Entrevista. Gaspar Ferreira: “Um quinto dos trabalhadores portugueses tem problemas de saúde psicológica”
“Tenho, na minha prática, ao nível da implementação de locais de trabalho saudáveis e avaliação de risco, encontrado empresas com uma percentagem muito significativa de trabalhadores com problemas de sono: a prevalência, na população em geral, é cerca de 30% e tenho encontrado algumas empresas onde a prevalência é até superior”, avisa-nos o psicólogo Gaspar Ferreira, membro do Conselho de Especialidade de Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações, que participa na M Talk organizada pelo Festival Mental, destinada ao Trabalho e Saúde Mental, a decorrer dia 20 de Maio, com a exibição do filme “Mais uma rodada”.
Gaspar Ferreira afirmou ainda que, apesar de um maior esforço por parte das empresas, “um quinto dos trabalhadores portugueses tem problemas de saúde psicológica”. Reconhece, também, que no que toca às pequenas e médias empresas (PME), que agregam a maioria dos trabalhadores portugueses, há uma maior dificuldade em garantir e cuidar a saúde mental dos trabalhadores, em detrimento das grandes empresas. A legislação laboral, a seu ver, é adequada, embora haja mais trabalho a fazer, para diminuir o número de trabalhadores com problemas psicológicos. Esta foi a conversa que a Comunidade Cultura e Arte teve, então, com Gaspar Ferreira, aliando a esta temática a realidade do desporto e as componentes aditivas.
Quando se fala em saúde mental e trabalho, está muito em voga o burnout, assim como a extuação da pessoa, devido à quantidade de trabalho. Mas o que queria perguntar era se o trabalho também não corre o risco de transformar-se num vício para a própria pessoa.
O trabalho tem várias dimensões e pode ser uma questão de realização pessoal: para muitas pessoas é uma das principais fontes de realização pessoal, aliás, de equilíbrio. Há comunidades terapêuticas, até, que baseiam a cura pelo trabalho ou pela arte. A Comunidade Cultura e Arte tem, provavelmente, algum do seu foco nessa dimensão. Quanto ao trabalho como um vício, até é natural que se possa constituir como um vício quando é fonte de prazer. O vício, se o entendermos como uma adesão a um conjunto de comportamentos que resultem reforçados ou premiados de forma intermitente — que é no fundo uma definição mais ou menos sumária para se chegar ao vício, uma vez que para nos viciarmos, o que precisamos não são prémios constantes, mas prémios intermitentes — nesse sentido, o trabalho não se inscreve, exactamente, na definição de vício ou componente lúdica, na medida em que, normalmente, a pessoas esperam uma gratificação regular no final do mesmo.
Ainda assim, há algumas actividades que quase correspondem a essa lógica de vício, por exemplo, se estivermos a falar da dimensão comercial, desportiva, ou até mesmo a dimensão política: pode haver, nesses casos, algum tipo de recompensa intermitente. Não deixa de ser curioso, por exemplo, que em algumas destas actividades que acabei de referir — nomeadamente na desportiva, na comercial, ou actividades que exijam uma performance ao mais alto nível — não seja incomum que estas pessoas estejam mais susceptíveis ao burnout. Isto, na medida em que para atingirem os seus resultados, que não dependem completamente de si com muita frequência — porque têm adversários, têm clientes, conjunturas económicas, por exemplo, que se vão alterando — não é, então, anormal que estas pessoas tenham particular dificuldade e estejam susceptíveis ao burnout.
Estive, ainda na semana passada, reunido numa empresa com várias pessoas de um departamento comercial e todas elas, nomeadamente uma das partes do serviço a clientes, estavam se não em burnout, com pelo menos alguns indicadores. Estavam a trabalhar mais do que deviam, particularmente, e sem querer introduzir, aqui, estereótipos — no entanto, está de acordo com alguns estudos — algumas pessoas do sexo feminino, principalmente, denotavam uma clara exaustão emocional, o que era esperado neste grupo devido à dificuldade que as pessoas tinham em não conseguir controlar, apesar de todos os esforços, que faziam. Não conseguir controlar os resultados pode ser um factor que pode levar à exaustão psicológica e, às vezes, física, porque começam a trabalhar mais, começam a dormir pior, começam a comprometer os relacionamentos para se dedicarem àquilo que, por um lado, pode ser uma fonte de prazer, mas por outro lado é a fonte de rendimento para si e para as pessoas que, no fundo, dependem de si mesmas. Portanto, quanto às questões do burnout, podem denotar uma ligação ao prazer mas, em boa parte das circunstâncias, estão ligadas a compromissos, a responsabilidades e, até, a aspectos culturais que nos dizem que somos úteis se trabalhamos.
O lazer até é, muitas vezes, visto como algo que nem é, completamente, salutar. A dedicação ao lazer, portanto, e à arte, em alguns grupos, é algo estranho. Estamos, felizmente, numa sociedade que valoriza, cada vez mais, a arte, o lazer e o desporto, se quisermos, mas ainda vemos, em várias partes do país, o foco da actividade humana no trabalho, ou o foco da realização humana no trabalho e, quanto ao lazer, é visto como a excepção — as pessoas que não se dedicam tão intensamente ao trabalho são vistas, se calhar, como não saudáveis, como não produtivas. Esse foco na produtividade e desempenho pode comprometer a saúde.
Focou a questão do sono. Quando começamos a comprometer o sono, é um sinal sério de que algo não estará bem.
O sono pode ser um sintoma, por um lado, de uma elevada carga de trabalho. Perante uma alta exigência de trabalho, o que as pessoas tendem a fazer não é trabalhar melhor, não é tentar reorganizarem-se dentro do seu lugar de trabalho, é esforçando-se mais. Esse esforçar-se demais pode levar a que trabalhemos além da hora, depois de sair do trabalho, depois das tarefas domésticas e, como se não bastasse, ainda reservamos tempo para trabalhar fora de horas. Muitas vezes, o nosso cérebro ainda fica, durante o sono, a pensar naquilo que está a ser feito e no que falta ser fazer.
Tenho, na minha prática, ao nível da implementação de locais de trabalho saudáveis e avaliação de risco, encontrado empresas com uma percentagem muito significativa de trabalhadores com problemas de sono: a prevalência, na população em geral, é cerca de 30% e tenho encontrado algumas empresas onde a prevalência é até superior. Porquê? Porque para além das dimensões psicológicas, em algumas empresas ainda há a dimensão física que resulta de lesões que se vão instalando e as pessoas, além da dimensão cognitiva, têm dores. Têm dificuldade em adormecer porque têm dores e acordam durante a noite porque lhes doem, por exemplo, as articulações ou as costas. O sono, portanto, pode ter a dimensão cognitiva e, com muita frequência, em certos sectores de actividade tem uma dimensão física já instalada que, também, resulta de doença orgânica que já se instalou.
O que poderá ser mais pernicioso, a questão do aumento da carga de trabalho ou a relação que é mantida com as chefias, e a forma como as chefias lidam com os seus empregados?
Com certeza. Sem querer generalizar, tenho uma experiência positiva porque, na verdade, as empresas que me contratam são, já, empresas que têm sensibilidade para o tema e, como tal, tenho tido a felicidade em ter lidado com lideranças que estão preocupadas com os seus trabalhadores. De um modo geral estão preocupadas com os seus trabalhadores e, muitas vezes, o trabalho que temos de fazer é sensibilizar os próprios trabalhadores, porque as lideranças já têm essa preocupação, os trabalhadores não.
Mas também tenho esta experiência, sem querer concretizar os sectores de actividade: o foco nos resultados, o foco em entregar os números e a produção sobrepõe-se à necessidade de mudança do trabalho e, também, à necessidade de mudança do tipo de liderança. Já tive experiências negativas frustrantes em que, após uma avaliação de riscos e de se identificar o que estava a acontecer — onde emergiam, de facto, problemas de lideranças tóxicas — algumas das empresas não tomarem as medidas necessárias que poderiam passar por uma formação ou, até, poderiam passar por algumas outras medidas mais sancionatórias, no sentido em que as pessoas que têm essas responsabilidades deveriam mudar o seu comportamento porque, isto, tem consequências junto dos trabalhadores. Ainda assim, nem sempre as organizações cedem à necessidade de entregar a produtividade.
Aí nem queria ir muito longe, mas temos alguns maus exemplos, por exemplo, até no desporto, onde o foco na performance se sobrepõe ao bem-estar e onde se educam, muitas vezes, as massas para a ideia de que o importante é ganhar os jogos, mais do que a ética ou a qualidade de relacionamento entre as partes. Tenho, também, uma intervenção no desporto e sinto que o desporto devia ter essa função educativa e está, neste momento, a ter uma função deseducativa, na medida em que desprepara os jovens, não os preparam — e aqui estou mais preocupado com os jovens — reforçando o valor de vencer a qualquer custo, independentemente da forma como se vence. Isto, depois, é transporto e normalizado para as pessoas que vão para os seus locais de trabalho, que aceitam que, realmente, o importante é ganhar, vencer, atingir os resultados sem importar como.
O desporto tem um lado curioso, no sentido em que será fácil para as chefias aproveitarem-se do perfeccionismo e desejo de mais dos próprios atletas ou jogadores. Depois há a questão da vitória que pode levar ao vício de que falávamos no início.
O vício de vencer. Sim, deve-se aprender e aceitar que, no desporto, não se pode vencer sempre — é extremamente difícil vencer sempre. Não há atletas imbatíveis, nem há equipas imbatíveis. O deporto, na sua essência, tem essa função pedagógica de aprendermos a vencer, a perder, a levantarmo-nos depois da derrota, a lidarmos com as dificuldades e a lidarmos com momentos difíceis e superá-los, numa lógica de melhorarmos os nossos relacionamentos. Aliás, os clubes, quando nascem — aqui estou a pensar mais nos clubes de futebol, mas não só os clubes de futebol, outras modalidades, também — nascem com esse intuito, primeiro numa lógica muito elitista, e nascem, normalmente, das classes sociais com a possibilidade do lazer, começamos por aí.
Depois, o desporto acaba por se generalizar, através dos clubes e, de alguma forma, logo de início, o que se pretendia era o deporto como manifestação elevada da competição com regras, com sentido ético, onde era possível aprender a gerir os esforços, a evoluir e a ter melhores relacionamentos, deixando ali, naquele período, a possibilidade de alguns comportamentos, mas dentro de marcos aceitáveis. Como é que isto se cruza com a saúde psicológica? Cruza-se, justamente, nesta dimensão do equilíbrio necessário entre atingir resultados e não perder a saúde e, claro, atingir resultados e manter relações sociais adequadas entre todas as partes, não esquecendo que os nossos actos, que são observados pelos outros, se constituem como exemplo, também pelo nosso comportamento.
Não escondo que tenho alguma dificuldade em conviver com alguns dos episódios recentes que estamos a viver, particularmente no futebol, mas não só, em outras modalidades também, onde esta ideia de vencer a todo custo quer vingar e, mais, em que pertencer a um clube — tenho andado a pensar muito nisto, é colocado como uma religião quando, na verdade, por essência, nós escolhemos o clube a que queremos pertencer.
Nós, por essência, escolhemos um clube com o qual nos identificamos e, aqui, está a operar-se o sentido inverso, uma vez que os clubes operaram uma aculturação nas pessoas que aderem a estas agremiações, criando-lhes aqui uma mística que, nem sempre, me parece que é uma mística saudável e equilibrada, até nesta lógica da performance e da saúde psicológica.
Um dos filmes a ser exibido no Festival Mental e que servirá de base para a discussão deste tema é o filme “Mais uma rodada”. Esse filme foca como a pessoa pode encontrar uma forma de lidar com as questões laborais fazendo uso de um vício, neste caso o álcool. Mas estará ligado, certo? Qualquer pessoa sob pressão poderá encontrar estas formas de superar os problemas. Algumas poderão ser saudáveis, outras não.
Com certeza. Nós temos um indicador que é amplamente conhecido, somos os campeões europeus do consumo de ansiolíticos e anti-depressivos, mas é verdade que as pessoas, para responderem ao aumento da carga de trabalho, trabalham mais mas, depois, acabam por recorrer a estimulantes, que pode ser o café, ou outro tipo de substâncias ou relaxantes. Podem tomar álcool ou, até, algum tipo de calmante para adormecer, como tínhamos conversado há pouco. Dentro das fases que conduzem ao burnout, um dos sintomas a que as pessoas devem estar atentas é se esse consumo se tornou necessário ou para relaxar, ou para reactivar e alertar.
Li, recentemente, um artigo que explicava que nos Estados Unidos, ao nível dos cargos de gestão, se tornou popular injectar testosterona – ganhar dominância e agressividade — portanto, não se resume ao álcool e, em alguns sectores de actividade, não vou especificar aqui para não ser mal entendido, mas que são mais exigentes e trabalham com projectos que têm rendimentos elevados, é comum o usar-se drogas, anfetaminas, ou um conjunto de substâncias que lhes permite manterem-se acordados mais tempo, com mais energia, mais foco, mais concentrados, com efeitos de curto, médio e longo prazo muito conhecidos, do que nós sabemos da utilização destas substâncias. Por isso, é verdade que é uma prática comum.
A maioria de nós tem cafeteiras em casa, há cigarros, há chás, toda uma panóplia de substâncias que utilizamos de forma mais ou menos consciente, ou para nos acalmar, ou para nos relaxar e corresponder às exigências do trabalho e que interferem, inclusive, com o sono. Li um estudo recente, também, que mostra que basta um copo de vinho antes de deitar para produzir o efeito de fragmentação do sono. Isto é, uma pequena dose de álcool antes de dormirmos produz fragmentação do sono, o que vai criar dificuldades, depois, no dia seguinte, de concentração e de desempenho. Portanto, mesmo quando, às vezes, tomamos essas substâncias para obter um determinado efeito, se elas não foram bem geridas, se não tivermos boa informação para as utilizar de forma consciente, elas podem, a prazo — normalmente é o que acontece, se não tomarmos as medidas de alteração dos locais de trabalho, se não reduzirmos, muitas vezes, a carga de trabalho, se não negociarmos isso com os nossos empregadores — elas tornam-se a solução para obtermos a performance.
Voltando ao desporto, não é incomum termos atletas que tomam medicamentos para dormir e, depois, tomam umas doses de café, cafeína, para acordar. Desta forma, andam num ciclo de relaxantes para dormir e, depois, café para acordar e estar activo e concentrado durante o jogo. O ser humano fá-lo, dentro dos limites legais faz parte, e naturalmente as pessoas têm essa liberdade. O que é conveniente, aqui, é perceber quando é que já estamos a perder o equilíbrio e não é, repito, incomum, eu ter nas minhas consultas pessoas que já estão com problemas de sono e já estão com problemas de conflitos nos relacionamentos, pessoais ou laborais, que resultaram do facto de não se ter abordado o assunto, as causas, da razão de se estar a trabalhar desta forma, desta maneira. Isso implica que as organizações, cada vez mais despertas — aliás, a lei determina-o — tenham de fazer monitorização regular.
A nossa lei portuguesa e europeia obriga a fazer uma avaliação regular do bem-estar dos trabalhadores. Em algumas áreas, inclusive do consumo de substâncias, transporte de passageiros ou risco de segurança, as empresas, cada vez mais, estão mais despertas para a felicidade. Devem estar muito mais atentas e estão muito mais atentas, hoje, à necessidade de monitorizar o bem-estar e acompanhar os seus trabalhadores, no sentido de prevenir que o trabalhador perca a saúde. Aliás, o nosso mercado de trabalho está competitivo. Eu trabalho, sobretudo, no sector coorporativo e há muita necessidade de trabalhadores, isto é, há um grande investimento, neste momento, uma grande necessidade em reter os trabalhadores e, portanto, para reter os trabalhadores precisamos de criar condições de trabalho, proporcionando desafio e prazer sem, de alguma forma, promover esse trabalho que gera desequilíbrio, fadiga, esgotamento e dificuldades de conciliação com as nossas vidas pessoais.
O que tem a dizer sobre a semana de quatro dias de trabalho?
Anseio essa semana de quatro dias. Enquanto profissional com alguma liberdade de escolha tento, pelo menos um dia por semana, descansar, nem que seja uma manhã ou tarde, durante a semana. Não tenho dúvidas que isto é um passo necessário numa sociedade que é altamente produtiva. Não tenho dúvidas quanto a essa necessidade, numa sociedade que está a envelhecer e, alguns modelos de envelhecimento activo já levam em conta que, há medida que as pessoas envelhecem, se reduzam cargas de trabalho, o que faz todo o sentido. Precisamos de educar, muitas vezes, os trabalhadores para aceitarem a redução dessas cargas de trabalho, nas pessoas que vão envelhecendo e perdendo, sobretudo, capacidade de recuperação: vão perdendo capacidade de recuperação física, psicológica, mas mantêm-se muito bem cognitivamente e fisicamente.
Outras vezes menos bem, mas com capacidade para entregar trabalho, portanto, a semana dos quatro dias parece-me o passo correcto em todos os sectores de actividade. Há, no entanto, funções e áreas de actuação em que, pela escassez dos profissionais — mas isso também se deve remediar — poderá ser mais difícil colocar em práctica, mas parece-me uma medida que vai estar em linha com aquilo que o ser-humano precisa, ainda que, do ponto de vista cultural, algumas pessoas tenham dificuldade em cumprir os quatro dias de trabalho, porque o trabalho é, para si, estruturante e tem para si um significado de propósito. Portanto, acho que muitas das pessoas, nesses quatro dias de trabalho, vão arranjar uma outra actividade qualquer.
Mas o importante, aqui, é educá-las para que, justamente, isso seja equilibrado. Aliás, a emergência da Inteligência Artificial e de todo o potencial que está a ser discutido, vai-nos dar essa possibilidade, vai-nos colocar a pensar nisso, de forma mais premente, porque muitas das tarefas que achávamos como nossas, e que são complexas, poderão ser, parece-me com alguma facilidade, delegadas nessas Inteligências Artificiais, portanto, não podemos só querer reorganizar os dias de trabalho, talvez tenhamos de reorganizar outros aspectos da sociedade.
As empresas estão cientes destas questões e importam-se em superá-las?
A minha experiência é que sim, aliás, tenho contactado com empresas que, em primeiro lugar, têm especialistas de recursos humanos que abraçam, por exemplo, o coaching, porque acaba por ser apelativo, mas, numa segunda fase, já estão a contratar especialistas, psicólogos, na área da saúde mental, porque sabem que essa intervenção tem de ser desenvolvida por profissionais com a formação necessária.
Dependendo, claro, da dimensão da organização, porque há organizações que não têm capacidade para terem um profissional, a tempo inteiro, na área da saúde mental, mas podem recorrer a serviços, às vezes, remediativos, no sentido de proporcionar terapias já numa fase de esgotamento, outras vezes preventivos, e isso é o desejável, no sentido de ir fazendo as avaliações periódicas e ir ajustando as medidas às necessidades efectivas de cada grupo. Outras vezes, acaba-se por juntar aos incentivos e regalias dos sistemas de recompensa e remuneração essa possibilidade.
Tenho encontrado muitas empresas que já incorporaram, na remuneração, nos sistemas de recompensas, o acesso, aliás, aos próprios serviços de saúde. Tenho visto, ainda assim, em algumas circunstâncias, que as organizações já fizeram esse investimento mas os trabalhadores, alguns deles, acabam por não saber que existe esse recurso disponível, que é muito importante.
Tenho visto esse esforço por parte das empresas, se calhar, para compensar a dificuldade no acesso no Serviço Nacional de Saúde, ainda assim, não conseguem responder às necessidades dos trabalhadores. Aliás, um quinto dos trabalhadores, segundo a maioria dos estudos, tem problemas da saúde psicológica, ou seja, é um valor muito significativo e que remete para a necessidade apoio constante ou, no mínimo, a possibilidade de, devidamente informados e sensibilizados, poderem recorrer em tempo útil.
E quanto à nossa legislação laboral, protege o trabalhador nesse sentido?
A mim, parece-me que a legislação é clara. A legislação diz, claramente, que compete à entidade reguladora monitorizar e garantir a saúde e bem-estar dos trabalhadores e, depois, monitorizar os riscos físicos, biológicos e os riscos psicossociais, portanto, a lei é clara e diz ainda que, depois de feita esta avaliação de riscos, devem ser introduzidas medidas pelas organizações. Também me parece que, do ponto de vista do que são as entidades reguladoras, como a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), existe uma sensibilidade e uma actuação que me parece condizente com a legislação. Tenho visto a ACT a sensibilizar e a autuar as entidades que não estejam a cumprir a lei.
O que me parece é que, talvez, se devesse disponibilizar, particularmente, apoio ao grosso das empresas portuguesas, que são as pequenas e médias empresas (PME), porque as grandes empresas têm recursos para suportar os custos deste apoio. As PME, normalmente, não têm este apoio. Parece-me que mais do que a lei, neste momento, seria importante proporcionarmos recursos para as PME disponibilizarem estes serviços de acompanhamento e apoio aos seus trabalhadores.
A maioria dos trabalhadores, penso que cerca de 80% dos trabalhadores, estão nas PME e, nestas, realmente, parece-me que o esforço é quase nulo. Nas grande empresas, tenho observado que muitas vezes se vai além, no bom sentido da lei. A Ordem dos Psicólogos, sei que fez essa proposta da criação da figura do psicólogo no trabalho. Parece-me que essa medida poderia ser uma forma dos trabalhadores das PME poderem aceder a este acompanhamento e aderirem a este apoio que é fundamental para o nosso bem-estar e para reduzir indicadores não positivos em termos de saúde mental.
Mas por outro lado, o mundo laboral, para os mais jovens, pauta-se por um maior deslaçamento dos vínculos com a empresa. Isto não poderá colocar, também uma maior pressão nos mais jovens?
Tenho é informação concreta relativamente ao burnout nos jovens. Sabemos que as pessoas mais jovens estão a ter indicadores de esgotamento, de burnout, muito elevados, e que resultam, justamente, desse desalinhamento com os modelos tradicionais de trabalho. Isto é, as empresas mantêm a mesma forma de trabalhar, mas as pessoas que entram têm outra forma de se relacionar com o trabalho, além de outras expectativas.
O que tenho observado é as empresas fazerem um grande esforço numa das dimensões, que é o acolhimento. A forma de acolher os trabalhadores, particularmente os jovens, tem de ser muito mais atenta, assim como o perfil das lideranças, para poderem manter jovens que são mais exigentes, que valorizam aspectos que, antes, não eram tão valorizados pelas gerações anteriores. Mas essa é uma exigência que se está a colocar aos recursos humanos, actualmente: adequar os modelos de liderança e os modelos de organização para acolher e integrar jovens que não estão tão disponíveis para organizações de trabalho clássicas.
Posso-lhe dar um exemplo, há um tempo fui contactado por uma empresa que estava com esta dificuldade em reter jovens, e o que a empresa nos pediu foi treiná-los para que fossem mais resilientes: ficavam um ou dois dias, uma semana, e iam-se embora. Então, a empresa queria que nós, perdoem-me a expressão, fizéssemos destes jovens, homens. A empresa queria mudar o trabalhador no sentido de o manter resiliente. Isso é uma dimensão que se trabalha, na verdade, e está previsto que, depois da avaliação de riscos psicossociais, tentemos mudar o que é possível dentro do core da empresa, nas relações, e também criar condições de resiliência, dos trabalhadores. O trabalhador tem de ter capacidade de comunicar, lidar com dificuldades e de relacionar-se com pessoas diferentes —isso é a resiliência.
No entanto, o que me parece é que esta empresa pretendia pessoas capazes de se adaptarem a contextos muito difíceis, com salários baixos e condições deficientes. Isso, naturalmente, já estava normalizado nos trabalhadores que já estão lá há muitos anos, mas quem entra de novo e tem experiencia de vários contextos de trabalho, rapidamente filtra e diz: “Posso trabalhar noutro local, não estou exposto a doenças, não tenho este problema de stress e ganho o mesmo ou mais.” As pessoas fazem, naturalmente, este balanço e vão escolhendo até onde querem ir, do ponto de vista do seu esforço e compromisso, e com quem querem estar.
Uma pessoa que esteja numa dinâmica laboral que lhe esteja a ser tóxica ou não saudável, nem sempre terá a destreza de reconhecer, ela própria isso, ou terá? Por exemplo, mais uma vez no desporto, os atletas nem sempre poderão reconhecer quando o esforço é demais. Podem, inclusive, se forem facilmente persuadidos, recorrer a práticas não tão saudáveis, como já abordámos.
É verdade, é por isso que temos de fazer as tais avaliações de risco regulares. É por isso que temos de ir, regulamente, ao médico do trabalho e é por isso que temos de ir, regulamente, fazer umas analises e vermos como estamos de saúde. Se isso não acontecer, os trabalhadores tendem a desvalorizar, ou aliás, nem se apercebem, porque vão perdendo, de forma paulatina, mais ou menos gradual, algumas das qualidades. Vão perdendo a sua vitalidade e saúde e, muitas vezes, nem relacionam com o trabalho. Atribuem à idade, ao acaso, às vezes, e não tem nada a ver com o acaso, muitas vezes, tem a ver com a exposição ao stress.
Tenho encontrado imensas pessoas com doenças do foro psicológico e físico, e decorre da não valorização dos sintomas, por isso é importante a avaliação regular. E também é importante — parece-me que, recentemente, foi desenvolvido um programa para promover a literacia junto dos trabalhadores — essa literacia. É fundamental, mas não deve ser desvinculada da avaliação regular. A literacia, naturalmente, é fundamental, dá a liberdade à pessoa para escolher, de escolher, até, se quer fazer os exames, que é uma liberdade que nos deve assistir.
Aliás, parte destes exames requerem, sempre, um consentimento informado, a avaliação de riscos psicossociais requer que o trabalhador permita que esta avaliação seja feita. Outra coisa é, em algumas profissões a necessidade de fazermos mesmo essa avaliação, sob pena de termos pilotos, motoristas e até diria empresários, em alguns casos, que perdem a saúde e deixam de ter condições para exercerem as suas funções. E isso deve-nos preocupar.
Devemos ter direito ao ócio? Ou seja, o ócio tem o seu espaço saudável?
Claro que sim, o ócio no sentido de ter tempo para nada fazer, ou ter tempo para o lazer. Acho que isso faz até sentido, cada vez mais, os estudos estão a comprová-lo, durante o horário de trabalho. Recentemente saiu um estudo, relativamente a reuniões. Um estudo que mostrava que quando estamos numa reunião, e não fazemos um intervalo de, pelo menos dez minutos, portanto, fazer uma quebra, desligar da reunião que aconteceu anteriormente, e passarmos ao trabalho seguinte, a nossa performance não é a mesma.
O que até era sugerido nesse estudo era o seguinte: depois da reunião, e aqui já estamos na dinâmica dos locais de trabalho saudáveis, o líder tem de determinar, “fizemos a nossa reunião e a seguir vamos fazer um coffee break, paramos mesmo, vamos brincar, vamos fazer outra coisa, e depois voltamos ao trabalho. E aqui já estamos a falar no design do trabalho, eu dizer, “vamos mesmo fazer uma pausa.” Isto tem um fim produtivo, não é só do interesse do trabalhador.
Sabemos que se o trabalhador está cansado não produz. Então, no plano cognitivo, temos mesmo de criar momentos de paragem, de reflexão, de abrandamento dos processo de aceleração, a que estamos sujeitos, neste momento, por via das tecnologias, das plataformas, por via das notificações, dos whatsapps e outras ferramentas das quais não conseguimos desligar. Portanto, precisamos desses momentos de ócio, e precisamos de um design laboral que os preveja — momentos para parar. Costumo dizer, quem não sabe descansar, não sabe trabalhar.
Muitas pessoas não gostam de ouvir, mas não é só o que eu sinto, é o que no decurso das actividades que desenvolvo, de formação e preparação para estas áreas, observo: quando se faz uma pausa num momento de dificuldade, ou se está a tentar resolver um problema, se nós criarmos um momento de descanso, de ócio, de lazer, as pessoas a seguir vão pegar no problema e, normalmente, resolvem-no logo. Portanto, estamos ali muitas horas, a tentar, sem resultado nenhum, mas paramos, reflectimos, brincamos, regressamos ao trabalho e resolvemos logo o problema. Portanto, é absolutamente necessário, para o bem da produtividade e do equilíbrio, termos direito ao ócio, lazer, e tempo para estamos connosco, com os outros e com aquilo que gostamos.
Portanto, nem sempre a quantidade é sinónimo de produtividade nestes casos.
De todo. Na verdade, não é mesmo.