Entrevista. Garth Greenwell: “Não quero ser um leitor que apenas lê livros que mostram o mundo que conheço”

por Miguel Fernandes Duarte,    15 Julho, 2018
Entrevista. Garth Greenwell: “Não quero ser um leitor que apenas lê livros que mostram o mundo que conheço”
Garth Greenwell / Fotografia de Beatriz Gaspar – CCA
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What Belongs To You, o romance de estreia de Garth Greenwell, publicado em 2016, acompanha a história de um americano que, enquanto professor de Inglês em Sofia, na Bulgária, se envolve com Mitko, um prostituto que ele conhece nas casas-de-banho do Palácio Nacional de Cultura, famoso local de cruising (prática de procurar parceiros sexuais em locais públicos). É esta relação entre os dois, o narrador não nomeado e Mitko, que dá o mote para explorar os temas prevalecentes da obra, como a transacção nas relações, a homossexualidade em regiões onde a homofobia é prevalecente, a incapacidade de sabermos o que outra pessoa pensa, ou mesmo o quanto da nossa vida está, à partida, limitada pelo local onde nascemos.

Considerado por diversas fontes, de entre as quais o famoso crítico de literatura da The New Yorker, James Wood, como um dos melhores livros do ano de 2016, figurou entre os nomeados para diversos prémios e está já traduzido em diversas línguas.

Apesar de não ter ainda disponível uma tradução para português, a Comunidade Cultura e Arte falou com ele em Lisboa, onde toma parte do Disquiet, um programa literário internacional para escritores com ligações a Portugal, onde Garth está a leccionar um workshop sobre ficção. Optámos por manter algumas expressões no inglês original, como cruising e queer, por falta de tradução adequada.

Gostava de começar por perguntar se pensas em ti como escrevendo na tradição queer.
Sim, uma das razões pelas quais escrevi este livro foi por querer estar em conversa com escritores como Marcel Proust, Thomas Mann, James Baldwin e Virginia Woolf, e acho que uma tradição é apenas um diálogo entre escritores através do tempo. O complicado é se começas a falar em como a tradição queer é importante para ti, enquanto artista, e, aí, há um certo tipo de audiência que se questiona se isso é limitador ou se isso quer dizer que, de certa maneira, não estás a falar para uma verdade humana mais ampla, mas acho que isso é apenas um erro sobre a arte e sobre como a arte funciona. Uma das razões pelas quais gosto da metáfora do diálogo é porque é muito fácil de perceber como, tal como os seres humanos, os livros participam em várias conversas ao mesmo tempo. Parece-me muito claro que esses escritores da tradição queer, como o Mann, o Baldwin e o Bernhard, são escritores que falam mesmo no centro da condição humana e que, de maneira nenhuma, serem queer limita a universalidade deles.

E pensas que serias capaz de escrever este livro se não fosses, tu próprio, gay? É possível escrever sobre algo que não se é ou que não se tenha experienciado na primeira pessoa?
Acredito veementemente que é possível escrever além da nossa própria experiência. O que é facto é que, na América, e não sei como é essa conversa em Portugal, estamos num ponto onde muitas pessoas estão a questionar essa possibilidade, especialmente a possibilidade de escrever de uma posição de menor privilégio que a nossa. Uma espécie de escrever através de diferenças de privilégio, de classe, de raça, de sexualidade. Penso que essa sensação de ser impossível escrever algo que não é experienciado na primeira pessoa é, na verdade, o sintoma de uma certa degradação do nosso sentido do que é ser humano, e parece-me revelar um certo desespero moral. Se não conseguimos imaginar-nos nas experiências dos outros, se pensamos que aquilo que a nossa experiência humana partilha é muito menos que aquilo que não partilha através dessas fronteiras, então acho que aceitámos uma visão do mundo na qual há muito pouca possibilidade de solidariedade e de empatia, e acho que a arte tem até uma responsabilidade de lutar contra esta visão do mundo. Para mim, um dos mais importantes livros sobre a experiência queer nos anos recentes é o A Little Life da Hanya Yanagihara. Ela não é nem um homem nem uma mulher queer e escreve a vida interior de homens gays de uma maneira que sinto ser reveladora de mim mesmo. É isto que é tão importante na literatura e o porquê de a literatura me parecer algo digno ao qual dedicar a minha vida. Na Chimamanda Adichie eu sinto que algo me está a ser revelado acerca de mim mesmo, leio Horácio, Cátulo e Pessoa e sinto que algo me está a ser revelado acerca de mim mesmo. As vidas destas pessoas nada têm que ver com a minha e, mesmo assim, a grande alquimia da literatura é precisamente essa de, ao embrenharmo-nos numa vida concreta, chegarmos a algo universalmente comunicável.

Talvez agora exista uma certa preocupação com a identificação do leitor com o livro, e, sendo isso importante, claro, pelo menos para mim, ler livros com personagens com as quais não me identifico é muito mais poderoso.
É importante que as crianças queer possam ler livros com personagens queer, mas também acho que é importante que não nos tornemos numa sociedade na qual apenas nos queiramos ver a nós próprios, ou onde estejamos apenas interessados em ver as nossas histórias representadas. Vejo nisso uma certa distopia, não consigo imaginar-me enquanto um leitor que apenas quer ler livros que me mostrem o mundo que conheço, seria terrível.

“What Belongs to You”, a estreia literária de Garth Greenwell

Mudando um pouco o assunto, o que torna o cruising algo tão excepcionalmente queer?
De facto, acho o cruising algo radicalmente queer e acho que isso é por termos ficado cada vez melhores a criar existências divididas por linhas de raça, nacionalidade, e, certamente nos Estados Unidos, especialmente de classe. E o cruising, de certa maneira, esculpe estas intimidades a partir do espaço público no qual estas linhas estão misturadas e nas quais se pode ter a experiência do desejo ao percorrer estas linhas. Gosto muito do que a grande poeta americana Audre Lorde escreveu acerca do Eros, do sentimento erótico enquanto impulso que possibilita atravessar fossos de privilégio, de raça, de classe, de género, e olhar para o outro com algo que não o medo, olhar com desejo, que é uma muito melhor base para a interacção humana que o medo. Acho que uma das razões pelas quais há uma tão grande suspeição sobre o desejo é que este não obedece a estas divisões nas quais organizamos as nossas vidas, e, de facto, há precisamente nesse desejo um elemento que adora trespassá-las. No minuto que se desenha uma linha, há algo no eros que quer saltar sobre ela. Penso na minha própria experiência de cruising no Kentucky no início dos anos 90, quando o Kentucky era ainda um espaço altamente segregado. Era certamente segregado por classe, era segregado por mim por idade, eu era um rapaz de 14 anos, não tinha grandes oportunidades de falar com homens de 40 que não pertencessem à minha família, e, no entanto, nos parques fiz amizade com estas pessoas, e a razão pela qual o meu romance começa numa casa de banho é porque acho que era o único local onde alguém como o meu narrador poderia conhecer alguém como Mitko e ter um encontro que pudesse servir como a base do tipo de relação que eles têm.

Achas que, com o ser-se queer a tornar-se cada vez mais normal, o cruising enquanto esse local de excepção pode, de certa forma, desaparecer?
Isso é algo que é frequentemente dito. Acho que é fácil exagerar, o cruising não vai desaparecer, até porque o grindr é cruising, o tinder é cruising. Mas acho que é importante enfatizar o quanto esse género de cruising físico à moda antiga sobrevive, e o quanto o faz ao lado do cruising digital, e o quanto o faz mesmo nos locais de maior privilégio queer. Na 7.ª Avenida, em Nova Iorque, a apenas dois quarteirões das discotecas de Hell’s Kitchen, tens tipos nas lojas de vídeo com os seus telefones e as mãos no grindr. A questão é precisamente se o cruising no grindr é o mesmo que ir a uma loja de vídeo ou a um cinema ou a um parque, e eu não acho que seja, porque o grindr é uma espécie de gentrificação do cruising. Se estás em Manhattan, num centro urbano densamente povoado, no grindr vais apenas ver as pessoas do teu quarteirão. E, aliás, no grindr podes estabelecer filtros de toda a espécie e dizer, portanto, que apenas queres olhar para pessoas de determinada raça, de determinado tipo de corpo, de determinada posição sexual, e eu acho que todas essas são formas nas quais o desejo se torna sobre-determinado, e o que é fascinante no cruising é o quanto preserva um espaço no qual o desejo nos pode surpreender. Posso pensar “Gosto de determinado género de homem” e depois, no entanto, ao ver certo homem no cruising, pela forma como ele cheira ou se move, pelo som da sua voz, o meu desejo surpreende-me. E isso, para mim, é a possibilidade revolucionária do desejo.

Acho também que alguma da retórica contra o cruising é na verdade outra coisa. Pode dizer-se que é uma questão de moral, de saúde ou doença, mas depois essas mesmas pessoas, e muitas vezes são homens gay jovens que expressam nojo perante a ideia de cruising numa casa de banho como aquela onde começa o meu livro, vão falar das suas excitantes experiências sexuais que tiveram com outros homens nos balneários do seu ginásio. Vais a qualquer ginásio em Manhattan e há imenso cruising a acontecer nos balneários, mas a diferença entre isso e a casa de banho pública é que nesse local todos pagaram duzentos dólares por mês para serem membros. Pelo que, na verdade, esse nojo face ao cruising não é uma questão de higiene, até porque esses balneários não são locais super limpos, não é uma questão da moral por se ter sexo com alguém que não se conhece, nem tão-pouco de doença, porque ninguém está a fazer testes de VIH naqueles balneários. O que é é uma questão de classe, nojo face a pessoas pobres, e acho mesmo que nos Estados Unidos isso é algo que a comunidade gay masculina tem de enfrentar, parece-me altamente perturbador. O meu próximo livro chamar-se-á Cleanness [Limpeza] e uma das suas principais preocupações é precisamente o que é isso de chamar a certos locais ou a certas pessoas limpas ou sujas, ou aquilo que realmente dizemos quando dizemos isso.

É ficção?
Sim, é ficção. Deve provavelmente sair em 2019, acabei de o entregar à editora para o editarmos.

Em locais subterrâneos e degradados, como as casas-de-banho públicas, onde a vida é mais difícil que em locais como os balneários de que falavas, talvez se encontre até uma maior riqueza humana que naqueles locais onde só vemos pessoas como nós próprios. Gostava que falasses um pouco mais acerca da forma como um local como esses criam um homem como Mitko.
Essa é uma questão complicada e, de certa forma, acho que as únicas ferramentas que tenho para responder a uma questão como essa são as ferramentas da ficção, o livro é a resposta a isso. Estava a falar desta versão idealizada do Eros enquanto força capaz de atravessar barreiras, mas também acho que é uma versão romântica, e que, na verdade, estas fronteiras são muito duradouras. Recuso-me a aceitar uma visão da humanidade que diz que estas fronteiras não podem ser atravessadas, mas também acho errado fingir que não são importantes ou que não são, de certa forma, determinantes. Acho que o Mitko é muito um produto do local onde nasceu, tal como o narrador. E, de certa forma, o tema de qualquer livro que trate o americano no estrangeiro, que é um dos grandes temas da literatura americana, é acerca da descoberta disso mesmo, a descoberta de quanto da personalidade de cada um é formada pelo local onde se nasceu e pelo estatuto desse país no mundo. Há um certo horizonte de possibilidades traçado sobre a vida do Mitko simplesmente por ele ali ter nascido. Essa gama de escolhas é muito diferente da do narrador. Ao mesmo tempo, também quero contrariar a ideia de que não há ali qualquer escolha, ou que o Mitko não tem qualquer capacidade de decisão. Em algumas discussões do livro, quando o Mitko é referido simplesmente enquanto sem-abrigo, ou quando é sugerido que ele faz determinadas coisas apenas por necessidade, isso não é bem verdade. O Mitko tem uma família, ele tem uma casa em Varna onde escolheu viver. Eu estou interessado nas formas através das quais, mesmo com um campo de acção mais reduzido, o Mitko é ainda um agente, que toma decisões acerca da sua própria vida. E acho que são decisões bastante corajosas. Ele é alguém que conseguiu ganhar a vida enquanto pessoa queer num local onde isso é extremamente complicado, e acho isso admirável.

Garth Greenwell / Fotografia de Beatriz Gaspar – CCA

A relação entre o narrador e o Mitko é uma que poderia apenas ser vivida entre personagens masculinas, por existirem particularidades que nunca poderiam ser transferidas para uma prostituta feminina, mas também porque há uma luta de poder entre eles, sente-se muito isso ao ler o livro. E acho que, ao saber que do outro lado se tem um homem como nós, isso torna mais difícil fantasiar com quem se tem à nossa frente. Sabe-se o que é ser aquela pessoa, de certa forma.
Hmm, pergunto-me se será mesmo assim. Acho que tens razão, que a história seria diferente caso não fosse entre dois homens. O trabalho sexual é estruturalmente diferente, acho, num meio totalmente masculino. Os papeis são muito mais fluidos, muitos homens gays já se encontraram de ambos os lados da transacção, de uma forma que não me parece que muitos homens que tenham tido sexo com prostitutas femininas se tenham virado para trás e tornado eles próprios trabalhadores sexuais, ou vice-versa, enquanto isso acontece imenso na comunidade queer. Acho que há lutas de poder em todas as relações entre seres humanos, é verdade que uma das formas de poder de que o Mitko dispõe é uma que uma trabalhadora sexual feminina tem menos probabilidade de ter, que é maior acesso à violência. Algumas vezes o narrador tem medo de Mitko e, quanto a mim, com razão.

Fala-se muito da violência dos clientes homens para com prostitutas, e, acontecendo isso também entre homens gay, é muito maior a possibilidade do prostituto abusar do cliente.
Acho que, de qualquer vez que uma trabalhadora sexual feminina vai num encontro com um homem, sofre de um enorme risco de violência. Quando um trabalhador sexual masculino vai num encontro acho que é o cliente quem sofre de um enorme risco de violência. Muitas vezes os clientes masculinos são agredidos ou mortos, podemos pensar no Pasolini ou em tantos outros homens. Ao mesmo tempo, no entanto, não tenho assim tanta certeza quanto ao que disseste sobre quando são dois homens saberes como é ser a outra pessoa. Na verdade, acho que somos sempre infinitamente misteriosos uns para os outros. Penso na minha relação com o meu companheiro e há um imenso mistério nele. Há sempre algo mais para descobrir no outro, essa pessoa pode sempre surpreender-nos. Por um lado, acho que isso é um elemento necessário no amor, a sensação de que o mistério na outra pessoa é inesgotável. Por outro lado, acho que é uma sensação de desespero, e acho que esse é um dos mais profundos temas de What Belongs to You, e de praticamente tudo o que escrevo, que é nunca conseguires ter a certeza que estás dentro da mesma história com outra pessoa. E isso é tão verdade para esses dois homens que se conheceram numa casa-de-banho como para um casal que está junto há trinta anos. Não temos acesso não mediado a outro ser humano, à sua consciência. Não sabemos o que a outra pessoa sente nem em que história está.

Há no livro imensa conversa acerca de transacções, claro, e no início o narrador instrumentaliza o Mitko para que este seja um recipiente para o prazer que ele deseja e nada mais. Parece-me que é na altura que ele consegue ir além disto que a narrativa realmente começa, mas queria também perguntar-te se a transacção pode ser meramente sexual ou se é também humana. E o facto de pagares por algo diminui a relação? Torna-se menos importante e menos real simplesmente por envolver dinheiro? Porque me quer parecer que, no fundo, todas as relações são uma espécie de transacção.
Também acho isso e essa é uma das razões pelas quais eu penso que este romance é um romance universal. Apesar de ser acerca de uma relação que começa com uma transacção e uma casa-de-banho em Sofia, Bulgária, penso que a transacção é um elemento presente em todas as relações. Há uma frase no início na qual o narrador diz “Always we desire too much, or not enough, and compensate accordingly” [“Desejamos sempre demais, ou não o suficiente, e compensamos em conformidade”]. O sexo é um acto de comunicação extremamente complicado e estamos sempre a pedir e a oferecer algo. Claro que o trabalho sexual torna isso muito claro por um lado, mas é, na verdade, radicalmente pouco claro no romance. Uma das questões levantadas pelo título What Belongs to You [Aquilo Que Te Pertence] é a questão de o que é que se compra ou aluga quando se paga a alguém por sexo. O que é que não se pode comprar ou alugar, que pertença a Mitko de uma forma que ele não possa colocar à venda? Trocam, estes homens, várias outras coisas além de sexo. Penso naquilo que para mim é um momento de extrema intimidade entre eles, quando o Mitko conta ao narrador a história da sua infância e a da sua primeira relação. Também isso é uma transacção, também isso é o Mitko a oferecer algo ao narrador que não está dentro das margens do contracto que eles estabeleceram, em termos de serviços. Espero que o livro nunca aparente que o Mitko e o narrador possam viver além da transacção, uma espécie de Pretty Woman, em que, de repente, eles estão nesta outro esfera de emoção.

Não acho que o faça [risos]
Sim, não acho que seja o Pretty Woman [risos]. A relação deles é, ao mesmo tempo, estruturada e deformada por isso, mas nunca se esgota nisso. Há momentos em que ultrapassa as margens dessa transacção, e são precisamente esses momentos entre eles que me interessam.

O narrador aprende búlgaro, e à medida que o romance prossegue, por várias vezes lemos uma expressão em búlgaro e o seu equivalente em inglês, uma espécie de tradução. Mas mais tarde passa a existir uma certa expectativa da tua parte, parece-me, de que não mais seja necessário referir a tradução, que, enquanto o narrador vai aprendendo as palavras, nós também o façamos. No fim de contas, se compreender alguém se pode comparar a compreender uma língua diferente da nossa, quando essa pessoa que tentamos compreender também não fala a mesma língua que nós, deparamo-nos com a versão extrema desse problema de compreensão. É necessário compreender tanto a pessoa como a língua, e isso é dificílimo.
Em primeiro lugar, espero que alguém que leia o meu livro de facto aprenda umas palavras de búlgaro, acho-a uma língua belíssima, tal como o português. É a minha língua favorita. Adoro aprender línguas e adoro falar outras línguas, sou fascinado pela experiência de falar uma língua que não se fala fluentemente, que é também uma constante transição entre duas línguas na nossa cabeça, e esse espaço de consciência, em que se está constantemente em transição entre duas línguas, é absolutamente fascinante para mim. Da mesma forma que o trabalho sexual torna evidente o tipo de transacção que penso estar presente em qualquer relação, penso que este tipo de diferenças linguísticas entre as duas personagens torna também evidente o tipo de mal-entendidos presentes em qualquer relação. E não apenas isso mas o facto do próprio significado ser algo extremamente complicado de capturar através da linguagem, e acho que ter uma personagem que fala uma língua desconhecida de certa maneira exagera isso e torna-o mais evidente. Também acho que cumpre outra função no livro porque o narrador do romance, a lição central que aprendeu acerca da sua vida foi a vergonha. E penso que, em resposta a isso, ele construiu certo tipo de defesas, das quais a principal é um uso da linguagem, uma forma de falar, que ele associa à dignidade, a uma certa elegância de expressão, uma certa mestria do idioma. Esse é o tipo de defesa intrincada que ele construiu à sua volta e o facto de, com o Mitko, ter de falar através desta língua em que fala como uma criança, onde essas diferenças lhe são arrancadas, é verdadeiramente crucial e uma das razões pelas quais a relação se torna, para ele, tão decisiva. Arranca-lhe as defesas e torna-o vulnerável perante o Mitko de uma forma que, caso contrário, não estaria.

Garth Greenwell / Fotografia de Beatriz Gaspar – CCA

Voltando a falar sobre a narrativa do americano no estrangeiro, não interessa durante quanto tempo o narrador viverá na Bulgária, ele sabe que a sua estadia lá é apenas temporária. Mas, para o Mitko e para os outros, aquela é a vida deles, permanentemente, e, não se sendo ou rico ou brilhante, não há muitas formas de escapar a ela. Para mim um dos momentos mais devastadores do livro é precisamente quando, perto do fim, num comboio, o narrador não consegue deixar de imaginar o pequeno menino búlgaro que tem a seu lado como o Mitko quando este era novo, uma espécie de premonição do futuro daquele menino, quem ele será quando crescer. O momento em que se apercebe que aquele menino feliz que ali vê à sua frente pode crescer para ser um homem tão perturbado.
Sim… As crianças tomam um papel neste livro que, sinceramente, me surpreende. As crianças não são uma grande parte da minha vida, não tenho filhos nem quero ter filhos, e, no entanto, dei por mim, especialmente nessa antepenúltima cena do livro, nesse comboio, que é uma cena realmente crucial para o livro, o momento em que senti que o livro era um romance. Fiquei surpreendido que tenha envolvido tanto uma criança, mas, claro, olhamos para qualquer criança e vemos uma espécie de potencial ilimitado. Parece que deveria ser o caso de muito poucas portas estarem fechadas para tal criança, mas, no entanto, tanto das nossas vidas é determinado pela estúpida sorte de onde nascemos. Penso que esse sentimento de sorte não merecida é um dos temas profundos deste livro e, novamente, acerca de praticamente tudo o que escrevo. Penso muito acerca do lugar de onde venho, o Kentucky, que era um lugar muito tóxico para se ser gay e um local onde eu não sobreviveria caso lá tivesse ficado, não há qualquer dúvida na minha cabeça em relação a isso. E escapei pela mais estúpida das razões, que era conseguir cantar e uma professora do secundário ter ouvido qualquer coisa na minha voz, começado a dar-me lições de canto depois das aulas nesta escola pública, e depois me ter trazido um formulário para um colégio interno fora do estado. Deu-me uma espécie de bilhete dali para fora. É a mais estúpida das razões. Eu era um rapaz suicida desesperado, estava a ter o sexo mais imprudente e auto-destrutivo. Aí está outra sorte não-merecida, não há qualquer razão para eu não ter contraído VIH, e isto nos tempos em que não existia qualquer tratamento. Praticamente todos os meus amigos ficaram doentes. E, portanto, o romance que escreverei a seguir é sobre o Kentucky e sobre dois rapazes e, em certa medida, uma espécie de repetição deste tema. Porque, claro, as mais estúpidas coisas permitem a sobrevivência, e são tão ofensivas para qualquer sentido de moral ou justiça. O facto de conseguir cantar permitiu-me escapar deste lugar e ir para um lugar onde, de repente, estava rodeado de gays e artistas, e ganhei um sentido totalmente distinto do que era possível na minha vida. E, no entanto, para tantos dos meus amigos, isso não aconteceu… Em qualquer caso, é profundamente ofensivo para qualquer visão moral do mundo que tanto dependa do mais estúpido acaso. Onde se nasce, o facto de se conseguir cantar, o facto de se conseguir escrever, o facto de se ser bom a matemática.

E hoje em dia, achas que é diferente para os gays nascidos no Kentucky ou na Bulgária?
Sim, estes lugares estão a mudar, mas acho que é muito fácil exagerar o quanto mudaram. Acho que na América, hoje em dia, estamos a confrontarmo-nos com o facto de certas mudanças que começámos a tomar como garantidas estarem, na verdade, incrivelmente em risco. A nova composição do Supremo Tribunal dos EUA põe as liberdades civis em grande risco. Mas é certamente verdade que há uma mudança, eu cresci antes da internet. Uma das coisas inspiradoras na Bulgária foi o quanto pessoas que viviam em locais muito isolados conseguiam, de certa forma, construir uma comunidade na internet, e efectivamente acho que é mais difícil para as pessoas, agora, mesmo em locais extremamente homofóbicos, desconhecer que há lugares no mundo onde outro tipo de histórias estão a ser contadas. Isso não quer dizer que a homofobia não deixe marcas, mas acho que a minha vida teria sido diferente. Tornou-se muito diferente quando tinha 14 ou 15 anos e li o James Baldwin, esse foi o meu primeiro vislumbre de um mundo diferente.

Que livro, já agora?
Foi o Giovanni’s Room, que não é sequer um livro esperançoso acerca de se ser gay e é, na verdade, um livro profundamente homofóbico, mas é um livro no qual um amor queer tem dignidade e isso foi transformador para mim. Num mundo onde há programas como Modern Family e Will & Grace, espero que rapazes queer, pelo menos na Europa e nos EUA, possam encontrar visões da vida gay que tenham dignidade. Ao mesmo tempo, e outra razão pela qual é importante não exagerar os ganhos tidos em lugares como esses, é também verdade que um jovem negro nos Estados Unidos que tenha sexo com homens tem uma probabilidade de um em dois de, ao longo da vida, contrair HIV, que é a taxa de transmissão de HIV mais alta do mundo. E, portanto, é importante relembrar, mesmo nestes locais de maior privilégio para pessoas queer, ou maior segurança relativa, quão relativa essa segurança é, e quão desigualmente é distribuída. Ser um homem branco gay em Nova Iorque é muito diferente de ser um homem negro gay em Nova Iorque, ser um homem negro gay com dinheiro em Nova Iorque é muito diferente de ser um homem negro gay sem dinheiro em Nova Iorque. Todas as nossas identidades são interseccionais e, portanto, cruzadas por outras, e essas outras determinam também os nossos horizontes de possibilidade.

Voltando à Bulgária, como foi o livro recebido por lá?
O livro saiu em Outubro de 2016, e estive lá durante um mês para ser parte da conversa, e foi verdadeiramente esmagador. Foi, de longe, o aspecto mais comovente de ter publicado este livro. Disse à minha agente nos Estados Unidos que, quando ela estivesse pronta para começar a vender direitos ao estrangeiro, búlgaro seria o mais importante, e ela de certa maneira resistiu um pouco a isso porque, obviamente, não há dinheiro, e eu disse que era verdadeiramente importante para mim que o livro fosse publicado lá. Foi difícil encontrar uma editora, as grandes editoras não queriam publicá-lo, não lhe queriam tocar.

Por causa do tema?
Sim, apenas conversei com um deles, alguém que conhecia, e ele, um dos maiores editores da Bulgária, disse-me algo espectacular “Adoro o teu livro, é espectacular, não há qualquer dúvida, que livro tão bom. Mas não penso existir qualquer razão para o publicar na Bulgária neste momento.” E eu fiquei, como assim não há qualquer razão para o publicar na Bulgária? Mas sim, não lhe queriam tocar por causa do tema, e depois esta pequena editora, que é gerida por um casal gay e que publica maioritariamente traduções de literatura gay, publicou-o com uma capa totalmente sem escrúpulos, é de longe a capa mais sexy do livro. Conseguimos ter uma espécie de grande lançamento para o livro devido à recepção que tinha tido nos EUA e em Inglaterra, e eles conseguiram que o lançamento fosse no Palácio Nacional de Cultura, a apenas alguns metros do local onde começa o livro, num espaço lindo cheio de pessoas, a maior parte queer, de todas as idades, desde miúdos do colégio onde dei aulas até estes homens gays mais velhos que vieram falar comigo a seguir acerca de como, sob o comunismo, o único local onde conseguiam encontrar-se com outros homens gays eram as casas-de-banho, e havia este casal gay que se tinha conhecido numa casa-de-banho há trinta anos atrás, e foi simplesmente comovente. Tinha antecipado uma resposta muito negativa ao livro por causa do tema, e houve alguma. Houve muito interesse no livro, por um lado porque sempre que algo acerca da Bulgária desperta muita atenção algures isso os interessa, e depois porque não há muitos livros acerca da vida gay na Bulgária e certamente que este era o mais visível de tais livros. Estive na televisão, no rádio, e sempre que estava na televisão havia uma espécie de onda de reacção na internet, pessoas a dizer “Matem este paneleiro” e coisas assim. Mas, na verdade, toda a conversa pública acerca do livro, como a crítica, foi maravilhosa, fiquei realmente surpreendido. Senti que o livro foi a ocasião para um certo tipo de conversa, e isso era tudo o que podia esperar para o livro, verdadeiramente.

Garth Greenwell / Fotografia de Beatriz Gaspar – CCA

Muitos escritores consideram escrever cenas de sexo como uma das mais difíceis tarefas, e talvez uma que vá até contra os cânones da literatura clássica, principalmente por ser tão fácil escrever o cliché e o estupidamente romântico. Mas tu escreves estes encontros sem quaisquer barreiras e até ao último detalhe.
É interessante, não sei como é a tradição literária portuguesa, mas um dos grandes privilégios de ser um escritor em inglês é que a nossa literatura começa com o Chaucer e todo o tipo de palavrões que se possam imaginar estão no Chaucer, tal como no Shakespeare, o que é interessante porque quer dizer que, ao escrever em inglês, posso usar palavras como cocke fuck de uma forma que não destrua a textura poética do texto. Em búlgaro isso não é verdade, há uma espécie de linguagem pornográfica para o corpo e depois uma linguagem médica para o corpo, mas não há uma linguagem literária para o corpo, o que quer dizer que o meu tradutor teve de ser bastante brilhante ao lidar com estes momentos. Outra coisa é o meu treino enquanto escritor ter sido na poesia. Porque, ainda que seja verdade que tenha existido uma geração brilhante de escritores queer no final dos anos 70 e início dos 80, em resposta à crise da SIDA que matou muitos deles, por outro tornou muito mais difícil que existisse espaço para este tipo de escrita explícita nas publicações mainstream. Na poesia não foi esse o caso, na poesia sempre houve uma espécie de escrita do corpo, e do corpo sexual queer, da qual beneficiei. E dois dos meus mais importantes professores de poesia eram escritores gay que escreviam desta forma. Portanto, em certa medida, simplesmente tomei como garantido que podia fazê-lo e não senti que estivesse a quebrar quaisquer barreiras. E depois, por outro lado parece-me importante que os livros sejam capazes de fazer isso, porque a literatura enquanto tecnologia tem um papel importante na nossa cultura no que toca ao sexo, porque somos inundados por imagens de sexo e corpos e, no entanto, parece-me existir um verdadeiro deserto na nossa cultura de representações de encarnação do corpo, do que é ser uma consciência num corpo. O que quer dizer que, ao ver pornografia na internet, e não sou, de todo, anti-pornografia, apenas se vêm imagens onde a personalidade foi apagada. Não me parece que assim se consiga ver o complexo acto de comunicação que o sexo é, e que o sexo não é apenas uma experiência entre dois corpos mas uma experiência entre duas personalidades, duas consciências, e a literatura é a melhor tecnologia que temos, acho, para escrever o sexo duma forma incorporada, o que quer dizer representar o sexo de forma a mostrar o complicado acto moral, ético e humano que é. Portanto, parece-me importante não num sentido que os escritores tenham uma responsabilidade para escrever o sexo, não acho que os escritores tenham a responsabilidade de escrever acerca de nada, mas para mim, enquanto escritor, isso é importante. Digo também que uma das coisas que mais me surpreendeu no acolhimento que teve o What Belongs to You foi ter havido tanta conversa acerca do sexo no livro, porque não há assim tanto sexo no livro, são apenas algumas cenas. Acho que são importantes no livro, sim, mas neste segundo livro que acabei de entregar acho que estou a tentar merecer alguma dessa conversa, há bastante mais sexo nele, e bastante mais explícito. Portanto vai ser interessante ver como é recebido, como as pessoas responderão a isso.

Queria também que falasses um pouco da relação entre estes temas e o texto em si, a linguagem que utilizas. Há, desde o início, uma grande diferença a esse nível entre a primeira e terceira secções e a do meio. Enquanto as outras duas são mais contidas, nesta secção intermédia há uma espécie de libertação do que, até aquele momento, havia estado escondido, como se a Bulgária lhe tivesse permitido pensar acerca da sua infância no Kentucky.
Isso é não era algo do qual estava verdadeiramente em controlo enquanto escritor, tudo isto é olhar para trás e pensar em como ocorreu, porque não planeei escrever a segunda secção, foi um choque para mim. Mas penso, de facto, que aquela experiência de que estávamos a falar antes, de como falar búlgaro o despe das suas defesas, faz parte da ligação entre a segunda parte e a primeira e terceira. A experiência com Mitko, a experiência neste lugar estranho e a experiência da intimidade com outra pessoa despiram-no das defesas que tinha construído em resposta a algumas das coisas de que fala na segunda secção. Isso é parte do que permite este tipo de confronto com o passado que ele não tinha experienciado antes. Neste sentido, e obrigado por ainda não teres perguntado esta questão, que é a questão da autobiografia, e o livro não é uma autobiografia, mas é verdade que a secção intermédia chega mais perto que as outras. Está ainda repleta de invenção, mas parte dela, algumas das partes mais dolorosas, são transcrições bastante literais da minha vida, e penso que é tão verdade para mim quanto para o narrador que toda a minha vida adulta tinha estado a fugir deste lugar, o Kentucky, e foi uma surpresa enorme para mim confrontar-me com isso na Bulgária, e penso que isso se deveu às semelhanças entre ser uma pessoa queer no início dos anos noventa no Kentucky e sê-lo agora na Bulgária. Acho que teve que ver com ter trabalhado com estudantes que eram da idade que eu tinha quando saí do Kentucky, com ter estudantes que eram gay a vir falar comigo, a contar-me as suas histórias, e sentir-me que, com todas as diferenças óbvias, me estavam a contar a minha própria história. A estranheza formal do livro é não existirem ligações romanescas entre a segunda secção e a primeira e terceira, mas acho, de facto, que é a experiência da primeira que torna possível o acertar de contas da segunda secção, e acho que depois na terceira secção ele foi mudado por esse acertar de contas.

Disseste antes que, anteriormente a esta experiência na prosa, tinhas escrito poesia e sido cantor de ópera. Como é que ambas estas coisas afectam a prosa que escreves?
Bem, acho que tudo na minha prosa vem dessas coisas. Espero escrever uma prosa musical, eu certamente sinto, enquanto escritor, que o ritmo e a cadência são cruciais, e quando imagino a forma de uma frase frequentemente penso numa frase cantada. Acho que a minha atracção por uma espécie de sintaxe expansiva, por frases longas, vem da experiência de cantar longas linhas operísticas. Penso que o canto operístico é uma espécie de treino no potencial emocional de suspender a linguagem no tempo, de dizer apenas umas poucas palavras ao longo de muito tempo, e acho que a minha forma de escrever é uma forma de tentar imitar isso. Penso na sintaxe como sendo psicologia, da mesma forma que, para uma ária, o acompanhamento orquestral é psicologia, a emoção é frequentemente comunicada pela textura da orquestra sob a voz, e é assim que vejo a sintaxe. Depois, a um nível mais amplo de dramatismo e narrativa, acho que o livro está muito menos interessado em causar consequência, ao jeito de um romance realista, do que em procurar centros de intensidade emocional, e isso é, também, uma certa maneira lírica de abordar a composição. Todas estas coisas são coisas que aprendi primeiro através da opera e depois através da poesia líricas. E, nesse aspecto, ainda parece meio estranho pensar em mim enquanto romancista.

É assim que te vês, agora?
Bem, sim, não sou certamente um cantor de ópera e também não posso dizer que seja um poeta, portanto penso em mim como romancista, mas é estranho pensar em mim dessa forma. Adoro romances de todos os tipos, adoro ler romances de todos os tipos, mas não estou super interessado em escrever um certo tipo de literatura que é convencional na literatura americana de hoje em dia. Estou agradecido não ter tido uma espécie de educação de escritor americano de ficção, como um MFA (Master of Fine Arts) ou em workshops de ficção americana, não estou super interessado na escrita que tem sido feita na ficção americana contemporânea. Há grandes excepções, no entanto, há escritores realmente importantes.

Como quais?
Bem, em termos de pessoas a escrever ficção na América, ou em Inglês, hoje em dia, há escritores como o Coetzee ou a Marilynne Robinson. Há escritores a fazer coisas excitantes. Digo apenas isto, muita da ficção contemporânea americana não me interessa especialmente e é certamente verdade que a minha bússola, enquanto artista, aponta para a tradição poética, em termos gerais, não apenas americana ou inglesa, e depois para a ficção europeia. Acho que o meu livro é muito mais influenciado por escritores como o Thomas Bernhard ou o Javier Marías, ou escritores Latino-Americano como o Reinaldo Arenas, do que por escritores americanos.

Apenas por curiosidade, os MFAs falam acerca de escritores europeus?
Depende do MFA, mas acho que em muitos deles não o fazem. A minha principal preocupação acerca da literatura americana é que, primeiro, não conheço muitos escritos americanos que leiam noutras línguas, e não conheço, entre os meus pares, muitos escritores americanos que estejam realmente investidos em literatura traduzida. E na América há pouquíssima literatura que seja traduzida para inglês de outras línguas. Isso parece-me algo trágico, porque não interessa que o inglês seja uma língua global de uma forma que nunca nenhuma outra língua tenha sido, contínuo a achar que, caso a tua perspectiva seja determinada apenas por uma língua, é uma perspectiva paroquial. Eu leio em francês, espanhol e búlgaro e para mim, enquanto escritor, ser capaz de o fazer é verdadeiramente crucial, conseguir, de certa forma, capturar a textura de outra língua. E depois leio vorazmente literatura de outras culturas, de outras tradições, e acho isso tão importante. Quando o fazes, apercebes-te que o modelo para ficção que tem sido apresentado pelo menos desde a pedagogia da escrita criativa americana dos anos 50, que é apresentado como este género de leis universais acerca de como a narrativa funciona, é pura mentira. Há tradições onde as histórias têm formas radicalmente diferentes. E é bastante grave não estar ciente disso, que estas regras que tomamos como garantidas têm uma história e são contingentes e estão codificadas juntamente com todo o tipo de preconceitos e ideologias. Em grande medida, penso que o padrão de workshop americano, que é baseado num modelo de prosa consagrado por Hemingway e Carver, é profundamente homofóbico. As regras de Strunk e White, o maior guia estilístico da prosa em língua inglesa, que são de minimalismo e dizer as coisas sem adornos e de forma mais directa possível, com uma ideia por frase, esses não são apenas ideias de como usar a língua, são também ideias acerca de um certo tipo de corpo no mundo, um corpo masculino, e sobre uma certa forma de ser homem. A prosa ornamentada, emotiva, barroca que me atrai era bastante resistida e atacada nestes workshops, e até certa medida sinto-me agradecido por não ter aprendido a ser um escritor de ficção, agradecido por, na verdade, ter escrito este livro no escuro e não ter ido para um programa de MFA até ter um manuscrito acabado.

O teu livro, What Belongs to You, vai ser publicado em Portugal?
Tem uma editora brasileira, mas não tem ainda uma portuguesa. Acho que é a última das principais línguas europeias nas quais não tem ainda um editor e, portanto, espero que venha a ter. Tem piada porque há uma personagem que é portuguesa e essa personagem no segundo livro vai ser até uma das personagens principais.

É a mesma personagem?
É a mesma, portanto esse segundo livro vai ter uma ligação a Portugal ainda maior, adorava que fosse aqui publicado. Talvez estar cá ajude.

Estás em Portugal a leccionar um workshop no Disquiet, um programa literário internacional para escritores com ligações a Portugal. Como te chegou esta oportunidade? Os professores também têm de ter ligações a Portugal?
Nem todos, alguns têm. É um programa fascinante, acho que este é o seu oitavo ano. É um programa luso-americano e um dos workshops é o workshop lusófono, um workshop multigénero leccionado pela Catherine Vaz, que é uma escritora americana de ficção de ascendência portuguesa. Sei que há vários estudantes americanos descendentes de portugueses ou de ascendência brasileira, há brasileiros, há um estudante moçambicano. É um workshop para literatura a ser produzida a partir da experiência do mundo lusófono, e depois há workshops de ficção e poesia que são para estudantes de qualquer lado. Nem todos os meus estudantes são americanos, mas a maioria é, e também não acho que os outros professores tenham uma relação particular com Portugal. O que quero dizer é que as pessoas que dirigem o programa convidam escritores que os entusiasmem e que sejam escritores com os quais os estudantes queiram trabalhar. Eu, em particular, tenho uma ligação a Portugal, como te estava a dizer, através deste namorado que tive, e apaixonei-me mesmo por Portugal. Se pudesse arrumar a minha vida e mudar-me para qualquer lado, mudar-me ia para Lisboa. Mas o workshop é realmente fabuloso e a maior parte das leituras envolve tanto escritores americanos quanto portugueses, e acho isso fascinante, e acho até que já teve consequências maravilhosas em termos de livros a serem publicados na América que talvez não o fossem de outra forma. Faz-me lembrar, em certa medida, o também brilhante programa, mais pequeno, feito pela Fundação Elizabeth Kostova, em Sofia, Bulgária, que é um workshop na costa do Mar Negro todos os Verões, onde eles levam cinco jovens escritores de língua inglesa e cinco escritores búlgaros, todos juntos, isso transformou as possibilidades disponíveis para escritores búlgaros. Há agora uma editora americana que publica romances búlgaros todos os anos, em tradução. Há também uma competição para encorajar a tradução de literatura búlgara para inglês. É incrível o que programas como este podem fazer. Incrível por uma razão negativa, que é haver tão pouca coisa publicada em tradução nos Estados Unidos, quando isso pode ter um efeito transformador na carreira de um escritor. O português é uma grande língua no mundo.

Sim, mas os livros publicados em Portugal nem sempre são publicados no Brasil, por exemplo…
Pois, ainda se sente um pouco isso, portanto… Mas se pensarmos no búlgaro, é uma língua falada apenas por 7 milhões de pessoas no mundo. Era algo no qual nunca tinha pensado antes, a sorte que se tem em nascer enquanto escritor no inglês e tomar sempre por garantido que, mesmo que a nossa audiência seja limitada por tantas coisas, a língua não é uma delas. E, no entanto, ser búlgaro é dizer, pronto, o máximo número de pessoas para o qual escrevo são 7 milhões, mas depois se o teu livro é traduzido para inglês, tudo se torna radicalmente diferente, é um novo mundo. De qualquer forma, este é o meu primeiro ano no Disquiet, estou a divertir-me imenso, é um grupo de escritores espantoso, e é excitante para mim poder ouvir escritores portugueses que não conheço, dois deles até agora foram extraordinários.

Quais, já agora?
Um deles é o Jacinto Lucas Pires e a outra a Susana Moreira Marques. As leituras deles foram espantosas. Já encomendei os livros deles e isso é o mais excitante que pode acontecer num programa como este, sentir que todo um novo mundo de literatura se nos está a abrir. Só tinha lido Saramago, Lobo Antunes e Peixoto, e o Pessoa, claro. É excitante descobrir outros.

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