Entrevista. EU.CLIDES e o poder de transformar um precipício numa rampa

por Bernardo Crastes,    16 Março, 2023
Entrevista. EU.CLIDES e o poder de transformar um precipício numa rampa
EU.CLIDES / DR
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Não há altos sem baixos mas, ao menos, enquanto há o pânico da descida e o esforço da subida, há vida.” É esta a frase que serve de mote ao álbum de estreia de EU.CLIDES, Declive, e que anima a sua forma de lidar com momentos de crise. É o reconhecimento de que no movimento ao longo destes altos e baixos, a vida acontece. É a percepção de que as coisas mais interessantes acontecem quando não estamos parados. Esta transitoriedade é o que leva o artista, forçosamente, à criação musical. Essa urgência sente-se ao longo das 11 faixas de um álbum de sonoridade introspectiva e ponderada, cujas letras desabrocham em temas maiores, compartilhados por todos nós.

É num discreto bar no bairro dos Anjos, em Lisboa, que nos encontramos com o artista português, nascido em Cabo Verde e radicado em Paris, para uma conversa musicada pelos sons de bolas de bilhar a chocar entre si, sinos de igreja e uma guitarra dedilhada pachorrentamente por outro conviva. O entusiasmo é mútuo: para nós, é a oportunidade de conversar com o mais recente recipiente do galardão de Artista Revelação, nos prémios Play, o intérprete de “VOLTE-FACE”, uma das mais adoradas canções do Festival da Canção de 2021, e o dono de uma aveludada voz que parece pronta a deixar marca na música nacional; para o próprio Euclides, é o dia de lançamento de Declive.

“Lidei com muitas crises de ansiedade que estavam relacionadas com a vida que tive antes, de guitarrista, de estar em viagens e tudo o mais. O disco surgiu de tentar lidar com estas situações”

EU.CLIDES

Por mais que seja uma efeméride bonita, Euclides conta-nos que o dia mais feliz e de maior alívio foi quando enviou os masters do disco para distribuição, uns 15 ou 20 dias antes. Não admira: foi o culminar de dois anos dedicados à produção do álbum, marcados por algumas fases más. “Lidei com muitas crises de ansiedade que estavam relacionadas com a vida que tive antes, de guitarrista, de estar em viagens e tudo o mais. O disco surgiu de tentar lidar com estas situações“. As canções de Declive contam histórias da sua perspectiva, transpondo os desafios pessoais pelos quais passou para a vida dos outros. Essencialmente, pegar na experiência individual e torná-la universal.

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Mas, como aprendemos na movimentação da vida, para todos os baixos há os altos correspondentes. Para além de isso ser emulado no alinhamento do álbum, cada ponto baixo é usado nas canções como uma forma de aprendizagem. “Foco”, a canção que abre o disco, termina com a frase “fiz do precipício uma rampa“. “Cada um dos temas acaba por ter uma finalidade positiva“, diz Euclides, que traça o paralelismo entre a canção “99” e a Parábola da Ovelha Perdida, que conta a história de um pastor que abandona 99 das suas ovelhas para procurar uma que se perdeu, como se tivesse mais valor que todas as outras.

Quanto mais falamos, mais o nome “declive” faz sentido. “Haviam várias propostas de nomes para o disco e Declive não foi logo a opção de que mais gostei, mas quando o vi escrito pensei: «isto faz sentido»“. É um nome que tem peso e marca bem uma primeira obra, ainda para mais quando pensamos na parafonia entre “declive” e “Euclides”. O disco foi um esforço colaborativo entre o próprio artista, o omnipresente e inventivo Pedro da Linha, a cargo da produção musical, e o letrista Tota. “O Tota é super forte. Desde os meus primeiros temas que o Tota escreve as letras e acaba por ser muito intuitivo chegar ao resultado das letras que estão no disco“.

“Tento sempre ser o mais honesto na forma como faço a minha música. Trata-se mais de ser transparente na forma como abordo a música do que tentar posicionar-me em algum sítio.”

EU.CLIDES

Quando mencionamos vagas comparações a artistas como Dino d’Santiago e Mayra Andrade e lhe perguntamos onde se quer posicionar no mundo da música, a resposta é tão diplomática como genuína. “Tento sempre ser o mais honesto na forma como faço a minha música. Trata-se mais de ser transparente na forma como abordo a música do que tentar posicionar-me em algum sítio. Quando lanço a música, aí é que descubro para quem é que estou a falar, mas com a minha mensagem tento chegar a toda a gente.” Se nesta mensagem fica clara uma intencionalidade, na música encontramos tudo o que foi consumindo ao longo da vida.

Declive não se foca num só estilo, reflectindo o crescimento do artista, rodeado de música cabo-verdiana e música tradicional portuguesa, particularmente a nível da estrutura das canções e suas estrofes, tendo referências como Zeca Afonso, que são notórias em canções como “99” ou o bem sucedido single “Venham Mais 7”. Relativamente à sonoridade, o principal detalhe que Euclides destaca é a presença da guitarra clássica na maior parte dos temas, que, apesar de fazer parte da sua formação e estar habituado à mesma, não estava tão presente nos trabalhos anteriores. “É um disco muito português, mas ao mesmo tempo tem muitas influências africanas, em termos de grooves“.

Euclides veio para Portugal com 1 ano, devido a questões de saúde, e cresceu entre Lisboa, Palhaça, Pombal e Coimbra. Tendo um pai guitarrista e frequentando a igreja, a música acabou por naturalmente estar sempre presente na sua vida. “Lembro-me que o meu pai emprestava a guitarra a mim e ao meu irmão para tocarmos e eu queria ser sempre o segundo, assim tinha mais tempo para tocar. Para uma criança de 6 anos pensar nisso, é mesmo porque é muito apaixonada por aquilo“.

Sempre fui um miúdo muito curioso na parte da música“, diz-nos Euclides, recordando a criança envergonhada que não aprendeu directamente com o pai guitarrista, mas vendo outras pessoas e pondo isso em prática quando estava sozinho. “Podia ter dois velhotes a tocar piano e guitarra e uma data de crianças a jogar à bola, eu preferia ficar lá a ouvir aqueles dois músicos“, conta-nos enquanto se ri. Essa afinidade levou à formação em guitarra clássica nos Conservatórios de Aveiro e, posteriormente, Coimbra.

“Podia ter dois velhotes a tocar piano e guitarra e uma data de crianças a jogar à bola, eu preferia ficar lá a ouvir aqueles dois músicos.”

EU.CLIDES

Aos 19 anos, mudou-se para Paris e levou o seu virtuosismo consigo. A partir daí, conheceu muita gente e começou a tocar profissionalmente, nomeadamente com os senegaleses Daara J e com Mayra Andrade, o que lhe permitiu viajar muito. Foi nesta altura que surgiram os tais pontos baixos que viveu antes de começar o seu projecto a solo, nascido de uma urgência de deitar cá para fora o que sentia. Para dar mais força à sua intenção, separou o “Eu” de “Clides” e começou a carreira que hoje temos o prazer de acompanhar.

Não é de estranhar que reconheçamos na sua abordagem uns laivos de bedroom pop — comparação que aceita entusiasticamente. “Não é um objectivo soar assim, mas de facto faço a música toda no meu quarto, aliás, este disco [Declive] surgiu todo daí“. Confessa-nos que há muitos takes de guitarra e voz em que se ouve alguém a lavar loiça, o seu cão a fazer barulho ou o televisor do apartamento de baixo. “Acaba por ser engraçado, desafiante e acho que também dá um ADN engraçado ao disco.

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Os efeitos que ouvimos no final do tema “Foco” são um exemplo disso. “Aquilo parece uma cena super pensada, uma estética toda deep, mas na verdade é só alguém a lavar a loiça“. Parece-nos mais uma forma de trazer vida ao disco, essa palavra que tanto permeia o output de EU.CLIDES. “É engraçado, quando estás a produzir, queres dar intenções a tudo, queres que tudo seja algo que premeditaste e é engraçado deixares-te surpreender pelos simples factos da vida, às vezes acaba por trazer coisas mais valiosas que um take perfeito acusticamente“.

Para além dos concertos que dará no Lux, em Lisboa, a 4 de Maio, e no Mou.Co, no Porto, a 2 de Junho, os futuros planos são os de sair do quarto, onde ficou fechado durante grande parte dos últimos dois anos (onde é que já ouvimos isto?) a terminar o disco. Por mais que nos diga que quer ficar mais relaxado e inspirar-se, o entusiasmo sente-se quando diz que já pensa em música nova. Parece que a movimentação da vida irá continuar e ouviremos falar muito de EU.CLIDES. Para já, é ouvir Declive e tirar as suas próprias conclusões.

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