogar à bola, eu preferia ficar lá a ouvir aqueles dois músicos.”
EU.CLIDES
Aos 19 anos, mudou-se para Paris e levou o seu virtuosismo consigo. A partir daí, conheceu muita gente e começou a tocar profissionalmente, nomeadamente com os senegaleses Daara J e com Mayra Andrade, o que lhe permitiu viajar muito. Foi nesta altura que surgiram os tais pontos baixos que viveu antes de começar o seu projecto a solo, nascido de uma urgência de deitar cá para fora o que sentia. Para dar mais força à sua intenção, separou o “Eu” de “Clides” e começou a carreira que hoje temos o prazer de acompanhar.
Não é de estranhar que reconheçamos na sua abordagem uns laivos de bedroom pop — comparação que aceita entusiasticamente. “Não é um objectivo soar assim, mas de facto faço a música toda no meu quarto, aliás, este disco [Declive] surgiu todo daí“. Confessa-nos que há muitos takes de guitarra e voz em que se ouve alguém a lavar loiça, o seu cão a fazer barulho ou o televisor do apartamento de baixo. “Acaba por ser engraçado, desafiante e acho que também dá um ADN engraçado ao disco.”
Os efeitos que ouvimos no final do tema “Foco” são um exemplo disso. “Aquilo parece uma cena super pensada, uma estética toda deep, mas na verdade é só alguém a lavar a loiça“. Parece-nos mais uma forma de trazer vida ao disco, essa palavra que tanto permeia o output de EU.CLIDES. “É engraçado, quando estás a produzir, queres dar intenções a tudo, queres que tudo seja algo que premeditaste e é engraçado deixares-te surpreender pelos simples factos da vida, às vezes acaba por trazer coisas mais valiosas que um take perfeito acusticamente“.
Para além dos concertos que dará no Lux, em Lisboa, a 4 de Maio, e no Mou.Co, no Porto, a 2 de Junho, os futuros planos são os de sair do quarto, onde ficou fechado durante grande parte dos últimos dois anos (onde é que já ouvimos isto?) a terminar o disco. Por mais que nos diga que quer ficar mais relaxado e inspirar-se, o entusiasmo sente-se quando diz que já pensa em música nova. Parece que a movimentação da vida irá continuar e ouviremos falar muito de EU.CLIDES. Para já, é ouvir Declive e tirar as suas próprias conclusões.