Entrevista. Francisco Pêgo (ANEM): “As nossas escolas médicas estão bastante acima da sua capacidade para formar os estudantes de forma óptima”

por Ana Monteiro Fernandes,    18 Julho, 2022
Entrevista. Francisco Pêgo (ANEM): “As nossas escolas médicas estão bastante acima da sua capacidade para formar os estudantes de forma óptima”
Francisco Pêgo, presidente da Associação Nacional dos Estudantes de Medicina (ANEM) / Fotografia cedida gentilmente pelo entrevistado
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Entrevista realizada no âmbito da parceria da Comunidade Cultura e Arte (CCA) com a ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina) e com a Escola de Medicina da Universidade do Minho. 

“Neste momento, por exemplo, há cerca de uns dias, houve um despacho (…) para o próximo ano lectivo que determina que os cursos de medicina são todos convidados a aumentar 10 por cento o número de vagas para o próximo ano lectivo.”, avisa Francisco Pêgo, presidente da ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina), que defende que “as nossas escolas médicas estão bastante acima da sua capacidade para formar os estudantes de forma óptima” e que, por isso mesmo, a resolução não passa pelo aumento do número de estudantes de medicina ou mais cursos de medicina, mas na aposta na formação pós-graduada de um médico e na retenção de mais médicos especialistas, de forma a facilitar a entrada de um médico na especialidade. A entrada nas especialidades médicas torna-se, assim, no principal problema.

A ANEM já reuniu com os grupos parlamentares — à excepção da Iniciativa Liberal — e com o Ministério da Saúde, a fim de colocar as questões que deseja ver resolvidas. Tem tido dificuldade em reunir com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, “não podemos deixar de olhar com alguma preocupação para esta decisão que é tomada, particularmente, depois de estarmos, a partir do dia um de Abril, há mais de três meses, a tentar reunir com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Achamos, de facto, que o caminho para resolvermos estas coisas passa por uma reunião directa com o decisor. Infelizmente, com o Ministério da Ciência e Ensino Superior isso não tem sido fácil e receamos que esteja na base deste último despacho a sugerir, às escolas médicas, que aumentem o número de estudantes de medicina”. A Comunidade Cultura e Arte (CCA) falou com Francisco Pêgo sobre como as reuniões da ANEM, junto dos decisores, têm corrido, e porque é que, afinal, o aumento do número de estudantes de medicina, segundo a ANEM, não será uma solução para os problemas dos cuidados de saúde que Portugal atravessa.

Como é que correram as reuniões com os grupos parlamentares e com os ministérios e com quem já reuniram até agora?
Reunimos com todos os grupos parlamentares à excepção da Iniciativa Liberal, para já, tem havido alguma dificuldade de marcação. Reunimos com o Ministério da Saúde e estamos a ter dificuldade de marcação de reunião com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

Com o Ministério da Coesão Territorial ainda não houve avanços?
Ainda não. Era, sim, um objectivo nosso. Criámos, agora, o dossiê de conteúdos que queremos levar à reunião, mas ainda não fizemos um convite oficial porque decidimos dar prioridade às outras reuniões.

Quais foram os resultados dessas reuniões que tiveram até agora? Quais os resultados advindos daí?
Têm corrido bem, genericamente. A maior parte dos grupos parlamentares estão a ter aceitação sugerindo, eventualmente, de uma ou outra forma, como haveremos de proceder, uma vez que, também, é algo que parte do conhecimento deles, de como funciona o processo legislativo. Passamos, entretanto, para trabalho de casa — ou seja, fazer o follow up das reuniões através de e-mails, de telefonema — e ainda estamos nesse processo. Já delineámos qual a melhor forma, na perspectiva deles, para actuar num determinado sentido e estamos a fazer o trabalho de casa, à espera que eles consigam arranjar a disponibilidade para lidar com as nossas situações.

“A entrada na formação pós-graduada e a entrada no mundo do trabalho é que são os reais problemas na forma como temos médicos especialistas para prestarmos cuidados de saúde à população.”

Francisco Pêgo

Com o Ministério da Saúde, como correu em específico?
Com o Ministério da Saúde correu, particularmente, bem. Acederam às preocupações que nós mandámos e, ou perceberam que era uma preocupação directa lidada com eles e aí apresentaram uma proposta de solução ou, então, não era directamente direccionada a eles e, aí, encaminhavam para a Assembleia da República, eventualmente, para uma secretaria de Estado em particular.

Das vossas medidas, quais são as urgentes? O que gostariam de ver resolvido de imediato?
Havia uma que requeria uma actuação muito urgente, é um assunto muito particular, da atenção das nossas preocupações — o assunto da ponderação da nossa classificação de final de curso, naquilo que é o acesso ao internato, na seriação que é feita para o nosso internato. Existe, neste momento, um problema: o início da ponderação dos 20 por cento da classificação de final de curso está previsto acontecer, por lapso, em diferentes anos para diferentes pessoas e, nós, queríamos homogeneizar. Queríamos, a partir de determinado concurso, passar a adoptar os 20 por cento da classificação final de curso para toda a gente e, esse foi, claramente, um assunto que levámos ao Ministério da Saúde. Estamos à espera que nos próximos dias se consiga resolver.

Com os grupos parlamentares com que reuniram, eles mostraram-se disponíveis e atenciosos para com os vossos problemas para, depois, tentarem fazer algo?
Na generalidade, sim.

Dentro dos grupos parlamentares quais foram os que se mostraram mais receptivos à solução dos vossos problemas?
Acho que houve uma boa receptividade pela maior parte dos grupos parlamentares. Aquilo que mais define o que vamos conseguir fazer com cada um deles depende não tanto daquela hora que passamos com eles, no gabinete, na sala de reuniões, mas no follow up a fazer aos assuntos. Diria que a capacidade que cada um deles tem tido de fazer seguimento dos assuntos e de pôr em marcha o que nós estamos a propor tem sido bastante proporcional àquilo que é a capacidade do grupo parlamentar, ou seja, para os grupos parlamentares que têm maior número de deputados tem sido mais fácil darem-nos, rapidamente, resposta, feedback sobre as coisas. Para aqueles que têm menor representação parlamentar, às vezes respondem-nos, simplesmente, que não temos tido recursos suficientes para lidarmos com os vossos assuntos, voltaremos o mais cedo possível. Tem sido muito proporcional àquilo que é a representação parlamentar deles.

A ideia que a ANEM tem deixado patente é que o número de estudantes a aceder aos cursos de medicina não é um problema. O problema principal é o acesso à especialidade. O que torna o acesso à especialidade um problema?
Achamos que o número de estudantes de medicina em Portugal é um problema porque, neste caso, achamos que somos demasiados para a capacidade da formação médica que existe em Portugal. Achamos que as nossas escolas médicas estão bastante acima da sua capacidade para formar estudantes de forma óptima, achamos que os estudantes saem a perder, que os doentes saem a perder. Não achamos que algumas das soluções que são invocadas para a resolução dos problemas de saúde no nosso país, que de facto existem problemas de entrega de cuidados de saúde à nossa população, passe por uma tentativa, muitas vezes mediatizada pelo governo, de aumentar o número de pessoas que estudam medicina em Portugal, ou seja, que entrem na formação pré-graduada nas instituições do Ensino Superior. Achamos que isso é uma argumentação falaciosa que às vezes se faz tentar valer, mas que ignora o facto de que os reagentes imitantes para a entrega dos cuidados de saúde à população são, não o número de estudantes de medicina, mas os afunilamentos que acontecem ao nível na entrada na formação pós-graduada e no afunilamento que acontece na nossa capacidade de retermos especialistas nos serviços de saúde, tanto para prestar cuidados de saúde à população, como para serem capazes de formar novos especialistas. A entrada na formação pós-graduada e a entrada no mundo do trabalho é que são os reais problemas na forma como temos médicos especialistas para prestarmos cuidados de saúde à população.

“As estatísticas vão mostrando que temos médicos, formamos médicos acima das médias europeias, e quem nos governa vai tentar-nos convencer que isto não acontece e que a razão para não conseguirmos entregar todos os cuidados de saúde se resolve, facilmente, com o número de estudantes de medicina.”

Francisco Pêgo

Como é que resolveria o problema?
Não nos manifestamos em nome dos actuais médicos e muito menos dos restantes profissionais de saúde portugueses. Vamos, no entanto, perguntando aos nossos estudantes o que valorizarão na sua perspectiva de vida futura. Perguntamos, “olha, para que venha a ser apelativo para ti escolher uma via profissional ou outra, o que é que tu mais valorizarias?” Em Abril e Maio deste ano conduzimos um estudo em que isso foi perguntado tanto a médicos, como a estudantes de medicina e eles responderam, de forma mais inequívoca, o que valorizariam. As três principais coisas que tentamos trazer à comunicação social, as que apareceram no top 3, são a remuneração; em segundo lugar, o contacto com uma diversidade de patologias e de doentes e, em terceiro lugar, a capacidade que terão de conciliar a sua vida profissional clínica, digamos assim, com a actividade de investigação, ou seja, a actividade científica.

Podes fomentar melhor a posição da ANEM face a abertura de novos cursos de medicina?
Achamos que não é o caminho. Vou entrar naquela conversa dos funis novamente. O facto de termos mais estudantes, seja nas mesmas escolas de medicina, seja em novas escola de medicina a estudar, não vai, de nenhuma forma, resolver os problemas de afunilamento que dependem da decisão política, de eu conseguir cativar mais pessoas para se manterem nos serviços e, consequentemente, aumentar a idoneidade dos serviços para receber novos internos da especialidade, naquilo que é a formação pós-graduada. Achamos que aumentar o número de estudantes não é o caminho. Um dia, este pode ser o caminho, se um dia o país estiver a tomar as decisões políticas que façam com que haja o máximo aproveitamento daquilo que são os estudantes de medicina para se manterem nos serviços, para criarem idoneidade na formação pós-graduada e, ainda assim, chegar-se à conclusão que não estamos a formar estudantes de medicina suficientes; e se houver vontade política para criar cursos de medicina que permitam um bom rácio de tutor, estudante em condições e se o doente não estiver a ser posto em causa. Esse pode ser um caminho, um dia, e está na nossa tomada de posição, mas esse não é o caminho actual e desconfiamos que não seja o caminho nos próximos tempos.

Mas então, vale a pena referir que não são contra a abertura de mais vagas para os cursos de medicina, ou novos cursos, por capricho, mas porque vão agrava uma série de problemas que a ANEM aponta.
Exactamente, porque neste caso, olhando para a situação portuguesa actual, quando nos perguntam, é sensato aumentar o número de pessoas que estudam medicina em Portugal? Nós olhamos para aquilo que é alegado como um potencial benefício — o aumento do número de profissionais diferenciados que entregam cuidados de saúde à população — e dizemos isto é falso, porque não é o número de estudantes de medicina que, neste momento, é o reagente limitante para se determinar o número de especialistas que conseguem prestar cuidados de saúde em Portugal. Ou seja, o alegado benefício é falso. Implicações deletérias, essas há muitas. Se aumentarmos o número de estudantes a estudar num sítio que tem o mesmo tamanho de investimento público, que tem o mesmo número de doentes, que tem o mesmo número de tutores, vamos, claramente, degradar a qualidade da formação médica. Ora, se existem consequências negativas directas ao aumentar o número de estudantes de medicina na formação médica e no impacto que isso tem nos doentes; se no alegado benefício, é um benefício falso, porque o número de estudantes de medicina não é um reagente limitante para a entrega dos cuidados de saúde em Portugal, então sim, dizemos que esse não é, claramente, o caminho.

Qual é a vossa posição face ao curso de medicina da Católica?
Não temos uma posição específica quanto à abertura de um curso em específico. Dizemos, genericamente, que a abertura de novos cursos de medicina não é o caminho e que qualquer curso de medicina aberto tem de zelar pelos princípios de qualidade que devem reger a formação médica. No caso muito específico da Católica, abriu sobre um regime de acreditação condicional e é a A3ES que faz este tipo de considerações. A Católica abriu com a condição de ao final do ano cumprir determinados requisitos e, ao final de três anos — um momento importante porque é quando os estudantes passam para uma componente de ensino mais clínico, cumprir novos requisitos. Da parte da ANEM, aquilo que nós faremos questão é sempre advogar para que os critérios de qualidade, os critérios que a própria A3ES impõe quanto às condições para manter o curso aberto, sejam cumpridos. Se esses critérios não forem cumpridos, como é óbvio advogaremos pela cessação de determinado curso.

Uma das questões que a ANEM também foca é a questão da redistribuição geográfica. Daí quererem também falar com o Ministério da Coesão territorial. Podes falar um pouco sobre este requisito?
Novamente, as variáveis que vou introduzir não são novas. Achamos que o caminho para os cursos de medicina, para a formação pré-graduada, não é aumentar o número de estudantes, no entanto, como disse, há várias coisas que afectam muito a qualidade do ensino médico. Se dentro de um edifício tenho um número menor de estudantes de medicina, como é obvio, vão ter uma maior qualidade de ensino. Se para um igual número de tutores tiver um menor número de estudantes, também vou melhorar a qualidade de ensino. Se para um igual número de tutores tiver um menor número de estudantes, também vou melhorar a qualidade de ensino. Então, se eu, mantendo o mesmo número de estudantes de medicina, os conseguir redistribuir por mais doentes, por mais instituições, por mais tutores e se, no processo de passar estudantes de uma instituição para a outra, por exemplo, fazendo estágios rotativos entre as instituições, conseguir financiar este processo, então, se pelo mesmo número de estudantes eu tiver melhores condições de ensino, é expectável que a formação médica pré-graduada melhore. Este é um dos assuntos que pretendemos levar ao Ministério da Coesão Territorial porque já iniciámos conversações sobre que mecanismos de financiamento pode haver para isto, no ano passado, em 2021.

Há, além disso, um outro assunto que queremos levar a esse ministério, sobre a nossa prova nacional de acesso. Existe um dia durante o qual os estudantes que acabaram o sexto ano e que querem ingressar no internato médico se submetem a uma prova que, neste momento, define 100% da seriação para ingresso no internato médico e que, no futuro, vai definir, ainda, 80 por cento, o que é extremamente pesado ainda. O que acontece é que tem havido uma tendência de centralização dos sítios onde é possível fazer essa prova nacional de acesso e, neste momento, a nível continental, é apenas possível fazê-la em Lisboa, Porto e Coimbra, apesar de ter sido possível, no ano passado, fazê-la em todos os distritos onde existem escolas médicas. Achamos que, para um país que tem levantado tantas bandeiras da coesão territorial, é ridículo que se diga a uma estudante da Covilhã, de Braga ou Algarve, “nós somos todos iguais, mas vais ter de madrugar no dia em que vais fazer a prova mais importante e decisora da tua vida, para te submeteres à prova nacional de acesso. Achamos que isso é uma discriminação geográfica que não devia acontecer e, por isso, é um assunto que, também, levaremos ao Ministério da Coesão Territorial.

Todas estas falhas que vocês têm vindo a apontar, podem estar relacionadas com os problemas que tem vindo a lume, respeitantes ao SNS?
Sim, completamente. Tanto os problemas diagnosticados como as alegadas pseudoterapias que se tentam invocar para se resolver ou deitar para debaixo do tapete esses problemas. O que esteve muito em cima da mesa, por exemplo, o que esteve mediatizado, foi o facto de alguns serviços não estarem a cobrir determinadas escalas, neste caso, no serviço de urgência. Apesar de, na ANEM, não nos pronunciarmos, especificamente, sobre a melhor forma da gestão hospitalar garantir que essas escalas sejam cumpridas, a verdade é que isto, por um lado ou por outro, vai acabar por impactar o que estamos aqui a falar, ou seja, se não tenho condições para garantir que mantenho determinados médicos especialistas ou médicos internos num determinado serviço, claro que isso vai afectar o que é a capacidade de vir a formar, em termos de formação pós-graduada, os futuros médicos. Aquilo que está a vir a público são coisas que também nos preocupam porque sabemos que, também, está a ser posta em causa, em paralelo, aquilo que é a formação pós-graduada.

Depois, no âmbito das pseudoterapias que estão a ser invocadas para resolver isto, temos o que foi muito mediático, a tentativa de, através de decreto, alegar que estou a conseguir cobrir todos os portugueses com médico de família — que foi a decisão muito polémica que estava prevista em lei do Orçamento de Estado —  de, enquanto necessário, atribuir listas de doentes a pessoas que não têm formação especializada e que não são especialistas em Medicina Geral e Familiar. Se nós, enquanto ANEM, alegamos que a formação médica está, apenas, completa — e isto é um grande progresso da medicina em Portugal — quando temos formação pré-graduada mais formação pós-graduada, como é óbvio, não podemos ver com bons olhos que, para uma determinada especialidade, que é uma especialidade extremamente fracturante na sociedade portuguesa —, que é a capacidade de providenciar cuidados de saúde primários aos portugueses — seja possível, em termos governamentais, simplesmente ignorar que isso é um assunto sério e que os cuidados de saúde primários podem ser entregues por não especialista, que isso não vai ser um retrocesso civilizacional. Claro que vai ser, claro que vai ter impacto na saúde dos portugueses e que vai impedir, também, médicos de terminarem a sua formação.

Desde o início deste ano houve, sim, um aumento considerável de utentes sem médicos de família.
Claro que a Medicina Geral e Familiar não é aquela área que desperta notícias, como um qualquer acidente numa cirurgia ou de um determinado bebé que não foi bem acompanhado durante a gestação. Claro que isso tem mais impacto mediático, mas a saúde dos portugueses é, sobretudo, definida nos cuidados de saúde primários, que são cuidados que afectam, todos os dias, milhares de pessoas. Aí sim, se degradarmos a formação médica nesse ponto, estamos a pôr, seriamente, em risco a saúde dos portugueses.

Só para contextualizar, a Medicina Geral e Familiar é aquela que vai abrir as portas dos utentes ao SNS e que vai agir na prevenção.
Exactamente!

As notícias relatam quebras nas escalas de urgência, falta de obstetras, o número de utentes sem médicos de família aumentou. Mas depois, relatam que não há falta de médicos formados, esse não é o problema. Como respondem a isto, que parece ser contraditório?
Compreendemos que se as pessoas usarem, apenas, duas variáveis para medir isto, que é o número de estudantes de medicina e a capacidade de entregar cuidados de saúde, pode parecer uma coisa contraproducente. E, muitas vezes, os nossos governantes tentam tirar partido deste entendimento de duas variáveis para fazerem render os seus argumentos. No entanto, é aquele processo de que tenho vindo a falar. Entre uma variável e a outra, entre o número de estudantes que entram nos cursos de medicina e a entrega de cuidados de saúde à população, existe um processo de afunilamento que não deixa de passar de uma decisão política. É uma decisão política decidir se dou ou não os estímulos suficientes para os profissionais se manterem nos serviços, e para as pessoas serem especialistas nos serviços, isso é que vai entregar cuidados de saúde à população. Consequentemente, existe um processo de afunilamento que é determinado pela quantidade de especialistas que eu tenho e, consequentemente, a idoneidade formativa dos serviços que permite abrir vagas para a formação pós-graduada e, apenas passando por estes funis, é que uma pessoa que entra num curso de medicina pode prestar cuidados de saúde à população. Aquilo que muitas vezes se tenta fazer render é que apenas existem duas variáveis. Existe o número de estudantes que entram nos cursos e existe a prestação de cuidados de saúde à população quando, na verdade, existem aqui processos pelo meio, que têm um impacto directo, com os quais eles não se comprometem o suficientemente. Alegam, depois, que a culpa é de quem está a fazer ver às pessoas esta visão global da formação médica.

Na ANEM, gostamos de ser sérios nestas questões, por isso é que andamos há 40 anos a reunir com grupos parlamentares, ministérios, e decisores responsáveis por estas questões em específico. Gostamos de pôr números em cima da mesa e é importante perceber que, em Portugal, temos, neste momento, por cada mil habitantes, 5,3 médicos habilitados a exercer isto faz uma média da OCDE de, apenas, 3,6. Somos dentro da OCDE — que são países, genericamente, desenvolvidos, o segundo país com mais médicos habilitados a exercer per capita. Mesmo numa métrica mais próxima do que é o final da formação pré-graduada, ou seja, o número de médios graduados per capita, por cada 100 mil habitantes temos 15,8, quando a média da OCDE é de 13,5. As estatísticas vão mostrando que temos médicos, formamos médicos acima das médias europeias, e quem nos governa vai tentar-nos convencer que isto não acontece e que a razão para não conseguirmos entregar todos os cuidados de saúde se resolve, facilmente, com o número de estudantes de medicina. É necessário que, de facto, haja um investimento naquilo que é a formação pós-graduada, isso passa pelo investimento, pela manutenção dos profissionais nos serviços, para que estejam resolvidos os problemas de saúde em Portugal.

Como funciona, passo por passo, a formação de um médico?
A formação médica engloba uma formação pré-graduada e uma formação pós-graduada. A formação pré-graduada, que designamos por cursos de medicina — actualmente, são todos mestrados integrados em medicina, desde Braga até ao Algarve — e existe uma formação pós-graduada. Ou seja, após esses seis anos, existe uma formação pós-graduada que tem duas fases: uma formação geral que, antigamente, era designada como ano comum e que ainda tem muitas semelhanças a esse ano comum. Nessa fase, antigos estudantes, médicos recentes, fazem uma rotação por várias das principais especialidades médicas e, no final desse ano de formação geral, adquirem autonomia médica. Uma coisa simples como receitar uma medicação, apenas acontece quando o médico tem autonomia médica. Depois desta formação geral, entram na formação especializada, caso consigam aceder a ela, num processo que vai de quatro a seis anos — quatro para umas especialidades, cinco para outras especialidades, seis para outras especialidades, é o tempo que o médico demora para adquirir o grau de especialista.

Lá está, a falta de especialistas a exercer nos sítios idóneos para tal, dificulta o acesso à especialidade.
Aliás, é esse o problema e é aí que é colocada aos nossos governantes uma possibilidade de actuar. Eu posso actuar, cativar as pessoas a permanecerem nos serviços e aumentar a idoneidade que os serviços têm para receber já médicos na sua formação pós-graduada. Aí é que está a principal decisão, ai está o principal funil, aí está o principal reagente limitante — eu quero ou não quero criar mais médicos especialistas.

Aqui, estamos a falar na capacidade do governo e respectivo ministério conseguirem reter profissionais, pessoal médico, no SNS.
Aqui vale a pena comentar, particularmente, o termo SNS, porque, claro que, para nós, estudantes de medicina, interessa que haja especialidade na formação médica, que haja uma formação pré-graduada que desemboque numa formação pós-graduada. Essa formação pós-graduada, actualmente, é possível fazer em qualquer tipo de instituição de saúde que adquira idoneidade para tal. O que é que acontece, no entanto? O tipo de cuidados prestados no SNS e nos serviços privados é, ligeiramente, diferente. Nos privados, é monotemático, sem patologias diversificadas, com tratamentos repetitivos. Para um determinado serviço, pedir idoneidade para a formação pós-graduada, ele precisa de ter uma panóplia do tipo de cirurgias, tipo de patologias, por isso, é mais provável que um serviço público consiga adquirir idoneidade para a formação pós-graduada do que um serviço num hospital privado. Quantificando isto, das cerca das 1900 vagas na formação pós-graduada que foram abertas no último mapa, doze destas vagas eram abertas em serviços privados de saúde — proporcionalmente ao número de hospitais, número de doentes e número de profissionais que passam, é uma proporção muito pequena da formação pós-graduada. Com estas características diferentes, no entanto, é normal que os privados não tenham tanta facilidade em adquirir idoneidade para a formação pós-graduada.

A questão do Inventário Nacional dos Profissionais de Saúde, como ficou essa proposta nas reuniões que tiverem?
O Inventário Nacional dos Profissionais de Saúde é uma competência do Ministério da Saúde, através da Administração Central do Sistema de Saúde, da ACSS. Nós já levámos este assunto à Assembleia da República para serem feitas propostas de resolução no sentido de levar o governo a exortar isto. Já levámos esta ideia à própria ACSS, a quem tutela a ACSS, que é o próprio Ministério da Saúde, e vamos tendo, sempre, níveis diferentes de compromisso: “vamos fazer este ano, vamos fazer no próximo ano.” Até agora, passaram sete anos e o Inventário não está concretizado. Para nós, isto é um sinal de que alguém não quer diagnosticar e, quando alguém não quer diagnosticar, é porque não está, assim, tão interessado em tratar dos problemas de saúde em Portugal. Como é óbvio, continuaremos a insistir junto dos decisores para que ele seja concretizado. Até agora, não temos tido tanto sucesso.

Como irão actuar no futuro, quais as estratégias, caso os objectivos não forem atingidos?
Costumamos dividir em três formas de actuar: há as reuniões directas com os decisores, podemos actuar através das nossas redes sociais, através da comunicação social e, também, há o caminho de estarmos, publicamente, na rua a assumir determinadas posições. Já usámos as três formas. Claro que, idealmente, tentamos chegar a opiniões consensuais juntos dos decisores directos para determinado assunto, como estamos a tentar fazer junto dos ministérios. Há coisas, no entanto, que nos assustam. Neste momento, por exemplo, há cerca de uns dias, houve um despacho – há um despacho anual a dizer que instruções o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior tem para a evolução do número de vagas nos cursos de ensino superior em Portugal —  para o próximo ano lectivo que determina que os cursos de medicina são todos convidados a aumentar 10 por cento  o número de vagas para o próximo ano lectivo.

Não podemos deixar de olhar com alguma preocupação para esta decisão que é tomada, particularmente, depois de estarmos, a partir do dia um de Abril, há mais de três meses, a tentar reunir com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Achamos, de facto, que o caminho para resolvermos estas coisas passa por uma reunião directa com o decisor. Infelizmente, com o Ministério da Ciência e Ensino Superior, isso não tem sido fácil e receamos que esteja na base deste último despacho a sugerir, às escolas médicas, que aumentem o número de estudantes de medicina. A decisão por parte dos estudantes de medicina, escolas médicas e ordem é de repudiar este tipo de sugestão porque, de facto, achamos que o caminho não passa por aí e estamos bastante consonantes entre estudantes de medicina, conselhos de escolas médicas portuguesas e ordem dos médicos, especificamente.

Uma das coisas que acabaram por advogar, foi um maior investimento para as escolas de medicina.
Essa foi uma medida que levámos aos partidos políticos em Janeiro.

Esse aconselhamento de aumento de 10 por cento das vagas acabará por interferir com esse requisito e com tudo o que falámos aqui.
Exactamente. Isto agrava tudo porque vem em proporção, ou seja, se uma escola médica tiver um número maior de estudantes de medicina, vou ter esse número maior de estudantes de medicina em numerador, digamos assim, para o mesmo número de tutores, para o mesmo volume de espaço, para o mesmo tamanho de investimento público. Ou seja, todas estas coisas tendem a manter-se fixas, quando existe uma proposta para o aumento do número de estudantes.

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