Entrevista. Gilsons: “Quando os três gostam, é quando a música tem espaço no projeto”

por Bernardo Crastes,    13 Agosto, 2024
Entrevista. Gilsons: “Quando os três gostam, é quando a música tem espaço no projeto”
Fotografia de Marina Zabenzi
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Gilsons são uma banda de duplos sentidos. O seu nome tanto alude à palavra “som”, como à palavra inglesa “sons” (filhos), fazendo um duplo comentário sobre o legado musical que a banda carrega em si por todos os seus integrantes serem descendentes do colosso Gilberto Gil. José Gil, filho de Gilberto, e Francisco e João, seus netos, compõem a tríade que tem encontrado sucesso para lá do seu sobrenome com êxitos como “Love Love” ou “Devagarinho”. Os duplos sentidos não se ficam por aí: a banda equilibra ancestralidade e modernidade nas suas músicas facilmente catalogadas como “nova MPB”, destilando a tradição musical brasileira numa linguagem sónica mais moderna, sempre com uma leveza que já faz parte da sua identidade musical.

A banda encontra-se agora a fechar o ciclo do seu álbum de estreia, Pra Gente Acordar, lançado em 2022, com uma série de concertos que os tem levado a várias partes do Brasil, aos Estados Unidos e Canadá, e, agora, a Portugal. No nosso país, têm duas apresentações marcadas para esta semana: no dia 15 de Agosto, no Vodafone Paredes de Coura, e a 17 de Agosto, no festival O Sol da Caparica. Em jeito de antecipação desta mini-digressão, conversámos com Francisco e João Gil sobre o seu processo criativo, colaborações e o legado musical dos Gil, entre outros temas.

O ciclo do Pra Gente Acordar está quase a chegar ao final. De que forma é que o disco mudou aos vossos olhos ao longo destes anos?

Francisco: Desde que a gente começou, a gente sempre teve no nosso repertório muitas canções de outros artistas — até por falta de repertório lançado, um repertório que o público tivesse contato. A gente até tocava muitas músicas que ainda não tinham sido lançadas. A partir do momento que a gente veio com o disco, o grande lance foi essa possibilidade de ter uma consistência maior no nosso repertório, um repertório mais vasto, que através dele a gente tivesse a possibilidade de apresentar um show com o nosso trabalho ali sendo a massa. Isso é a coisa mais legal que o disco trouxe para a nossa carreira em termos de estrada, porque aí sim a gente conseguiu solidificar a nossa identidade — não só musical, mas enquanto performance também. A gente já esteve em Portugal algumas vezes, a gente fez uma turnê na Europa também, acabamos de voltar dos Estados Unidos e aí a gente vê a consistência desse repertório. O público recebendo ele, se atingindo pelas músicas, pela variedade das canções, isso é o mais legal.

Imagino que já estejam a preparar os próximos passos. Já têm alguma ideia do que serão?

João: A gente está com planos, mas ao mesmo tempo ainda não tem nada solidificado ou necessariamente identificado como uma ideia. A gente tem coisas na cabeça e essa vontade de estar gravando logo. A gente aproveitou esse final de ciclo do disco para se voltar de novo para parcerias, porque foi uma coisa que fizemos antes de lançar o disco. Somando nesse lugar da troca com artistas que são da nossa cena — ou que não necessariamente são da cena, mas que a gente admira. E essa soma também ajudou muito no que o Fran falou, nessa coisa da criação dessa nossa identidade. A gente acabou de lançar uma parceria com o Murilo Chester [“ME LIGA”], que é um cantor da cena de Salvador mais atual. A gente lançou uma com o Jota.pê [“Feito a Maré”], que é um cantor e compositor lá de São Paulo que a gente também admira muito. Mas a gente tem planos de estar gravando e lançando coisas no futuro próximo.

Videoclipe de “ME LIGA”

Como é que vocês escolhem as pessoas com quem vão colaborar?

Francisco: A gente gosta de dizer que nessas parcerias, a grande prioridade é sempre o genuíno. A gente já recebeu muitos convites e ideias para feats, que dizemos sempre que são feats frios: aquela coisa de você mandar uma música e “vamos gravar!”, e às vezes você não tem nenhum contato, uma troca. A maioria dos feats que a gente fez foram canções que a gente escreveu juntos; algumas que a gente recebeu a ideia e já tinha ali um espaço para que a gente fizesse parte; algumas que a gente se enfiou também — como foi o caso do Jota.pê agora, que ele tinha uma música já meio pronta e o José foi lá e entrou. E isso é o mais barato [no sentido de “bacano”], porque eu acho que feats não são só o resultado da canção, são encontros. Quanto mais verdadeiros esses encontros são, mais a parceria faz sentido.
Porque a gente nunca entendeu o feat como uma estratégia de mercado, que foi uma coisa que nos últimos anos da música se fortaleceu muito, você juntar as bases de fãs e fazer uma coisa estratégica mesmo. Inclusive, nos orgulhamos de, nos feats que fazemos, serem com artistas novos, artistas da nossa geração, artistas que ainda não têm uma projeção que se enquadre dentro desse lugar estratégico que eu estou falando. Então são feats genuínos mesmo. Já que você estava falando de planos e tal, a gente continua produzindo coisas ainda sem essa pretensão e uma ideia sólida de um disco, mas estamos produzindo agora um feat com um grande artista brasileiro e acho que esse vai ser talvez o primeiro com um artista bem maior. A gente está muito feliz.

Fotografia de Marina Zabenzi

E depois no cerne da banda, como é que funciona o vosso processo de composição? Como é que decidem entre vocês aquilo que entra ou não entra num disco?

João: A gente sempre está apresentando um para o outro as composições de cada um. Uma coisa legal do projeto é a gente conseguir ter espaço para a música de todo o mundo. O projeto já nasceu nesse lugar de ser essa soma colaborativa dos três. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que passa muito por essa coisa do apreço e do gosto. Quando os três gostam, é quando a música tem espaço no projeto. Nunca rolou uma imposição, de alguém chegar e dizer “essa música tem que estar!”.
Sobre o processo, cada composição tem um processo. Tem músicas que nascem individualmente, músicas que nascem de um lugar de parceria… Às vezes, é isso que o Fran falou, de a gente mandar para alguém e alguém completar, ou alguém mandar para a gente e a gente completar. Antes disso, às vezes, tem música que sai de uma ideia, de um verso ou de um pedaço de letra; outras vezes é uma melodia cantada e aí a pessoa vai e bota a letra em cima dessa melodia. É muito variado, a gente não tem uma coisa determinada.

No geral, vocês têm alguns temas ou mensagens principais que queiram transmitir com a vossa música?

João: É sempre partindo de uma ideia genuína, que seja uma coisa que parta de alguma coisa que a gente acredita. A gente tem músicas que falam de coisas do dia-a-dia, de situações amorosas. Tem músicas mais introspectivas que falam de coisas mais filosóficas. São sempre ideias, sempre conceitos que a gente acredita em algum lugar, no nosso coração.

Francisco: As canções vêm de lugares diferentes — às vezes vêm ali do João, com algum parceiro dele, de uma situação que ele está vivendo, algumas do José… As canções nascem das vivências. Elas vão sempre ser uma forma de traduzir nesse lugar poético e vivo que são as músicas. São sempre traduções de vivências, de sentimentos. É natural.

O vosso som é bastante dançável e tem muito ritmo, mas ao mesmo tempo tem uma vibe muito tranquilizadora. Como é que chegam a esse tipo de som?

Francisco: Assim como toda essa parte das composições, a sonoridade também se deu de uma forma natural. Porque a gente tem um gosto musical que é bem diferente de cada um. Mas temos um lugar onde sempre teve essa possibilidade de compartilhar de um mesmo gosto. Essa sonoridade vem muito da nossa relação com a música baiana, com os ritmos afro-baianos, assim como com tudo que há de novo. Então a nossa sonoridade é literalmente esse encontro entre a nossa interseção musical, que é essa música afro-baiana, essa grande influência do axé, da música popular brasileira; os violões de nylon que vieram com muita força lá atrás da Bossa Nova e que o nosso avô traz como a grande ferramenta musical dele — também é a nossa. E temos um gosto, um ouvido muito grande para as sonoridades atuais. Quando a gente começou a gravar e a entender a nossa sonoridade, foi muito natural que trouxesse os elementos digitais, as programações, os beats eletrónicos. Então virou essa fusão. É o violão de nylon, os tambores e, por outro lado, as programações. É o ancestral e o futuro, o presente.

Visualizer de “Pra Gente Acordar”

Graças à vossa família, sempre conviveram com a música. Imagino que começar na música tenha sido muito natural para vocês, certo?

João: Sim, a gente cresceu acompanhando bastantes shows e processos de gravação. Temos bem internalizado como se dá essa coisa toda do processo de fazer show, de estar tratando a música como um lugar de trabalho, não só a questão lúdica e emocional. Por a gente ter crescido próximo, sempre entendemos também esse lugar da música como um trabalho, o que se dá para transformar de fato num trabalho e ir além do lugar do hobby e da curtição.

Como é viver com o legado musical da vossa família, principalmente do vosso avô? Sentem algum peso — ou já sentiram?

Francisco: Acho que peso não. As pessoas talvez joguem mais esse peso ou percebam mais esse peso do que ele de fato existe para a gente. Teve uma galera aí antes da gente que lidou com isso: minha mãe, a mãe do João, tio nosso… Enfim, então a gente também tem um legado de uma experiência com isso, com essa questão de sermos uma família musical. Então não há peso. O que há, na verdade, sobretudo, é o privilégio de podermos estar perto de tanta gente, não só familiares, como outros milhões de artistas que a gente também pira. Quando a gente pára para ver a quantidade de músicos e artistas que a gente conhece desde moleque, é importante que a gente reconheça esse privilégio, sabe? Esse é o grande privilégio que a gente tem e é através dessas pessoas que a gente tira esse peso também. Porque a música é o que a gente tem para ser dito, para ser colocado em forma de música. É uma tradução sensível de muita coisa. Então essa sensibilidade também contempla essa vivência. Talvez não fôssemos as mesmas pessoas, os mesmos músicos e artistas se não fossem essas vivências. Então a gente leva isso tranquilo, sem peso.

João: Só para completar o que o Fran falou: além de tudo isso, a gente também tenta traçar o nosso próprio caminho. Em nenhum momento, tentamos emular ou copiar ou fazer de uma forma que não fosse a gente e sim uma coisa da nossa família. Queremos que o nosso som seja a gente, queremos que o nosso som traduza as nossas personalidades e, como o Fran falou, engloba toda essa nossa vivência anterior. Mas, ao mesmo tempo, todas as outras coisas que a gente é influenciado, de músicas antigas e atuais. Eu acho que isso tudo soma.

Como é ter uma banda familiar? Vocês sentem essa ligação especial ou ainda alguma tensão de conviver tanto tempo com família?

João: Eu acho que mistura os dois [risos]. Tem essa coisa que é muito especial, que é você estar dividindo o palco com parentes. Tem esse lugar afetivo, né? Isso é traduzido na nossa musicalidade e também nos nossos shows. Mas, ao mesmo tempo, tem essa coisa da convivência também. É uma coisa de você conseguir estar sempre navegando e também saber separar algumas coisas. Às vezes uma crítica vai bater um pouco mais, só que ela vem no lugar de trabalho, então você tem que saber lidar. Porque a coisa do trabalho tem o lado burocrático mais chato, tem a coisa da cobrança. Mas ao mesmo tempo tem essa ligação especial, assim, de a gente estar em família e eu acho que a gente sente também tudo isso.

Têm boas memórias dos vossos concertos aqui em Portugal?

Francisco: A gente tem memórias incríveis. O que de certa forma já era esperado, né? Uma coisa é a Europa, outra coisa é Portugal. Portugal, a gente divide a mesma língua, a gente tem uma história atrelada. Então a música brasileira, por aí, ela se penetra de uma forma diferente do resto da Europa. A gente, em Portugal, é o lugar onde a gente tem essa recepção mais calorosa fora do Brasil. Um público que conhece as nossas músicas. Porque geralmente, quando a gente vai para fora, a maioria do público é sempre um público brasileiro com saudade de casa que vai lá escutar a gente — e isso é maravilhoso também. Em Portugal, isso já fica um pouco diferente. Tem muitos portugueses que conhecem a nossa música. A gente adora, cara. Você vai lá no Spotify e o segundo país onde mais escutam a gente é Portugal, sabe? Então isso é barato.

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