Entrevista. Farwarmth: “Quando o ‘Momentary Glow’ estava para sair começou a pandemia. Sinto que tive uma experiência a metade”

por Comunidade Cultura e Arte,    21 Outubro, 2020
Entrevista. Farwarmth: “Quando o ‘Momentary Glow’ estava para sair começou a pandemia. Sinto que tive uma experiência a metade”
Farwarmth / Fotografia de de Filipe Baixinho

Promessa sub-23 do nosso panorama nacional, Farwarmth entrou neste louco 2020 com o pronúncio d’uma “Belle Époque”: afinal, o seu 3º longa duração estava prestes a ser lançado pela britânica Planet Mu, selo fundado por Mike Paradinas em 1995 e que reúne os nomes mais desconcertantes da electrónica moderna. 

Um belo feito para um miúdo que cria texturas através de gravações de marchas populares, sinos de igreja e outras sonoridades que compõe o nosso quotidiano.
O lançamento choveria em Abril e em Março os nervos estavam em franja, apesar de Afonso não ser gajo de ficar sentado à espera de lançar um disco por uma editora de culto. 
Criador e colaborador nato, Afonso Ferreira empresta os seus dotes a vários projectos – desde o colectivo 00:NEKYIA ao duo Purga  – e a poucas semanas do lançamento agendado para 3 de Abril encontrava-se em tournée por Valença (Espanha), numa altura em que a pandemia provocava tanta inquietação como desdém.

“Vocês vieram parar a um antro de Covid” – disseram-lhe, gracejando, na noite do concerto (esgotado).

É certo que as coisas não correram como esperado para ninguém, mas quisemos descobrir como foram estes tempos conturbados para o rosto por detrás de Farwarmth, músico e produtor de 22 anos a viver em Lisboa, donde nos atende a chamada Zoom sem câmara. Pede desculpa, mas a luz do seu quarto fundiu-se e só tem uma lâmpada USB. É nesta penumbra que nos recebe, tal como em palco. No escurinho de uma sala de espectáculos, é só o Afonso, a sua música e o Pedro Menezes (Swan Palace), amigo de longa data de Afonso e que o acompanha ao leme dos efeitos luminosos. 

Seguem-se 4 datas a norte e centro de Portugal, mas disso falaremos mais à frente.

Farwarmth / Fotografia de Filipa Pinto Machado

Como é que recebeste a notícia de que o “Momentary Glow” iria ser editado pela Planet Mu?
Eu mandei o disco para toda uma lista de editoras de que eu gosto e que achei que a Planet Mu poderia encaixar. O Mike (fundador da editora) respondeu em Março de 2019 que estariam interessados e foi uma cena “Wow, que fixe”. A partir daí seguiram-se uma série de conversas até fecharmos a edição em Setembro do ano passado. 

Quando ouvi este disco, “Momentary Glow”, senti que não era um disco assim tão estranho para quem não tem o ouvido habituado à música electrónica ou experimental. Talvez até com algum travo ‘pop’. Concordas?
Sim, concordo. Aliás, nem me considero propriamente avant-garde ou experimental, até porque toda a minha composição tem a sua base no clássico e na teoria musical comum. Parte tudo da improvisação: os teclados, synths, e depois daí parte para amigos a tocarem outros instrumentos. Mas tem tudo essa base musical convencional que é a mesma em qualquer outro género. Não faço o que faço a pensar: “isto tem de ser bué à frente, tem de ter um processo fora do convencional”. Na verdade, eu não tenho um método de criação premeditado sequer, é mais ir improvisando, pegar nas gravações e esboços que fui criando e fazer uma espécie de fusão ou colagem das diferentes partes.

Mas ainda assim achas que os teus pais iam gostar mais deste álbum do que dos anteriores? Quando digo “os teus pais” estou a falar mais do estereótipo de um público padronizado e que não explora tanto os géneros mais experimentais.
Não sei. Por exemplo, o meu pai gosta mais do álbum anterior, porque tem mais momentos de piano audível, tem arranjos mais simples e mais acústicos em que podes identificar o que é o quê. Enquanto este álbum, apesar de ser muito mais ritmado do que o anterior, a maior parte do tempo é uma mescla de sons que não te permite distinguir sonoridades singulares de diferentes instrumentos ou fontes sonoras.

Farwarmth / Fotografia de Filipa Machado

Ainda na senda dos pais e da base de música clássica que referes, a tua formação musical tem alguma coisa a ver com eles? Qual é a ligação dos teus pais com a música?
Desde puto, com 6 ou 7 anos, que comecei a ter aulas de piano e teoria musical no Conservatório de Bragança. O meu pai foi DJ durante duas décadas e a minha mãe era uma jovem punk. O meu pai passava muito house no fim dos anos 80 e anos 90.

Mas apesar de ter tido um pouco de formação musical clássica nos anos iniciais, quando vim para Lisboa, ali pelos 12 anos, fui para uma Academia de música em que a aprendizagem já não era tanto no espectro do clássico, enveredava mais pela improvisação e, em certos casos, eu até podia escolher o que queria aprender. Eu costumava levar bandas sonoras de filmes que queria saber tocar e acabava por passar mais pelo rock, blues, jazz. Portanto, tive um pouco das duas vertentes: a mais clássica e outra mais livre. E em 2016 fiz o meu último ano.

E foi aí que começaste a fazer música fora do âmbito escolar/formativo, ou seja, mais por ti?
Foi por volta de 2014. Em 2015 comecei a pôr umas cenas no Bandcamp sozinho. Agora já não está lá nada desse tempo (risos). Depois em 2016 é que lancei mesmo o primeiro disco, que também durante muito tempo pensei em retirar, mas depois decidi que não, decidi deixar. Acho que também é um processo normal por que os músicos passam. 

Desde então lançaste três longa-durações, todos um pouco diferentes entre si. Como foi o processo de passar do quarto/estúdio para o palco? 
Bom, ao início a maior parte dos concertos eram em Lisboa, mas entretanto aqui em Portugal já toquei no Porto, em Braga, em Guimarães, em Vila Real, etc. E ainda toquei no Meo Sudoeste com Purga (risos). Depois, com o lançamento do “Immeasurable Heaven” (2018) fui tocar a Berlim e em 2019 fiz uma pequena tour com HRNSS (projecto que tenho com o Rui Andrade). Voltámos a Berlim e fomos à República Checa e Eslováquia. Este ano é que foi uma perda muito grande… porque já tinha muita coisa marcada para fora. Ainda toquei em Valência com HRNSS em Março e tinha convites de França, Alemanha e até do Japão. Mas pronto, não chegou a acontecer, obviamente.

Nesse concerto em Valência ainda não sabias o que aí vinha, né? 
Sim, na altura quando fui lá tocar (a Valência) já havia um número um pouco preocupante de casos, mas eu ainda não tinha bem a noção da coisa. Aliás, se eu soubesse o que sei hoje se calhar não tinha ido. Mas fui, aquilo esgotou e estavam lá 100 e tal pessoas, não te podias mexer lá dentro. Na altura um gajo que estava lá no concerto até comentou com uns amigos meus que estava ali um antro de Covid (risos). 

Como é que a questão da pandemia te condicionou, tendo tu vários concertos marcados – inclusive no estrangeiro – e um disco prestes a sair por uma editora de culto?
Mentalmente foi bastante complicado porque fiz o disco na Primavera-Verão de 2018, no final do ano dei os toques finais, em Janeiro de 2019 mandei para masterização e em Fevereiro mandei para bué editoras. E neste tempo todo, passaram-se muitos meses em que eu estive só a ouvir o disco e sem mandar para lado nenhum . Ainda não sabia bem o que fazer com aquilo. E mesmo 2019 foi um ano bastante difícil, porque apesar de finalmente receber interesse no disco, fiquei bastante tempo à espera de uma resposta final, com bastante ansiedade. Quando em finais de Setembro tive mesmo a confirmação da Planet Mu foi uma descarga emocional bué forte. A partir daí, obviamente que fiquei bué hyped mas continuei sempre a fazer música. Aliás, tenho um disco que nunca há-de sair porque já não me identifico nada com aquilo. Infelizmente, quando o “Momentary Glow” estava prestes a sair começa a pandemia. Sinto que tive uma espécie de experiência a metade. 

E talvez metade seja muito, não? 
Tive uma experiência quase totalmente virtual. Porque o disco saiu em Abril numa altura crucial do estado de emergência, onde ninguém podia ir a lado nenhum e estava tudo completamente fechado. Nem sequer houve oportunidade para vender muitas edições físicas porque as lojas fecharam todas e a ausência de concertos também dificulta muito. Então a minha experiência com o lançamento limitou-se a aguardar e estar na net durante o dia do lançamento e nos dias que se seguiram. Apesar de tudo, foi muito fixe, foi uma tração e uma atenção que eu nunca tinha tido. Para mim não deixou de ser uma coisa enorme, até porque a resposta foi incrível: conheci pessoas através do lançamento do álbum que hoje são grandes amigos, colaborei com pessoal novo. À falta de concertos fiz bastantes mixes para rádios por toda a Europa, fiz algumas faixas para compilações de editoras e colectivos diferentes.

E a tua música tem sempre esse aspecto colectivo, vivendo não apenas daquilo que tu fazes mas também daquilo que tu captas das pessoas e dos ambientes à tua volta. 
Sim, faço bué gravações, field recordings. No ano passado fui ao Semibreve (Braga), festival a que vou todos os anos, e fui ao Mucho Flow (Guimarães) pela primeira vez. E, por exemplo, estava eu e o Pedro a andar por Guimarães e encontrámos uma marcha popular com pessoal a tocar tambores e a cantar e gravámos muitas cenas desse e doutros momentos em Guimarães. Também tenho algumas gravações das várias Igrejas que existem em Braga. Mas sim, às vezes capto coisas pela cidade e por onde ando. É uma cena espontânea mesmo, gravo no telemóvel. Nem sequer tenho nenhum gravador portátil. Curtia ter, mas acho que me ia acabar por esquecer dele em casa (risos). No meio daquela confusão sonora maximalista que acabam por ser as minhas músicas, nem importa se foi gravado com o telemóvel ou com o microfone do portátil ou com um gravador portátil muita bom. Não importa, vai acabar por ser processado, nem interessa.

Farwarmth / Fotografia de Filipa Machado

Como foi gravar cenas durantes os limitadíssimos meses do confinamento? 
Os meses de quarentena foram os piores da minha vida (risos). E fiquei surpreendido porque quando eu, de alguma forma, me isolava em casa para fazer música e ficava meses sozinho a trabalhar num disco. Sempre achei que estar em casa a toda a hora resultaria bem para fazer música. Mas não, zero. Zero estímulo, não havia nada de onde eu conseguisse tirar inspiração porque não estou a fazer nada, ao fim ao cabo. Ao início ainda fiz algumas faixas que foram usadas em compilações, mas à medida que isto foi avançando fui fazendo cada vez menos e decidi que também não me ia estar a forçar a fazer coisas porque senão vou estar a mentir, não só a mim próprio, mas também a quem me ouve. 

Apesar de envolveres algumas pessoas próximas no teu trabalho, Farwarmth não deixa de ser um alter-ego. Como é que lidas com o lugar de comando do teu próprio projecto?
Às vezes não é muito saudável. Depende também como é que tu tratas a cena e da disciplina que tens sobre ti mesmo. Às vezes pode ficar um bocado obsessivo ou demasiado intenso e tens que te separar da cena, mas depois se te separas e no fundo aquele é o teu projecto e és só tu, também não consegues estar separado, porque sentes que também não estás a fazer nada e não és ninguém. É uma relação um bocado estranha, mas eu não deixo de gostar.

Mas de onde o membro de uma banda vai beber crítica e conselho ao seu grupo, aos seus colegas de banda, num projecto a solo, pelo menos eu sinto que posso ir buscar isso a quem me rodeia, ao Rui, ao Pedro.

Disseste ali atrás que estás sempre a fazer coisas diferentes das anteriores e que facilmente te deixas de identificar com o que ficou para trás. Depois de tantos meses fora dos palcos, o que é que vais tocar nesta tournée?
Grande parte do meu disco novo (material novo que irá ser editado). Eu por acaso, penso e pergunto-me se há pessoal que queria ouvir cenas do “Momentary  Glow”, mas a cena é que eu já ouvi essas faixas muitas vezes e já não me identifico tanto. Porque a vida não pára e uma pessoa muda e já não se identifica tanto com o que fez anteriormente. Desde o início deste ano que já não toquei nada do “Momentary Glow”, apesar de ser a altura em que saíram os singles, que foi anunciado o disco e eventualmente saiu. É que já fiz este álbum há 2 anos. Okay que isto foi um lançamento que demorou bastante entre estar terminado e sair, mas acho que isso também foi o passo de eu andar aí a mandar o álbum a pequenas editoras online e editoras de k7 e assim, e passar para uma editora como a Planet Mu. Acho que agora posso alcançar um ritmo de lançamentos mais consistente. Quando eu acabar um trabalho creio que já não tenho que esperar 2 anos até que saia. Pelo menos com este próximo álbum acho que o processo está a ser mais rápido. E isso é bom porque assim quando o disco sai não tenho de o deitar fora, porque ainda me identifico com ele e ainda quero tocá-lo ao vivo para quem me quiser ouvir. Com o “Momentary Glow” já não é esse o caso.

Em relação ao futuro, quais os planos?
Eu tenho uma cena curiosa: mal acabo lanço disco, faço logo uma coisa completamente diferente do que o que acabei de fazer. Então a direcção muda drasticamente. Faço coisas diferentes e isso é excitante de se explorar. Depois destas quatro datas tentarei marcar cenas em Lisboa, que foi um sítio que ficou a faltar nesta tournée.

Em Novembro também vou começar uma residência na Galeria Zé dos Bois (Lisboa) com o meu colectivo 00:NEKYA. Foi algo que começou a ser falado ainda antes da pandemia e que resultaria em 3 ou 4 eventos anuais, não apenas englobando concertos mas também a nossa componente de instalação. Agora é impossível, mas teremos lá um concerto por mês a partir de Novembro.

Entrevista de Luís Masquete
Fundador da Tago Mago e programador do GrETUA, em Aveiro.

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