Entrevista. Galopim de Carvalho: “Haverá um dia em que um copo de água valerá mais do que um diamante”

por José Malta,    3 Janeiro, 2024
Entrevista. Galopim de Carvalho: “Haverá um dia em que um copo de água valerá mais do que um diamante”
Galopim de Carvalho / Fotografia de Rui André Soares – CCA
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António Marcos Galopim de Carvalho nasceu em Évora em 1931. Doutorou-se em Sedimentologia pela Universidade de Paris em 1964 e em Geologia pela Universidade de Lisboa em 1968, onde foi professor da Faculdade de Ciências entre 1961 e 2001. É autor de vários artigos e livros de divulgação científica e também de ficção. Foi director do Museu Mineralógico e Geológico da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa entre 1983 e 1992, e do Museu Nacional de História Natural entre 1992 e 2003, onde liderou vários projetos de investigação, entre os quais o da Paleontologia dos dinossauros. Foram estes que fizeram com que ficasse conhecido como “o avô dos dinossauros”, um título talvez demasiado curto para alguém com tantos interesses que vão muito para além do seu objecto de estudo. Hoje continua a ser uma voz activa na ciência, sendo uma presença assídua em escolas, dando aulas e palestras, e seguindo apaixonadamente os mais variados interesses que tem. Recebeu-nos no passado dia 14 de Dezembro em sua casa, onde nos concedeu esta entrevista.

É um dos cientistas de maior renome em Portugal. Foi professor universitário, investigador, continua a exercer actividades de divulgação e de disseminação de ciência e continua a escrever obras de divulgação científica. Como é que surgiu o seu interesse pela ciência que preserva até hoje, em particular pela Geologia e depois mais tarde pela Paleontologia?
É muito fácil de explicar. Começo apenas por dizer que a Paleontologia nunca me interessou muito, ao contrário do que as pessoas pensam. Eu sou “o avô dos dinossauros” porque era director do Museu [Nacional de História Natural] e naquela altura fizemos umas oito a dez exposições sobre dinossauros. Eu tinha de dar a cara, falava para os jornais, para a televisão e para a rádio. Depois lutei muito pelas jazidas de Pêro Longo [Carenque] em Queluz e pelas jazidas da Pedreira do Galinha em Ourém. Esta actividade tornou-se mediática, com milhares e milhares de portugueses à espera que alguém salvasse essas jazidas. É aí que eu apareço como paleontólogo, mas não sou! Eu nunca estudei dinossauros. Escrevi dois livros sobre dinossauros com necessidade de divulgar e chamar a atenção do público no sentido de convergir todas as vontades dos portugueses, sobretudo das escolas, e do objectivo que eu tinha que era salvar aquelas jazidas. Aí é que eu apareço, não como paleontólogo, mas como divulgador da Paleontologia.

Do ponto de vista científico eu fui investigador durante os anos em que fui professor universitário num domínio da Geologia, que é a Geomorfologia e a Sedimentologia. Eu passo a explicar. A Geomorfologia estuda a evolução do relevo. Quando o relevo se destrói, o material de destruição, o lixo, vai-se acumular noutro sítio e aí formam-se os sedimentos. Há uma relação entre a destruição do relevo e a acumulação de sedimentos. Quando queremos estudar a história da Serra de Sintra, por exemplo, vamos para a Bacia de Colares e vamos estudar os sedimentos, o lixo que lá está. Faz-se isso também com a Serra da Estrela, indo à Bacia da Lousã. Faz-se isso em muitos outros casos por todo o mundo. Este é o tipo de investigação que eu fiz ao longo destes anos, numa dualidade de dois domínios que se complementam. 

Porque é que eu fui para Geologia? Eu nunca fui bom aluno. Era só bom aluno das disciplinas que eu gostava. Eu sempre gostei mais das coisas que estavam fora da escola. O liceu de Évora tinha caixotes cheios de pedras das minas. Hoje só temos duas ou três minas a trabalhar. A economia mundial já não permite a existências daquelas minazinhas que nós tínhamos. Em Portugal chegámos a ter cerca de cem a trabalhar, e essas minas davam materiais para os liceus. Na altura havia poucos liceus, havia só um por distrito e por isso poucos compradores e muitos fornecedores [risos]. Por isso, o liceu de Évora estava cheio desses caixotes. Um professor de ciências que eu tive no quinto ano, quando eu era um rapazinho com quinze, dezasseis anos, desencaixotou e eu ajudei a desencaixotar aquelas pedras todas. A certa altura ele perguntou-me “Queres ajudar-me a fazer um mini museu aqui no liceu?”. E eu disse-lhe que sim, fiquei entusiasmado com a ideia. Isto agarrou-me! Eu lavava as pedras, ele classificava-as e dizia “isto é um granito, isto é um quartzo, isto é um xisto, isto é um feldspato, isto é uma pirite…”. Ele fazia umas letras muito bonitas numas etiquetas e expusemos aquilo numas prateleiras lá do liceu. Fizemos uma colecção, que era a minha colecção também. 

Quando acabei o sétimo ano de liceu, vim estudar para Lisboa. Eu queria estudar Geologia e o meu pai disse-me “Não! Geologia não tem interesse absolutamente nenhum. Hoje em dia ninguém sabe o que é que isso é”. Estávamos em 1949 e vim para Biologia, mas eu não gostava de Biologia. Tanto que não gostava que não tive sucesso nenhum. Entretanto a tropa chamou-me. Como eu não estava a estudar e também não tinha emprego, fui alistado na tropa. Estava em Évora, tinha namorada, estava em casa dos meus pais, tinha um bom ordenado. Eu com dezanove, vinte anos, como alferes miliciano ganhava mais do que o meu pai, veja lá [risos]! Não havia guerra naquela altura e consegui chegar a tenente! Depois aconteceu o que acontecem a todos os milicianos, puseram-me na rua. Disseram-me “Já não te queremos cá mais, vai-te embora!” [risos]. E eu fiquei a pensar “E agora, o que é que eu faço?”. Na altura apetecia-me casar. Voltei para Lisboa, empreguei-me e matriculei-me no curso que eu queria. Isto em 1957, e casei-me também nessa altura. Fiz o curso como trabalhador-estudante e terminei com uma boa classificação. Na altura não havia concursos e o director do departamento perguntou-me se eu queria ficar. E fiquei lá 40 anos! Entrei em 1961, saí em 2001. E este é o resumo de uma vida.

Galopim de Carvalho / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Ficou conhecido então como o avô dos dinossauros”, não só pelas suas ilustres gravatas com dinossauros, mas também pela defesa e pela luta que tem feito pelo nosso património paleontológico como referiu. A mais icónica terá sido mesmo a “Batalha de Carenque” em 1986, onde foi encontrado um trilho de pegadas de dinossauros numa pedreira abandonada quando se projectava a construção da CREL. Conseguiu com que o projecto fosse alterado de forma a preservar esta jazida de pegadas, mas actualmente o local encontra-se ao abandono. Sente-se também um activista pela defesa do riquíssimo património paleontológico que Portugal tem?
Sinto-me é bastante frustrado porque se eu pertencesse a algum lobby talvez tivesse força, e não tenho. Naturalmente tenho mais força do que alguns dos meus colegas que nunca se mexeram. Mas a minha força, apesar de toda a intensidade da minha luta, não chega para resolver esses problemas. As pegadas em Carenque foram descobertas em 1986, mas só em 1990 é que comecei a tomar conta delas. Já passaram 33 anos, é uma meia vida e agora está num estado miserável! Recentemente pusemos uma providência cautelar. O tribunal condenou, e agora estamos à espera. Estas pegadas vão-se degradando, as ervas vão crescendo, as raízes dos arbustos estão a destruir a laje… É uma vergonha, mas é o Portugal que nós somos. Eu assumo a minha parte de responsabilidade nesta vergonha que somos em termos de preservação da Natureza.

“Sinto-me é bastante frustrado porque se eu pertencesse a algum lobby talvez tivesse força, e não tenho. Naturalmente tenho mais força do que alguns dos meus colegas que nunca se mexeram. Mas a minha força, apesar de toda a intensidade da minha luta, não chega para resolver esses problemas.”

Para além da defesa do nosso património paleontológico outra das suas lutas tem sido pela defesa dos professores. Tem mantido contacto permanente com professores de Geologia do ensino básico e secundário, tem sido um defensor acérrimo da classe docente e um crítico da forma como os professores têm sido tratados pelos nossos governantes. Como olha para o ensino do nosso país?
Com muita preocupação. Já existe falta de professores e a prova disso é que são cada vez menos os jovens a quererem escolher a profissão de professor. Para serem maltratados? Escolhem logo ir para o estrangeiro! Daqui a alguns anos já não teremos professores e estamos a arriscar o futuro do país. O futuro de um país depende sempre muito do grau de formação dos seus cidadãos e o Estado não olha para isso. Nós estamos a oferecer diplomas, mas não estamos a fornecer educação. Damos diplomas, mas não damos formação. Hoje quase não se pode reprovar. Os professores não podem reprovar e por isso passa toda a gente.

Há maus professores, mas há belíssimos professores também. Belíssimos professores que me chamam, com os quais eu trabalho e que são muito interessados. Conheço apenas uma amostra mínima, mas todos aqueles que eu conheço são muito bons professores. Existe uma clara iliteracia geológica nos jovens, muito devido ao facilitismo da escola que se tornou numa norma. Em que se facilita, se facilita e se facilita. Os meus netos estão agora uns no décimo primeiro e outro no décimo segundo ano. Não sabem nada de Geologia! O Mário Soares, com quem cheguei a andar no campo quando me convidava, não sabia peva de Geologia! O Jorge Sampaio também não sabia. Cheguei a ir com ele ao Brasil, fazia-me perguntas completamente ingénuas. O Cavaco [Silva], então, não sabe absolutamente nada nem de Geologia, nem de Biologia. Só sabe de números! E este rapaz muito simpático [Marcelo Rebelo de Sousa], que eu também conheço e que já me condecorou, também me confessa que não sabe nada de Geologia. O único político que conheci que sabia de Geologia é o Jaime Gama, que é açoriano. Falei uma vez com ele a propósito de uma homenagem que me fizeram na Assembleia da Républica. Ele falava de Geologia com algum conhecimento.

Grande parte dos portugueses não sabe nada de Geologia. Tenho lutado contra isso, mas não consigo. Querem estatísticas e não querem formação. O que está a acontecer no mundo das democracias é que o sucesso do feiticeiro ocorre devido à ignorância dos seus pares. Os governos preferem ter populações incultas, com os olhos no futebol, com os olhos nas telenovelas, com os olhos na literatura cor-de-rosa. Dar-lhes cultura não lhes interessa! Querem o poder porque são um clã. É a continuação da corte, onde só há povo e nobreza. E eu não pertenço à nobreza [risos]!

“Grande parte dos portugueses não sabe nada de Geologia. Tenho lutado contra isso, mas não consigo. Querem estatísticas e não querem formação. “

A crise da educação parece também ter transcendido para ciência, onde vemos investigadores em condições precárias, saltando de bolsa em bolsa sem conseguirem um contrato. Esta também é uma consequência da crise que há na educação?
É uma consequência das políticas do ministério da ciência. O Mariano Gago trouxe a cultura da ciência para o poder, e avançou com um exército vitorioso. Mas infelizmente faleceu. O ministério ficou sem chefe e hoje não sabe o que há de fazer nem tem vontade para fazer nada. Não é o ministro da justiça que pode promover a investigação científica, nem é o ministro da educação, nem o ministro da saúde. Quem pode promover é um ministério com armas para lançar um projecto para haver investigação num país. Nós estávamos assim com o Mariano Gago. Depois deixou de haver dinheiro para bolsas, deixou de haver instituições, os doutorados não têm emprego e como não têm emprego vão-se embora. 

A nossa crise na ciência decorre muito da morte do Mariano Gago. Ele foi uma estrela que surgiu num aparelho que estava a avançar vitorioso, ele fez muito. Eu também beneficiei muito da política científica do Mariano Gago, porque liderei projectos de investigação que formaram doutores, pessoas que progrediram e ficaram por cá. O Manuel Heitor não tinha o gabarito do Mariano Gago e esta senhora [Elvira Fortunato] não sei bem o que é que ela sabe fazer…

Galopim de Carvalho / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Completará 93 anos em Agosto [de 2024], é um exemplo de vitalidade e tem acompanhado a evolução dos tempos. Continua a escrever obras de divulgação, é presença assídua em escolas e em eventos, concede entrevistas, dá aulas e palestras, e brinda diariamente os seus seguidores do Facebook com deliciosos posts sobre ciência, cultura, actualidade, arte e também sobre culinária que é também uma das suas paixões. Qual é a sensação de se ser sempre um jovem?
Tenho o problema dos jovens que querem muita coisa e não conseguem [risos]. Tenho muita energia anímica, e percebe-se que tenho energia anímica pela minha maneira de falar. Mas as pernas não acompanham, as artérias são as de um velho. Sou jovem no pensamento, sou jovem no entusiasmo, sou jovem na parte intelectual. Sou criança até, e sinto que na minha vivência tenho atitudes de criança e de adolescente. Sou ousado e aventureiro como os adolescentes! Mas também sou cauteloso, sou ponderado e sou paciente. Por isso tenho as características todas, desde a infância à velhice [risos]. Tenho uma frase numa quadra que escrevi que é “Sou jovem no pensamento, embora o corpo envelheça”. E é isso, o que é também um drama porque ao contrário dos patetinhas tanto se lhes dá estar sentado como levantado. Não têm aspirações nenhumas…

Tenho algumas limitações, mas só desde que me jubilei é que aprendi a trabalhar com o computador. Tinha uma secretária que me fazia tudo. A partir de determinada altura comecei a ficar mais tempo em casa e a minha mulher comprou um computador. Ela já se tinha iniciado antes de mim e ensinou-me a trabalhar. Hoje eu já sei mais do que ela, porque já trabalho mais no computador. Mas foi ela que me ensinou a perder o medo. Tenho muitos amigos mais novos do que eu que não são capazes de mexer num computador. Sou aventureiro nestas coisas, mas há certas que não consigo resolver. Depois peço ajuda aos meus filhos quando cá vêm. Mas nunca têm muito tempo para estar ali uma hora ou duas a dar-me umas lições [risos]. E os meus netos, esses já mexem no computador como a gente já não mexe!

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Continua a trabalhar em prol do futuro das novas gerações, incutindo-lhes a paixão pela ciência, pela curiosidade e também pela vida. Isso é muito visível no entusiasmo dos mais novos perante a sua presença. Como espera ver o dia de amanhã para as gerações actuais?
Estou muito preocupado, muito pessimista. Sinto que o planeta está demasiado pequeno para a dimensão da população. É um formigueiro que já não tem comida para todas as formigas. Depois há um contraste dramático nas diferenças sociais, nas desigualdades. Toda a gente conhece esta história, “muito dinheiro para poucos, pouco dinheiro para muitos” como disse o Manuel Alegre. Acredite, espero que não seja na sua geração, mas talvez na dos seus netos ou bisnetos, em que um copo de água valerá mais do que um diamante. Nessa altura já não haverá diferença entre ricos e pobres. Estará tudo à espera de apanhar uma gota de água. Vai ser esse o declínio da humanidade. 

Há espíritos mais optimistas que dizem “Não, a ciência há de encontrar solução como tem encontrado”. Ninguém pensava que se pudesse transformar energia solar em energia eléctrica com as células fotovoltaicas. Com todos estes avanços da Física estamos a tentar encontrar alternativas à combustão dos combustíveis fósseis. Mas temos cada vez menos recursos. Por exemplo, há cada vez menos cobre para uma população a precisar cada vez mais de frigoríficos, a precisar de máquinas, a precisar de isto e daquilo… Agora também há a fibra óptica, que também resolve muitas coisas. A humanidade vai encontrando soluções, mas vai haver um dia em que tudo será irreversível. Sou pessimista, temo muito pelo futuro das novas gerações.  

Mas ao longo da sua vida tem sido sempre um optimista…
Sim, vejo o dia-a-dia com a preocupação de ser feliz e de fazer os outros felizes. Mas projectando a minha ideia de futuro, a minha preocupação é esta. E até é capaz de não ser tão longínquo. Talvez não dê duzentos ou trezentos anos à humanidade. Espero estar enganado, mas vai haver muito sofrimento. Vai haver um dia em que cada um só quererá apanhar o seu bocadinho de pão, e se calhar nem haverá pão! Repare que todas as espécies que surgiram na biodiversidade tiveram o seu auge e depois desapareceram. A espécie humana terá certamente um fim, porque é que haverá de ser diferente das outras? Talvez depois apareça um ser ainda mais inteligente com outras capacidades, algo parecido connosco mas mais desenvolvido. Mas também não sei, os futuristas é que pensam mais nessas coisas… Mas não se esqueça disto. Haverá um dia em que um copo de água valerá mais do que um diamante. 

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