Fernando Ribeiro: “Há neste disco uma consciência de que as nossas prioridades estão extremamente invertidas”
Ao vigésimo sexto dia do segundo mês de 2021, foi editado Hermitage, dos portugueses Moonspell, com o selo Alma Mater Records, numa parceria internacional com a Napalm Records.
O 13º álbum de originais de uma das mais bem sucedidas bandas portuguesas foi gravado e misturado por Jaime Gomez Arellano, nos estúdios Orgone, em Inglaterra, e marca uma nova abordagem da banda à sua musicalidade. A um ano de celebrarem 30 anos de carreira, os Moonspell apresentam-se mais progressivos, melancólicos e complexos, cumprindo com a premissa de renovação e reinvenção a cada álbum, algo que a banda tem adoptado desde o início da sua carreira.
Para marcar a entrada directa de Hermitage para líder da tabela de vendas da Associação Fonográfica Portuguesa, a Comunidade Cultura e Arte esteve à conversa com Fernando Ribeiro, por via virtual (como mandam os tempos correntes), que se encontrava revigorado depois de um passeio higiénico com o filho.
Depois do álbum 1755, que é cantado em português e que tem como conceito central o terramoto de 1755, como foi voltar a compor e cantar em inglês? Sentes que teres passado por esta transição, de um álbum para o outro, contribuiu de alguma forma para melhorar o teu processo criativo?
Depois do 1755, pela nossa dinâmica como banda, facilmente se adivinhava que o álbum que se seguisse não ia ser cantado em português. Não foi uma questão de recearmos repetir-nos, mas a dinâmica dos Moonspell vive muito do cansaço acumulado dos processos de fazer os discos, de uma insatisfação que promove o aparecimento de novas ideias, novos conceitos.
Cantar em inglês é completamente diferente de cantar em português. Há diferenças logísticas, técnicas e mentais, mas o mais importante no processo criativo é saber pensar na língua em que se quer compor. A minha professora de inglês no secundário dizia que, nas aulas dela, tínhamos de pensar em inglês, e isso hoje em dia faz-me todo o sentido. Pela minha experiência, por ter já escrito e interpretado tantos temas em ambas as línguas, hoje sou um pouco melhor a compreender essa diferença e a aplicá-la. O Hermitage foi pensado em inglês e, para mim, o desafio foi tentar atingir um grau de expressividade em inglês semelhante ao que, segundo algumas pessoas, consegui atingir no 1755, cantando em português.
Na altura da sua concepção, o 1755 permitiu-nos juntar dois mundos que nós apreciamos particularmente. O primeiro era a história de Portugal, através do terramoto de 1755, um evento de muita importância, mas que, curiosamente, em raras ocasiões teve tratamento artístico. O segundo era o cantar em português. Inicialmente o 1755 ia ser um EP, mas pelas suas particularidades, nós deixámo-nos entusiasmar, e o mesmo transformou-se num álbum, do qual nasceu uma digressão, e em que explorámos um conceito de espectáculo mais teatral e mais épico. Este álbum abriu uma janela, que poderemos no futuro vir a explorar – fazer este encontro entre história, cultura portuguesa e o heavy metal cantado em português, à maneira dos Moonspell.
No entanto, o que nós procurámos fazer foi levar a língua ao encontro dos temas abordados. Não teve relação com aquelas velhas polémicas, que parecem estar de volta hoje em dia, por causa do Festival da Canção.
Aliás, as diferenças de sonoridade e pronúncia fazem da língua mais uma ferramenta da construção artística disponível ao músico, e não deve ser interpretada sob o prisma da ideologia.
A discussão que se faz em Portugal é muito mais semântica do que técnica. Apesar de se dizer que a nossa pátria é a língua portuguesa, parece-me que temos que abandonar essa tendência de pensar que temos de a proteger. Até porque a nossa língua está de boa saúde, nunca houve tanta gente a cantar em português.
No caso particular do heavy metal, há pessoas a cantar em islandês, há outras a cantar num dialecto mongol… Há uma grande abertura a estas particularidades que fazem deste estilo um tipo de música que, na sua essência, é de abertura e inclusão, que não tem raça nem credo, e onde as pessoas convivem umas com as outras, onde as fronteiras estão diluídas. A verdade é que a música ainda é um dos últimos actos de liberdade.
Para além da diferença da língua, encontramos em Hermitage um trabalho vocal distinto: mais melodia, mais suavidade em alguns momentos, e também a introdução de harmonizações vocais com o Ricardo Amorim [guitarrista da banda] e com o Pedro Paixão [teclista da banda]. O que procuraram trazer para a música com estas abordagens?
Como vocalista, queria muito que isso acontecesse, porque trabalhar a voz nessa vertente é muito entusiasmante. Nos últimos álbuns, temos vindo a dar uma importância crescente às vocalizações. Até o próprio 1755, apesar de não passar pela questão das harmonias, já foi bastante expressivo a esse nível. Eu nunca tive pretensões a ser o lead singer incontestado, acho que a voz, tal como os outros instrumentos, tem de servir a música.
Para a servir, fiz questão de trabalhar nas harmonias vocais com o Pedro e com o Ricardo. Eles, que são os compositores de Moonspell desde os tempos do Irreligious, sempre me disseram para eu compor as minhas próprias linhas vocais. E eu também o fiz para o Hermitage, mas procurei ainda trabalhar com o Pedro na criação de melodias feitas em teclados, para eu depois reproduzir com a voz. Foi uma abordagem totalmente diferente, mais subtil, guarda-se o gutural para acentuar os momentos mais épicos, mais abertos.
Neste processo, eu tive inclusivamente que me reinventar um pouco. Eu vivo com a Sónia Tavares [vocalista dos The Gift] e ela é uma pessoa que nasceu para cantar, por assim dizer [risos]. Ela abre a boca e o som sai na temperatura certa, na nota certa e com a entoação certa. Eu não sou assim, tenho de trabalhar muito, e trabalhei muito para este disco.
No final, o que procurámos foi construir um álbum refinado, que soubesse estar contido para depois poder explodir na altura certa. O Hermitage é quase como um jogo de luz e sombras nesse aspecto, e a voz tem um papel preponderante. Este não é um álbum épico e grande, pelo contrário. É um álbum de eremitas.
E foi fácil encontrar esse equilíbrio, especialmente tendo em conta que falamos de um género que tendencialmente se quer aguerrido?
O heavy metal, como género, também tem evoluído neste aspecto, desde o tempo em que tínhamos bandas com um cantor solo destacado, como o Dio ou o Ozzy. Neste momento, até do ponto de vista da música mais extrema, como o black e o death metal, já existe muita experimentação com outras paisagens sonoras, com grande enfoque na voz. No Hermitage, os Moonspell abriram as portas a uma influência mais space rock, mais psicadélica, mais progressiva até. Uma consequência directa dessa influência foi esta abordagem vocal.
É preciso, porém, evitar os excessos. Uma das críticas que eu faço ao heavy metal hoje em dia é o deslumbramento com a tecnologia que está disponível, parecemos miúdos numa loja de doces e podemos criar algo completamente “Wagneriano” usando apenas o computador. É uma tentação mas que, de alguma forma, retira criatividade ao processo criativo, pela fartura dos meios.
Sendo este um álbum de eremitas, com referência clara ao isolamento e à solidão de uma sociedade hiper-conectada, pareceu-me também identificar alguma vontade de auto-isolamento, de afastamento de uma sociedade altamente polarizada e onde a ideologia atropela fortemente a empatia. Esta interpretação é correcta?
Aqui entra o conceito de sociabilidade insociável de Kant. De alguma forma, muitas vezes instintiva, outras vezes romântica, queremos estar sozinhos porque isso nos traz tranquilidade, paz, permite-nos fazer uma pausa. Penso que as grandes viagens dos santos eremitas começaram por ser uma pausa do mundo, não um fim em si mesmo. Mas nós, enquanto seres humanos, apenas conseguimos fazer determinadas coisas, atingir determinados propósitos, estando ligados, como numa grande tapeçaria, e esse é o grande dilema. E estas duas naturezas vão para sempre estar em conflito.
No caso de quem trabalha na música, onde há sempre muita gente, o isolamento é uma necessidade. Mas já em 2017, quando começámos a escrever o disco, eu me apercebia de que existe outro tipo de isolamento (ou distanciamento como se diz hoje em dia), que não é decretado por nenhuma autoridade sanitária, mas sim pela liberdade excessiva de opinião sem qualquer tipo de responsabilidade, pela dependência da evolução tecnológica, da evolução demasiado rápida da sociedade… E esta desresponsabilização e dependência mostraram-me que nós não somos assim tão livres. No fundo, o que quero dizer é que não houve um acompanhamento moral deste crescimento imenso: o mundo é como uma criança que cresceu, mas que os pais se esqueceram de lhe incutir alguns valores.
Esta tensão, derivada desse tipo de isolamento, está presente nas letras do Hermitage. Há neste disco uma consciência de que as nossas prioridades estão extremamente invertidas, derivado talvez de crescimento do preconceito, das ideias fixas, e isso trará consequências, para o bem e para o mal.
Na minha opinião, a solução de tudo isto está no regresso do eremita, por assim dizer. Porque eles também regressam e, quando o fazem, trazem consigo lições de luz, paz, solidariedade, de solução de problemas, de tranquilidade para a comunidade. Se eles vão regressar ou não, teremos de aguardar pelas cenas dos próximos episódios. Aliás, o próprio álbum não tem exactamente um fim. Funciona mais como uma plataforma para interrogações, para colocar questões. A “The Greater Good”, por exemplo, e ao contrário do que as pessoas pensaram inicialmente, é toda ela feita de perguntas, e não de sugestões.
Pensando nas interrogações que mencionaste, e focando especialmente no vosso terceiro single, “All or Nothing”, deverão os fãs de Moonspell ficar preocupados? Afinal, tu próprio cantas que “o vosso trabalho está feito”, querem “pagar a conta” e “sair da cidade”…
[risos] Boa pergunta! Sem dúvida que a “All or Nothing” tem o seu quê de autobiográfico. Afinal, vamos fazer 30 anos de carreira, e não foi tudo um mar de rosas. A música, enquanto carreira, não é uma linha ascendente até ao sucesso, muito pelo contrário. É labiríntica, é falhar muito, acertar algumas vezes…
O ambiente melancólico da “All or Nothing” permite-me, de certa forma, exorcizar a dúvida da finitude que eu próprio tenho, o que é bastante terapêutico. Acho que é saudável pensarmos no fim das coisas porque, na verdade, tudo é temporário. E tempus fugit. Os Moonspell têm obra feita mas eu não a tomo por garantida e não me parece que venha a ser eternizada, nem celebrada postumamente. Assumir que estamos a entrar num capítulo final, que não sabemos se será longo ou se será curto, evita uma série de situações que têm acometido muitos músicos, nomeadamente dentro deste género. Ainda agora perdemos dois, o LJ Petrov e o Alexi Lahlo, e parece-me que há aqui uma ligação muito forte a um estilo de vida muito destrutivo que me parece derivar de uma incapacidade de ver o fim.
Mas na “All or Nothing” também se fala de música. Existe um momento a partir do qual o trabalho do músico termina, que é quando fecha a porta do estúdio depois de gravar a música. O que acontece depois da música estar terminada é imprevisível e não depende de nós, e isso cria um grande desgaste. Quando te deparas com situações em que recebes críticas exageradas, em que as pessoas não são simpáticas para ti ou mesmo quando são desmesuradamente exageradas na apreciação do teu trabalho, isso tem um impacto. Os Moonspell, nesse aspecto, não são uma banda nada consensual e sabemos que, por muito que nós trabalhemos, no final estas discussões não vão ser discussões musicais. Nós vivemos numa sociedade formatada para o julgamento. E claro que a pandemia também afectou bastante a nossa estrutura mental, porque a vida de músico deixou de ser possível, por enquanto. E a “All or Nothing” também fala disso.
Mas isto tudo para dizer que eu aprendi a lidar com estas questões através da música e tendo consciência de que, um dia, os Moonspell terão o seu final. Não é agora, mas também não seria honesto da minha parte dizer aos fãs: estejam descansados, vamos durar mais trinta anos!
O Hermitage entrou directamente para o primeiro lugar da tabela de vendas da Associação Fonográfica Portuguesa, e os resultados noutros países também são muito positivos. Estão satisfeitos com estes resultados? Como os têm encarado?
Com tranquilidade. Como disse, o nosso trabalho enquanto músicos estava feito depois da gravação do disco, mas felizmente temos connosco uma equipa fantástica para, em conjunto, darmos continuidade ao processo de lançamento do álbum.
Houve sem dúvida um trabalho muito bem executado a nível editorial, com o lançamento em vários formatos, com produção de colecionáveis, o que levou a números muito bons, inclusivamente superiores aos do 1755, e até do Extinct. Também me parece que o confinamento veio aumentar a necessidade de ouvir música, eu pelo menos sinto isso. Mas em última análise, estes resultados são sinal de que o risco que assumimos com a nossa música teve uma resposta muito positiva dos nossos fãs.
Quanto às entradas nos tops, é sempre bom ter esse reconhecimento em termos da música em si, mas há outros efeitos que também são muito importantes para os músicos. Muitas vezes, a entrada nos tops de um país significa que um agente te vai contactar para ires tocar a um festival. Por isso é que, ao contrário do que muitas pessoas pensam, continua a ser muito relevante vender discos!
E para o lançamento deste álbum fizeram também um trabalho muito consistente ao nível das redes sociais.
Tivemos de evoluir muito nesse capítulo. As redes sociais não faziam parte do nosso horizonte quando começámos, mas tentámos encará-las do ponto de vista daquilo que elas são: um ponto de interacção com os fãs. Mas não de evangelização, e essa distinção é essencial. Nós tivemos bastante cuidado com isso, procurámos sempre entreter, e não alienar. Quisemos fugir ao “comprem, comprem, comprem”, ao “partilhem”, ao “gosto”, tendo optado por outras abordagens, como a série dos eremitas famosos, o book club… Tentámos aliar aquilo que nós gostamos, aquilo que foram algumas influências deste álbum de heavy metal (que também tem o seu quê de cultural) e passar isso aos nossos fãs. Nas redes sociais também se pode ser pedagógico! Nunca perdendo a consciência de que, nas redes sociais, se está sempre a lidar com multidões, e que portanto é preciso ter algum cuidado e algum critério.
No teu poema Lapso, lê-se que “Cada momento que se vive, é menos um momento que se vive”. Os Moonspell já viveram momentos equivalentes a 29 anos. Como se sentem e o que podemos esperar das celebrações dos 30 anos de carreira, em 2022?
Nós queremos muito voltar aos Coliseus, voltar às salas grandes. Já não fazemos um espectáculo assim desde a gravação do Lisboa Under the Spell. E não se trata de show off mas sim de um sinal de vitalidade, porque as salas grandes permitem desenvolver um tipo de conceitos criativos que não se conseguem executar noutro tipo de concertos. Em breve iremos também anunciar as tournées internacionais do Hermitage, que entretanto, pelas razões relacionadas com a pandemia, se irão cruzar com as celebrações dos 30 anos.
Entretanto, com o desconfinamento, temos planeado um concerto no 1º de Maio em Castelo Branco. Estamos também a trabalhar num secret show, em que os fãs têm de enviar um email para se inscreverem, e queremos avançar com um concerto ao vivo e em streaming, como fizemos o ano passado em Beja, até ao verão. A reposição dos espectáculos Sombra também é algo que estamos a equacionar. Temos um pouco de tudo…
Um projecto especial que temos para os 30 anos de carreira é a produção de cassetes com todo o material da fase mais primordial dos Moonspell, que vai desde o tempo de Morbig God até ao Wolfheart. Um objecto de culto, em edição muito limitada, que vai ser o sonho molhado de qualquer tape trader!
Portanto planos não nos faltam. Os 30 anos vão-se cumprir quer queiramos, quer não e, apesar da incerteza, estou certo de que os Moonspell hão de conseguir celebrar os seus 30 anos a preceito.
Entrevista de Eduardo de Melo Corvacho