Entrevista. Filipa Fonseca Silva: “Se olharmos para o que nos ensinam na escola contam-se pelos dedos quantas mulheres é que são estudadas”

por Mara Garcia,    1 Setembro, 2021
Entrevista. Filipa Fonseca Silva: “Se olharmos para o que nos ensinam na escola contam-se pelos dedos quantas mulheres é que são estudadas”
Filipa Fonseca Silva / DR
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Autora de Os 30 – Nada é Como Sonhámos (2011), é a única escritora portuguesa a ter chegado ao Top 100 da Amazon. Aspirante a jornalista, publicitária, escritora, mãe a tempo inteiro, empreendedora, pintora nas horas vagas e bodyboarder amadora, Filipa Fonseca Silva revela o preconceito e a dificuldade que ainda existe em ser uma mulher escritora em Portugal no momento em que o setor livreiro enfrenta uma dura crise provocada pela pandemia.

Filipa Fonseca Silva tem 41 anos e nasceu no Barreiro, de frente para o Tejo. Idealizava ser jornalista e seguiu Comunicação Social e Cultural na Universidade Católica de Lisboa, chegou até a fazer um estágio curricular na SIC. Dona de uma imaginação fértil, a falta de criatividade e flexibilidade do jornalismo fê-la trocar as notícias pela publicidade, ramo onde trabalhou durante quinze anos. A escrita, no entanto, acompanhou sempre o seu percurso, embora não dê para viver apenas dela. Atualmente, vive em Lisboa com o marido e os dois filhos, e criou a sua própria marca de t-shirts e óculos de sol em 2019. 

A escrita fez sempre parte de si? 
O bichinho da escrita sempre esteve presente. Escrevo um diário desde os sete anos, em cadernos com cadeado e com folhas a cheirar a morango. Acho que é daí que veio o  treino da escrita, nunca mais parei. No final de 2009, comecei a formar um romance na  minha cabeça e achei que era desta que ia experimentar escrever. Não só consegui escrevê-lo, como consegui publicá-lo. 

Foi com o livro Os 30 – Nada é Como Sonhámos que se tornou a primeira autora portuguesa a alcançar o Top 100 da Amazon. O que mudou? 
Foi há dez anos que publiquei o meu primeiro livro, em português. Após atingir o Top 100 da Amazon na categoria de Women’s Literature fui convidada para ser representada pela Bertrand, com quem ainda estou hoje, portanto abriu-me uma nova porta. Em termos de leitores, ajudou a criar uma base de fãs maior nas redes sociais, como no  blogue onde vou escrevendo algumas crónicas, artigos de opinião e contos. Acaba por ser bom ter uma audiência maior para o que escrevermos no futuro.  

Considera que obteve um maior reconhecimento no estrangeiro do que em Portugal? 
A escrita em Portugal não é muito valorizada, viver da escrita é algo que não se consegue. Sinto que ainda é difícil ser-se escritora, sobretudo para as mulheres. Embora as editoras estejam a fazer um enorme trabalho para dar voz às mulheres, vejo que existe uma barreira nos leitores e nos críticos. No fundo, se olharmos para o que nos  ensinam na escola, tirando a Sophia de Mello Breyner, contam-se pelos dedos quantas mulheres é que são estudadas. Na poesia é Florbela Espanca, na literatura não me lembro de estudar nenhuma escritora, nem sequer na faculdade onde tive três anos de literatura. Todos já lemos José Saramago ou Os Maias, mas depois chegamos às mulheres e existe um vazio enorme. 

Acredita, portanto, que ainda existe preconceito em relação às mulheres no mundo da escrita. 
Sim. Historicamente, as mulheres nunca tiveram oportunidade de publicar os seus livros, tinham que usar pseudónimos masculinos para serem levadas a sério. Criou-se essa ideia de que a literatura relevante, que vale a pena ser estudada, é escrita por homens. Esta ideia eterniza-se. Se na escola nunca lemos mulheres ou quando lemos é sempre no contexto infantojuvenil ou numa perspetiva mais ligeira, o nosso hábito de leitura mantém-se. Inconscientemente continuaremos com a ideia de que se foi escrito por uma mulher, trata-se de literatura “cor-de-rosa”, um romance, uma história de amor ligeira.  

Acha que existem sinais de mudança? 
É um preconceito que infelizmente ainda está instalado e acho que só vai mudar quando as mulheres começarem finalmente a ganhar prémios Nobel da Literatura. Quando as pessoas olham para a lista dos prémios Nobel até ao século XXI, faz falta ver mais do que duas mulheres na lista. Nas editoras, acho que era importante não colocarem as escritoras em categorias femininas. O meu Top 100 da Amazon foi na categoria de Women’s Fiction. Apesar de ter ficado feliz, preferia ter chegado ao Top 100 em literatura apenas. Literatura é literatura. Pode ser uma escrita mais densa, mais fácil, boa ou má. Se é de homens ou de mulheres, se é de pessoas trans, se é de chineses ou se é de negros, isso é compartimentar algo que não deve ser compartimentado. Eu quero ler uma história, não quero saber se é escrito por uma mulher ou por um homem.  

O que é um bom livro para si?  
Para mim, o mais importante para ser um bom livro são as primeiras 20 páginas em que a pessoa fica curiosa com a história e as personagens e vai lendo para descobrir onde vai dar. É importante despertar essa curiosidade no leitor e ter esse fator de envolvência, fazer com que o leitor sinta que faz parte da história, que conhece aquelas personagens. É isso que eu gosto de ler e é isso que gosto de fazer nos meus livros, gosto de tentar transmitir esse sentimento aos leitores. 

Capa do livro

Tem algum autor preferido? 
É muito difícil pois o meu percurso como leitora foi evoluindo. Um dos meus escritores preferidos é José Saramago, mas é um escritor que só comecei a ler aos 28 anos. Na minha altura, não era obrigatório ler O Memorial do Convento, e ainda bem que não, pois acho que é muito cedo para ter a maturidade necessária para ler uma obra  daquelas. Curiosamente, na minha lua-de-mel, a minha mãe e uma amiga que adorava Saramago disseram-me que o melhor livro para começar seria O Ensaio sobre a Cegueira. Li-o em dois ou três dias e nunca mais deixei de ler Saramago. Eça de Queiroz é incontornável para mim e gosto muito do Gabriel García Márquez, Jorge Amado e  Isabel Allende. Foi uma autora que acompanhou a minha adolescência e que me apresentou uma escrita mais feminista a que não estava habituada a ler na literatura  mais clássica, escrita por homens. Hoje em dia, gosto muito dos contemporâneos — Valter Hugo Mãe, Dulce Maria Cardoso, acho que é quase injusto escolher um só.  

No que se inspira quando escreve os seus livros? 
As personagens dos meus livros têm sempre uma inspiração real e contemporânea. A história passa-se sempre no século XXI. Acho que é isso que os meus leitores gostam porque sentem que são personagens que conhecem ou situações pelas quais já  passaram. A minha inspiração acaba por ser a vida real, histórias reais que vou ouvindo.  O meu último romance, Amanhece na Cidade (2017), é sobre um taxista que conheci durante uma viagem. Começou a chorar enquanto falava da ex-mulher e pensei que  tinha que escrever uma história acerca deste taxista que chora à frente dos passageiros. A partir daí, não quero saber mais pormenores e descubro quem era a mulher, porque  é que o deixou, qual é a rotina dele, que tipo de taxista é, e começo a construir uma personagem.  

Tem alguma rotina de escrita?  
Ao início da tarde é quando mais gosto de escrever, mas não tenho nenhuma rotina  específica. Ao conciliar com o trabalho na empresa, não me é possível estar a planear quando escrever e o quanto devo escrever. Às vezes digo que vou escrever um capítulo  por dia e acabo por não escrever nada nessa semana. Existe ainda a romantização do  ato da escrita, do escritor que se isola do mundo. Isso não existe. Os escritores também têm vidas cheias de pequenas distrações, afazeres domésticos e compromissos familiares que interrompem aquele estado que todos romantizam. 

Então escreve quando tem disponibilidade.  
Sim. O importante é escrever todos os dias, nem que seja uma página que daqui a um  mês não servirá para nada. É necessário ter essa disciplina (e quem corre por gosto não  cansa) porque se estivermos à espera do momento ideal, do dia em que o céu está  nublado, da casa em silêncio e do telefone sem tocar, nunca escrevemos. É tentar fazer o melhor com o tempo que temos e não arranjar desculpas. É pôr os fones e ver que tenho uma ou duas horas para escrever e escrevo.  

Capa do livro

Troca o silêncio pela música? 
Cada escritor tem o seu ritual, escrever com a mesma caneta, beber chá enquanto escreve. Eu gosto muito de escrever com música, quase sempre com Chopin. Prefiro a música clássica por não ter palavras que possam influenciar a minha escrita. Se estou numa fase mais furiosa da história, escolho Radiohead ou Arcade Fire, uma música que faça barulho e me inspire. 

Trabalhou durante muitos anos também como publicitária. Como surgiu trabalhar  nessa área? 
Segui Comunicação Social numa perspetiva de ser jornalista. Entretanto, durante o curso tive algumas disciplinas de publicidade e marketing e despertou-me interesse porque o jornalismo não me permite grande criatividade. Decidi tirar um curso de criatividade  publicitária e trabalhei quinze anos em publicidade em várias agências de anúncios para televisão, rádio e imprensa.  

Dedica-se exclusivamente à escrita atualmente? 
Não. Tenho uma empresa de uma marca de t-shirts e óculos de sol sustentáveis, onde só eu trabalho, chamada Not Yet Famous. Os óculos de sol são uma das minhas  perdições do mundo da moda e é um projeto que consigo gerir e equilibrar com a  escrita.  

Trabalhar como publicitária ajudou-a na criatividade necessária para os seus livros?
É curioso porque a minha profissão era fazer títulos (slogans) e depois chego aos meus  livros e escolher títulos é o pior. Às vezes dou um nome ao documento onde começo a  escrever o livro — o Amanhece na Cidade era “Táxi” porque a personagem principal era  um taxista — e depois torna-se um sofrimento porque já tenho na cabeça que o título  será “Táxi” durante todos aqueles meses que estou a escrever. De repente, já tem de  ser um título mais apelativo, que desperte a curiosidade ao leitor e simplesmente não consigo decidir. Mas admito que me ajudou muito na visão comercial do trabalho,  nomeadamente na promoção dos livros.  

Quanto tempo demora a escrever um livro? 
Em média, escrever demora dois a três meses. Antes disso há seis meses de “gestação”.  Gosto de fazer um esquema, quase como uma árvore genealógica em que defino a  personagem principal e as ramificações de familiares e amigos. Anoto quem são estas  pessoas, as idades, se usavam óculos, se viviam no 2.ºE ou no 2.ºD. Depois desses seis  meses, as personagens já são reais para mim. Quando começo a escrever, é tão natural  que já sei a cor dos olhos, a música que ouve e o seu chá preferido. No fim, chega a parte  de reler, a mais horrível. Chega-se a uma fase em que se diz ao editor que já não  conseguimos olhar mais para o texto pois já não temos distanciamento. Deixo passar dois ou três meses sem o ler, e depois sim, consigo perceber o que é desnecessário ou  se devo explorar mais esta personagem ou esta história. Todo o processo é bem mais  do que um ano. 

Tem algum projeto futuro em mãos?  
Estou a escrever um novo romance. Uma amiga da minha mãe, que acompanha uma  senhora octogenária, contou-me histórias acerca da senhora e eu pensei “pronto, não  preciso de mais nada, esta senhora vai ser a minha personagem”. Contudo, a pandemia afetou bastante a escrita do livro. Em casa com duas crianças pequenas, cheias de  energia, chegava ao fim do dia e abrir o computador para escrever estava  completamente fora do cenário. 

Disse que se inspira em histórias reais do quotidiano. O confinamento foi também um  entrave à inspiração necessária para escrever? 
Sim. Preciso muito de observar pessoas para escrever. A imaginação é ilimitada, mas é  necessário estar num jardim, ver como as pessoas andam, como as árvores se mexem,  ouvir os sons de fundo, questionar-me de onde vêm. São coisas que enriquecem a  narrativa porque ajudam a construir uma personagem secundária ou a estabelecer o cenário para uma cena importante. Ver a cidade e as pessoas fez-me muita falta no  confinamento. 

Além de manter um blogue, tem mais algum passatempo que goste de fazer nos  tempos livres? 
Pratico yoga diariamente há 15 anos. Gosto muito de ler, leio todos os dias. Gosto de  pintar a óleo. Gosto muito de praia, dá-me energia. Preciso muito de mar, ou pelo menos  de ver o Tejo, para o qual cresci a olhar. Sinto muita falta de estar na água e também pratico bodyboard há muito tempo, assim muito amadoramente.  

Se pudesse escolher apenas uma palavra para definir o que é a escrita para si, qual  seria?
Pensar. Para mim escrever é a maneira de processar o que sinto e o que não consigo por  vezes verbalizar. A escrita acaba por ser a maneira de processar tudo o que me  preocupa, o que se passa, o que imagino, a minha forma de pensar. Ou está por escrito, ou é como se não existisse. Para perceber o mundo, preciso de escrever.

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