Entrevista. Fado Bicha: “Em Portugal temos muito uma cultura de silêncio e modéstia”
Sem papas na língua, as Fado Bicha chegam ao Fado para reclamarem o seu direito de simplesmente existir. Lila e João, com mais de cinco anos de carreira, já performaram em alguns dos maiores palcos do país, e prometem ir mais longe. Nas suas músicas, aclamam por uma “reivindicação Queer e Feminista” ao som de instrumentais que misturam o fado com outras sonoridades. Em 2022, lançaram o seu primeiro álbum, o Ocupação, e participaram no Festival da Canção, com o tema Povo Pequenino. Apesar de não terem vencido o festival, a sua arte causou impacto, e o Ocupação eleito como o 4.º melhor álbum do ano, para a Blitz. Enquanto artistas, as Fado Bicha aceitam o desafio de trilhar um caminho que ainda ninguém trilhou, e expandir o universo do Fado para nele caberem com “inteireza”.
Como é que o Fado surgiu na vossa vida?
Lila: Eu não sou de uma família que estivesse ligada ao Fado, nem geograficamente, nem de forma que o Fado fosse um género musical com o qual eu contactasse em casa. O Fado entra na vida de todos os que moram em Portugal porque é um bocado omnipresente de certa forma. Lembro-me, por exemplo, de quando a Amália morreu. Eu era nova, e lembro-me de isso ter sido algo impactante para a sociedade, e para o que eu conseguia apreender da cultura portuguesa. Percebi que ela era uma figura muito importante. Porém, só mais tarde, é que eu comecei a ouvir Fado, por volta dos 13/14 anos, com um CD da Amália. Antes era uma música que eu considerava antiquada, desinteressante, e aborrecida, mas a partir dessa altura aquilo começou a fazer sentido para mim. Talvez fosse pelo meu amadurecimento emocional. Lembro-me de algumas músicas em particular como a Medo, e a Primavera, que, de alguma forma, comecei a perceber. Como se fosse uma língua que afinal até já estava a conseguir entender e que não entendia antes. A partir daí comecei a ouvir Fado de uma forma regular em casa. Contudo, nunca me liguei à comunidade do Fado, nem mesmo quando fui para Lisboa estudar, porque nunca conheci ninguém que frequentasse casas de Fado, ou que estivesse minimamente próxima desse universo. Fui sempre ouvindo em casa, e indo a alguns concertos. Criei uma espécie de fantasia de que se alguma vez cantasse seria Fado. É uma coisa que acho surpreendente para as pessoas à minha volta, porque eu não tinha ligação nenhuma ao Fado, e ouvia obviamente outros géneros musicais. Porém, as pessoas conseguiam identificar [o Fado] como sendo um género ao qual me ligava de forma especial. Quando comecei a fazer o Fado Bicha lembro-me que houve uma vez que uma ex-colega minha do secundário, com a qual já não tinha muito contacto, foi ver um concerto. No final, estávamos a falar, e eu disse “deve ser muito surpreendente para ti eu estar a cantar Fado”, e ela respondeu “não, porque tu cantavas muito nos intervalos da escola”. Eu não tinha essa memória de mim própria. Achei curioso ver isso pelos olhos dela e de como essa ligação já era visível desde a adolescência.
João: Comigo foi um bocado distinto da história da Lila, mas houve o mesmo movimento de não fazer parte do Fado. Também venho de uma família que não tem nenhuma ligação, nem musical, nem cultural ao Fado. Era uma coisa que ouvíamos a cassete da Amália no carro, ouvíamos na rádio, conhecíamos dois ou três fados, não mais do que isso. Houve esse movimento de descobrir através da poesia, e da profundidade que os poemas trazem pela voz da Amália. Foi o que nos fez entrar e emergir no Fado. Eu depois tive a sorte de fazer um musical em 2011 em que havia muitas pessoas que cantavam Fado. Foi a partir daí que comecei a frequentar casas de Fado, a cantar, a tocar e a ter acesso ao meio. Há uma momento chave que é a poesia que nós não encontrávamos em mais nenhum género musical. Pelo menos um género que falasse destes temas, com estas palavras, e com esta intensidade poética. Ao mesmo tempo [o Fado] possuía uma identidade cultural que não se encontrava no pop ou rock estrangeiro. Tinha aquela coisa que ninguém sabe explicar muito bem, mas que estava muito ligada à fatalidade da vida, da morte, e aquelas coisas do amor e desamor que a Amália, e outros fadistas, incorporam muito bem. Essa ligação à poesia é que me fez despertar e ter interesse pelo Fado.
A criação do Fado que é Bicha
Como surgiu a ideia de unir algo tão tradicional, como o Fado, a algo tão próprio da cultura Queer, como drag queen?
Lila: Eu vivi uns anos fora, em Atenas, e trabalhava numa ONG internacional em 2014. Comecei a ir a encontros internacionais dessa ONG. Num desses encontros surgiu o convite para os participantes mostrarem alguma coisa da cultura dos seus países num evento. Eu não era grega, então disse “sou de Portugal, posso cantar um Fado”. Foi assim a primeira vez que cantei um Fado publicamente, o Barco Negro. Isso foi acontecendo em vários encontros, e começou a tornar-se uma realidade que já não conseguia particularizar na minha vida. Então, quando eu voltei a Portugal em 2016, eu fui consolidando essa vontade de experimentar. Fui vendo o que é que conseguia fazer com essa possibilidade de cantar Fado. Já era uma pessoa Queer e já fazia ativismo. Inscrevi-me numa escola de Fado em Lisboa, a Escola de Fado da Mouraria. Fui à primeira aula e consegui perceber que o meio daquela escola não era exatamente aquilo que sonhava. Não era um meio de liberdade artística e de expressão, e isso foi um choque para mim. Ainda voltei uma segunda vez às aulas, porque de facto, ter cantado pela primeira vez com uma guitarra portuguesa, foi uma experiência que mexeu comigo a um nível muito profundo. Senti que era algo muito importante e que eu tinha de fazer alguma coisa. Não dava para deixar de lado. Contudo, percebi que não ia ser por ali, porque não me sentia confortável. Senti que ia encontrar muitos obstáculos e eu não estava para isso. Ainda fui a algumas casas de Fado pedir para cantar lá, mas senti sempre que não era um ambiente no qual iria estar confortável, então acabei por nunca voltar. Eu sabia o que queria fazer com o Fado em termos gerais. Queria canalizar e explorar toda uma energia feminina, porque era o que eu sentia. Eu só quase ouço fadistas mulheres. Comecei a tentar perceber o que podia fazer. A ideia não surgiu de uma forma de “olha vou abrir um Excel e vou juntar isto e aquilo”. Foi meio que uma confluência de coisas que foram acontecendo e levaram num determinado sentido. Eu conheci um amigo nosso, luso-canadiano que vivia cá na altura e que faz drag profissional. Depois conheci um espaço que se chamava Favela LX. Era um bar muito pequeno em Alfama, cujo dono era uma bicha brasileira, e tinha o objetivo de aproveitar aquele espaço para dar palco a artistas Queer emergentes em Lisboa. Falei-lhe da ideia, e ele ficou entusiasmadíssimo. E marcou uma data para a apresentação. Pedi a esse amigo, o Adam, para me ajudar com a parte visual, porque não tinha experiência. Ele fez-me toda caracterização de Drag [Queen], e foi assim que começou. Pouco tempo depois, o João juntou-se. As coisas com o Fado Bicha têm sido um bocado ter um sonho, e vontade, de criar um espaço onde possamos criar livremente a partir do Fado. É o género musical que nos sai naturalmente, e que queremos fazer. Cantando os temas que nos interessam, nos animam, e utilizando o Fado como um instrumento e ferramenta. Não foi uma escolha estratégica. Nem sequer foi uma escolha muito pensada no sentido de sabermos exatamente o objeto que queríamos criar. Claro que agora é muito diferente do que era quando começámos, há cinco anos, no sentido em que é mais pensado porque já temos uma ideia mais estruturada daquilo que queremos fazer, e do nosso papel dentro da cultura portuguesa.
Nas vossas músicas vocês misturam elementos líricos e sonoros de diversas influências. De onde veio essa vontade de produzir um Fado que é desconstruído, não só a nível lírico, como também melódico?
João: A nível das letras acho que passa pela ideia de contarmos as nossas histórias. O Fado tem essa origem de exorcizar e fazer uma catarse dos sentimentos e da vida, como um exercício artístico, mas mais profundo, um exercício de existência, tu pregas os sentimentos através da música. O Fado nasce, como todas as canções marginais, por uma necessidade básica, e muito humana, de contar as coisas através da música. Para nós, sempre fez sentido contar as nossas próprias histórias, e desse ponto de vista, tornar o Fado em algo vivo, que passa pelos nossos corpos como um filtro, e que conta as nossas histórias nos dias de hoje, transformando-as em patrimônio vivo. Em relação à musicalidade, a própria ideia de que o Fado tem uma estrutura, ou um cânone rígido e cristalizado é uma ideia que não corresponde. Se analisarmos a história do Fado, percebemos que sofreu muitas mutações. Como qualquer género musical, ou objeto artístico, [o Fado] foi progredindo de formas muito diferentes. Houve Fado tocado com orquestra, Fado ao piano, Fado bailado, Fado vadio, Fado canção…. Acreditamos que há obviamente uma essência que carrega o fado e que é muito difícil definirmos. É uma questão que passa por muitos géneros musicais. No jazz também há esta discussão. O que é o jazz e o que não é? Obviamente que há estruturas melódicas, harmónicas, e de ritmo, que podem ajudar a definir um género. Se tivermos uma estrutura melódica que é Fado, mas o ritmo não é, será que continua a ser fado? Para mim, é mais interessante partirmos de uma influência de tudo o que chamamos Fado, e a partir desse património criarmos coisas com outras misturas. Embora o nosso grupo se chame Fado Bicha, nós sentimos que o Fado faz parte da nossa influência, e de como gostamos de nos expressar. Não foi uma escolha pensada juntar o Fado com Bicha. O Fado é uma dinâmica artística que nos serve e nos interessa enquanto pessoas que produzem arte, mas não queríamos ficar presas a um cânon que não nos servisse musicalmente e liricamente. Não há uma escolha muito consciente, simplesmente vamos para o estúdio e acontece um exercício. Nas nossas canções, primeiro chegam as letras, quando são originais, e depois a música é feita a pensar na letra como o centro. Usamos as ferramentas que temos enquanto artistas que nunca tinham feito música antes. No início não tínhamos acesso a alguém que tocasse guitarra portuguesa ou viola de Fado, então usámos o que tínhamos. Eu tocava guitarra elétrica, usámos os beats que o nosso produtor acrescentou, e fomos fazendo o que nós gostávamos independentemente de estar mais distantes do cânon do Fado.
Qual a vossa opinião perante estas novas sonoridades que têm surgido no Fado?
Lila: Nós seres humanos temos uma memória muito curta. Temos a tendência de interpretar fenómenos contemporâneos à nossa existência como sendo únicos, e neste caso acho que isso se aplica. A mudança dentro do Fado enquanto cânon artístico é indissociável da sua história. Não é que o Fado esteve igual durante 200 anos e agora de repente, no século XXI, há artistas a mudá-lo. Sempre houve mudanças graças a diferentes fatores históricos e culturais. A própria emergência do Fado enquanto género musical é uma confluência de uma série de influências. Acho que esta noção cristalizada de que há um Fado tradicional, que é tocado à guitarra portuguesa com uma pessoa, com um xaile, se for mulher, ou com um lenço, se for homem, é uma ideia muito criada pela apropriação que o Estado Novo fez do género. Isto contribui para uma noção do Fado enquanto um género tradicionalista que se liga a uma cultura, que eu depois vim a saber, que é muito conservadora. Há uma ideia de falar da mudança do Fado atualmente como sendo um fenómeno que está a acontecer agora, e tendo por base uma espécie de sensação de perigo de que se vai perder o Fado tradicional. O que nós entendemos como Fado tradicional [hoje], há 100 anos não se cantava dessa maneira. A guitarra portuguesa não existe há mais de 100 anos. O Fado já existia antes da guitarra portuguesa. Já se cantou Fado sobre muitas coisas. Este género engloba muitas expressões, e de alguma forma, conserva uma identidade que é reconhecível ao longo do tempo, e eu acho isso bonito. Eu vejo isso na música que nós fazemos, vejo na música que a Ana Moura faz, e vejo na música de muitas outras pessoas, mesmo que elas não reclamem como fazendo Fado como nós reclamamos. Eu acho muito bonito conseguir reconhecer essa identidade e pertença na música da Rita Viana, do Pedro Mafama, Conan Osiris, para além de outras coisas também presentes. Nada está em perigo. A música é um produto cultural humano, e como todos produtos evolui ao longo do tempo e ganha novos aspetos. A música é o que nós queremos fazer dela. Enquanto houver pessoas que queiram fazer Fado, seja de que forma for, ele sobreviverá. Se chegar uma altura em que o Fado não faz sentido para ninguém, como aconteceu ao longo da história com muitas outras expressões artísticas, ele eventualmente evoluirá para outra coisa. Tenho essa perspetiva de que enquanto houver pessoas que queiram fazer Fado, e outras que queiram ouvir, ele vai continuar a existir. Seja com guitarra portuguesa, com beats, ou piano. Acho que, quanto mais se abre o leque de uma determinada expressão artística, mais rica é essa experiência. Nada põe nada em perigo. Nem o que nós fazemos é contra o Fado tradicional, nem nós sentimos que o Fado tradicional, enquanto objeto artístico, é contra o que nós fazemos. Embora durante grande parte da sua existência, [o meio do Fado] tenha sido um meio hostil para pessoas LGBTI, e não lhes tenha permitido expressar e fazer arte da forma que era mais verdadeira para as suas experiências e suas identidades. Nós reclamamos essa pertença de nós enquanto bichas, na história do Fado, e na nossa legitimidade em fazer fado com os nossos corpos e as nossas vidas. Queremos esticar o universo para que consigamos caber nele com inteireza.
A Política, o Povo, e o Fado
Consideram que a vossa música é propositalmente política ou a vossa simples existência é que a torna política?
João: Ambas as possibilidades são válidas. Num universo artístico como o Fado, em que as referências Queer são inexistentes, pelo menos de forma visível, a nossa falta de existência poética é explícita sobre um simples romance. Como é que as pessoas LGBT sempre existiram na história do Fado, e não há uma história que conte explicitamente um amor entre dois homens, duas mulheres, ou sobre uma pessoa trans. É impossível ter sido uma coincidência. Durante 200 anos, não calhou falar sobre essas histórias [sorriso irónico]? Não foi isso. Foi um código aceite por todas as pessoas, porque não era aceitável, e nem sequer havia palavras para definir sexualidades ou identidades não normativas. Então havia uma regra, mais ou menos implícita, que proibiu que este tipo de histórias chegasse ao Fado. Nós podemos hoje existir numa forma plena, e começamos a ter direitos. O processo natural era agora podermos começar a contar as nossas histórias. É interessante como, apesar de irmos com 200 anos de atraso, algumas pessoas ainda ficam irritadas de nós queremos só contar as nossas histórias. O que nós estamos a fazer é romper com essa proibição de podermos contar as nossas experiências no Fado. Muitas narrativas da comunidade LGBTI continuam a não ser contadas. Como não contam as suas histórias, não têm imaginários artísticos, e isso faz com que continuem a não ter existência nem representação. Dizemos muitas vezes, nós não somos políticas por natureza, contarmos as nossas histórias face ao lodo que é a sociedade é que torna uma coisa política, algo monstruoso, um escândalo, uma ofensa. Fica claro que as nossas entidades continuam a ser vistas como algo que vai sujar o Fado, que o vai arrancar do altar do sagrado e vai arrastar o Fado na lama bicha, na identidade bicha. Isso diz muito de quem pensa que aquilo que fazemos pode ser um insulto ou ameaça ao Fado tradicional.
Como é que o Fado Bicha foi recebido pela comunidade do Fado?
Lila: Acho que não há nada mais honesto do que essa pergunta ser colocada à própria comunidade. Sinto sempre que é muito injusto eu dizer como é que a comunidade do Fado, que é muito diversa, reagiu, e reage, ao Fado bicha. Acho mais interessante ouvir sobre a forma como as pessoas vêm o Fado bicha. No geral, aquilo que nós sentimos desde o início é que, para muitas pessoas em Portugal, o que trouxemos criou um lugar muito entusiasmante. Um lugar onde se poderia cruzar uma reivindicação política Queer e feminista forte. Algo que não é muito presente na música portuguesa, e menos ainda em projetos que tenham um alcance de alguma forma assinalável, e que consiga furar o teto de invisibilidade da música periférica e underground. A nossa música reclama também uma pertença cultural forte, neste caso o Fado, portanto, essa junção para muitas pessoas foi recebida com desdém, ou até com o horror [riso irónico]. Para outras pessoas essa junção foi, e acho que continua a ser, um sinónimo de rasganço, resistência, e de alegria. Desde o início da carreira temos percebido como conseguimos chegar a pessoas que não têm muita sensibilidade sobre questões Queer. Ao longo dos concertos, conseguimos criar pontes com essas pessoas, e afirmar a nossa humanidade e a legitimidade de podermos ocupar aquele espaço. Firmando através da música e do discurso uma mensagem que as pessoas compreendem e conseguem se ligar emocionalmente.
Participaram na edição de 2022 do Festival da Canção. Na vossa perspetiva, qual foi a reação do público depois de cantarem para todo pais?
Lila: O grande motivo pelo qual aceitámos, ou quisemos participar no festival da canção foi exatamente esse. A possibilidade de podermos entrar na casa de milhões de pessoas sem pedir licença, e podermos trazer as nossas mensagens, estéticas, éticas e culturais. Aproveitando a legitimidade que participar num programa como o festival da canção confere às pessoas que nele participam, e criar esse símbolo através da televisão, que chega a um número muito maior do que chegámos até então. Tínhamos uma expectativa de que poderia haver muitas reações negativas. Não só por sermos quem somos, mas também pelo conteúdo da música em si, “Povo Pequenino”. Uma música obviamente provocadora. Houve reações [negativas], mas a verdade é que sentimos que, para muitas pessoas, a nossa aparição no festival da canção cumpriu um papel muito particular de visibilidade. Isso não teve unicamente consequências positivas. Por exemplo, lembro-me de ler relatos de pessoas Queer mais jovens a dizerem que estavam a ver o festival com a família, e ficaram muito desconfortáveis porque houve muitos comentários bicho fóbicos. Acho que em Portugal temos muito uma cultura de silêncio e modéstia. Fazer as coisas entre quatro paredes porque as pessoas não têm de saber, e isso perpassa muitas formas na nossa sociedade e nossa cultura. Não fomos nós que começámos, houve muitas outras pessoas que começaram antes de nós, [mas] quando começámos realmente a ser visíveis houve uma série de reações, positivas para algumas pessoas, negativas para outras. É uma consequência inevitável desse exercício de visibilidade e inteireza. Acho que para nós a grande vitória de ter participado no festival foi termos conseguido marcar uma posição e visibilidade bicha através da arte com uma boa canção. Talvez a nossa melhor canção.
Nos Estados Unidos vemos o fenômeno de RuPaul Drag Race, no Brasil temos Pabllo Vittar, e na Europa tivemos a vencedora da Eurovisão 2014, Conchita Wurst. Em Portugal, há abertura para existir um artista Queer com este nível de sucesso?
Lila: Somos um país pequeno e temos uma indústria cultural pequena. Isso também desempenha o seu papel nessa dinâmica. Basta ver, mesmo fora da música, as pessoas LGBTI mais famosas em Portugal nos últimos anos, parte delas, são também responsáveis pelo discurso mais homofóbico e transfóbico na televisão portuguesa. Acho que isso não é por acaso. Estou a falar [por exemplo] do Manuel Luís Goucha, e Claúdio Ramos. Acho que há muita pressão para a moderação e modéstia na nossa cultura. A lógica bolorenta de que podes ser gay, mas não sejas Bicha, ou seja, podes ser qualquer coisa, mas não sejas demasiado para não assustar muito. Conforma-te às regras vigentes e está, mais ou menos, tudo bem. Uma espécie da paz podre. Há pessoas como o Conan Osíris que teve, e continua a ter, imenso sucesso tendo uma estética Queer de alguma forma. Ele [Conan Osíris] não reclama essa pertença de forma explícita em relação à sua estética, e identidade, mas a verdade é que ele tem elementos Queer muito presentes na sua arte. Acho que é um bocado isso. A música que talvez identifiquemos como “o mainstream em Portugal” é a música que se ouve na rádio, das pessoas que vão à televisão, e aí vemos uma heteronormatividade abrangente e avassaladora. Mais do que isso, há até uma questão de classe envolvida. Muitas das pessoas que temos a fazer música são pessoas de famílias de classe média-alta, e, eu pelo menos, consigo perceber as suas pertenças quase “proto-pseudo-aristocráticas”. Então poderíamos pensar que a cultura portuguesa estaria ao longo do século XXI a diversificar-se, e obviamente que ela está. Há muita música Queer a ser feita em Portugal, nós temos muitos pares, e trabalhamos muito com pessoas Queer. Ela [música Queer portuguesa] existe, mas é muito difícil para essas pessoas conseguirem de facto sobreviver desse trabalho. Há uma bolha. Porque é que não a conseguimos furar? Não sei muito bem dizer para além destes elementos. Há muito gatekeeping, e é um meio pequeno, muito patriarcal em que os homens continuam a dominar a música. Acho que muitas vezes, e isso acontece connosco, as pessoas Queer são instrumentalizadas no sentido de dar uma aparência de diversidade e de vanguardismo. Porém, isso não se reflete em as pessoas conseguirem efetivamente fazer uma arte que tenha capacidade de penetração na sociedade.
O vosso álbum foi eleito como o 4.º melhor álbum de 2022 pela Blitz. Como receberam esta notícia?
João: Ficámos felizes pela validação externa, e mais do que servir o nosso ego, tem também uma importância para conseguirmos mais concertos, festivais, e criar algum tipo de estatuto para o exterior. Nós decidimos desde o início que não íamos depender da validação das pessoas. É uma coisa que não nos interessava, de modo a focarmo-nos no nosso trabalho, e no que queríamos fazer. Porém, obviamente que traz essas vantagens de ver o trabalho reconhecido, e de podermos utilizar isso para um valor exterior.
Lila: É claro que é impressionante para nós, porque de repente temos ali o nosso álbum, que é edição de autor, não temos editora, nem pretendemos ter, e [o álbum] foi um trabalho acúleo que demorou imenso tempo. De alguma forma sentimos que iria ser reconhecido, não por ter ficado em 4º em 3º ou 8º, mas por ver, um trabalho que foi tão custoso, e saiu do nosso coiro, ali, par e par com outros álbuns, como o da Ana Moura e de outras pessoas que reconhecemos. Deu nos uma sensação de estarmos a ser vistas, foi uma boa sensação.
Planos para 2023?
Lila: Entramos numa peça no final de 2022, a “Casa Portuguesa”, e vamos fazer uma digressão em 2023, por várias cidades do país. Além disso continuamos com concertos, e queremos ainda mais. Estamos a tentar fazer um festival maior no verão. Não está a ser fácil. Queremos fazer uma tour maior pelo Brasil, e queremos voltar a compor. Estes anos não compusemos. Foi o festival da canção, terminar o álbum, divulgá-lo, e depois a peça. Estamos a sentir já falta de compor e queremos voltar para o estúdio. Não sabemos se vamos lançar alguma coisa em 2023, talvez uma música, mas queremos muito voltar a compor e a gravar para conseguir lançar algo em 2024.