Entrevista. Homem em Catarse: “Os lugares são as pessoas”
Segundo as próprias palavras de Afonso Dorido [Homem em Catarse], o “Sete Fontes” é o seu filho da pandemia, o resultado da experiência do primeiro confinamento. O álbum anterior, o “Sem Palavras|Cem Palavras”, lançado em Janeiro de 2020, já trazia a novidade duma faixa ao piano, o tema “Tu eras apenas uma pequena folha”, mas não se imaginava que Afonso apresentasse um álbum inteiro, em que o instrumento de destaque fosse o piano.
A razão da surpresa prende-se com o facto de, até ao “Sem Palavras|Cem Palavras”, a sua experiência no instrumento ser quase inexistente. Teria experimentado compor alguns arranjos para os “Indignu”, mas sem uma concretização final. Com a ‘solitude’ que todos sentimos com a experiência dos confinamentos, a sua relação e evolução com o instrumento aprimorou-se e, com o apoio do projecto de criação artística do “Gnration”, o “Trabalho da Casa”, tornou-se, assim, possível o nascimento de “Sete Fontes”, com a utilização de um piano vertical. O que temos é, essencialmente, um disco extremamente minimalista, com linhas melódicas instrumentais ao piano simples, aliadas com sonoplastia, gravações de campo, e elementos de electrónica minimal. Desta vez, a guitarra, o instrumento que tão bem tem servido “Homem em Catarse”, está ausente. Tudo está realizado com bastante delicadeza porque, lá está, embora exista essa comunhão com as gravações de campo e electrónica minimal, todos esses elementos nunca atrapalham o piano, que surge em destaque, sempre no primeiro plano. Antes servem uma base, uma cama muitas vezes imperceptível, para a sustentação do mesmo piano. Tudo isto trata-se da antítese de uma epopeia ou da grandiloquência. É a prova de que se pode fazer bem, com muito pouco.
Afonso Dorido não caracteriza “Sete Fontes” como melancólico. Caracteriza-o como nostálgico mas intenso. Emocionalmente intenso porque traduz, emocionalmete, a introspecção, aquele olhar para dentro mais genuíno, sem ruído, que todos sentimos quando olhamos para uma rua deserta que outrora estava cheia. É como que uma lonjura sentida nestes tempos incertos em que ninguém sabe, muito bem, qual o caminho a percorrer ou se esse caminho poderá ser percorrido. A sugestão de Afonso é, então, parar para podermos descobrir os nossos próprios locais, as nossas próprias “Santas Martas das Cortiças”, para podermos inspirar, respirar e, depois, como num fôlego, continuar.
Os locais de Braga mencionados nos títulos, em “Sete Fontes”, não servem uma mensagem per si, ou uma reivindicação, como aconteceu com os locais de “Viagem Interior”. Os temas funcionam, antes, como um apego emocional a esses próprios locais, um apego que todos nós poderemos transferir para os nossos próprios locais de eleição, porque a música trata-se, antes de tudo, de uma linguagem universal. Homem em Catarse, como artista, sentiu as dificuldades dos cancelamentos e concertos adiados, mas avisa que esta situação tem-nos ensinado a ter respeito pelo momento, a manter os cuidados necessários, mas não a sentir medo. Se existir medo, a cultura sofrerá ainda mais, por isso mesmo, enquanto houver um som, dedilhados atmosféricos e pianos a tocar, há sempre que continuar. “Le vent se léve, il faut tenter de vivre”.
Vamos começar pelo princípio, o piano. Foi um instrumento que sempre te acompanhou? Como começaste a tocar?
O piano nunca me acompanhou até ao disco “Sem palavras | Cem Palavras”. Estamos a falar, portanto, de 2020 ou finais de 2019 — o disco saiu logo em Janeiro de 2020. O piano era um instrumento que eu respeitava imenso e, por respeitá-lo muito, é que nunca me tinha atrevido a tocá-lo ou a compor nele. Não tinha conhecimentos nenhuns porque a minha formação é em guitarra, portanto, durante trinta anos nunca ousei tocar piano, até que tive a oportunidade de ter um teclado em casa e começar a tocar e a compor. Algumas coisas já sabia porque componho compulsivamente e, tendo um piano ao pé de mim, acabei por começar. Mas, na verdade, quando comecei a estudar piano ou, pelo menos, a dedicar-me a ele foi, precisamente, na pandemia. Fiquei sem grande parte do trabalho que tinha, os concertos, e foi sobretudo com a pandemia que veio esta oportunidade de abordar o piano de forma mais séria.
Até ao “Sem palavras | Cem Palavras” não tinhas tido, então, experiências com o piano, nada!
Experimentava, só. Com os “Indignu” experimentava fazer alguns arranjos, mas nunca conseguia pôr em prática nenhum tema ao piano. Não era a minha pretensão fazê-lo, portanto, eu só comecei a compor ao piano para o “Sem palavras” e, aí, foi uma questão de, pronto, respirar o disco. Acho que foi nessa altura que comecei mas não foi aí que abracei. De qualquer modo é recente, como podes compreender. A minha dedicação ao piano é recente.
É curioso porque, pelo que vou percebendo, o piano é dos instrumentos mais completos e complexos.
Sim, sem dúvida. A minha vantagem, aqui, era saber já a parte teórica da guitarra. O “dó menor”, por exemplo, tem a mesma diatónica, as mesmas terceiras — essas notas, o piano também as terá. Mas vou tentando evoluir com outros músicos e, a verdade, é que ainda tenho de evoluir a nível técnico como, também, a nível de sacar, mesmo, o som que gosto. Aprecio, no entanto, essa inocência. Quando sabes muito acabas por não explorar coisas mais minimais, básicas — não as consegues fazer de uma forma mais inocente, mais visceral. Sempre senti essa inocência, essa espontaneidade no piano e há outra coisa que adoro — sinto que estou a aprender todos os dias. Isso também acontece na guitarra mas, agora, sinto mais com o piano. Sinto que estou a aprender, sempre, todos os dias e há essa motivação de tocar. Não é , “ah, vou fazer aqui umas coisas ao piano e adeus”. Não é isso. Tenho-me afeiçoado ao piano e, claro, se me perguntarem qual é o teu instrumento — o meu instrumento de raiz é a guitarra. A guitarra, óbvio, faz parte de mim, mas o piano é uma relação que está, a cada dia que passa, muito mais forte e cada vez mais componho ao piano. Até ao “Sem Palavras| Cem Palavras” compus só à guitarra, no ukulele e outros instrumentos de cordas como, por exemplo, o cavaquinho e a braguesa — era por aí. Não compunha ao piano porque não dominava o instrumento. Mesmo assim, apesar de compor muito ao piano, ainda sinto, como todos os instrumentistas, que tenho todo um mundo à minha frente e, isso, dá-me muita motivação. E o saber que posso aprender e descobrir muito mais. Também os dedos vão ganhando destreza porque, lá está, a emoção na música vem depois de tu dominares o instrumento. Quanto mais o dominares, mais podes ficar livre para sentir aquilo que estás a fazer e o que escreveste. Nessa parte da emoção, acho que sou eu mesmo. Seja na guitarra ou no ukulele, seja no baixo ou no piano, sou eu. Trata-se, sempre, da minha abordagem muito pessoal. Como é óbvio, a nível técnico, varia, de instrumento para instrumento, a forma como se o aborda. Estive, também, sempre ligado ao rock e o piano é um instrumento que exige alguma sensibilidade. Se calhar, trago essa sujidade do rock para o piano, o que não me desagrada de todo — o rock e a música experimental. O “Homem em Catarse”, no caso, sempre teve uns crescendos de guitarra e alguma intensidade, sobretudo, nos finais dos temas.
Mas neste disco não há disso.
Exactamente, exactamente!
Já íamos chegar aí. O instrumento principal, o que surge em primeiro plano, é sempre o piano, que é intimista, visceral, calmo e bastante minimalista. Todos os outros elementos que vão aparecendo nunca atrapalham e parece que servem um efeito de ambiente — um ambiente que pode ser bucólico, até.
Primeiro ponto, este disco não tem guitarras. “Homem em Catarse” sempre esteve representado na guitarra enquanto compositor, mas sempre quis fazer um disco diferente. Gosto quando o inusitado nos abraça. Se me perguntassem há um ano atrás — sensivelmente há um ano porque foi aí que começou a pandemia — se eu ía fazer um disco só com piano, sinceramente não fazia ideia que o ía fazer. Diria logo que seria impossível porque não tinha capacidade para tal. Mas a pandemia e o confinamento mudaram muito a vida das pessoas e eu remeti-me ao meu cantinho, à sala onde componho. Comecei a abraçar o piano e, ao mesmo tempo, vi-me impedido de viajar para outros sítios, mesmo para fora do país — tinha muitas coisas marcadas para Espanha — e vi-me relegado ao local onde vivo, em Braga. Estou a falar disso porque esse bucólico está relacionado com o momento em que comecei a descobrir, em Braga, sítios que não fazia ideia que existiam. Estou a falar de sítios bucólicos dos quais não fazia ideia, bem perto da cidade, onde conseguia ter essa paz e essa calma para conseguir inspirar e respirar melhor, porque a vida tornou-se uma incerteza. Era minha vontade compor ao piano e, depois, adicionar-lhe essa leveza que eu fui bebendo de vários sítios, sobretudo ligados à natureza ou, então, mesmo das ruas que, entretanto, ficaram desertas. O mundo parou mas, se formos a ver, o pastor anda na montanha — e andam bem mais pastores aqui nos montes e nas serras próximas de Braga do que pensava. Mas, se calhar, para uma pessoa dessas não mudou nada. Continua a ter a sua vida bucólica a passear animais e acho que foi mais um inspirar para dentro do que expirar para fora. Foi um parar para respirar e, claro, todos esses ambientes de electrónica — que se chama mesmo assim, electrónica minimal — reflectem essa tranquilidade do mundo que está a mudar. Mas acho que foi a âncora que eu encontrei para me safar, sinceramente, e acabou por nascer este disco. Fui partilhando algumas ideias com pessoas mais próximas, que me incentivaram, e outras que também me alertaram que estava a arriscar mas, pronto, sempre fui assim, sempre quis fazer discos diferentes. Há, depois, uma série de pessoas neste processo, inclusive o Gneration, que me deram muita força para fazer isto. Senti, logo, que estavam super entusiasmados com o que estava a fazer e, claro, senti que era logo para avançar. Não era que eu não tivesse certeza do que estava a fazer mas, sinceramente, o feedback que fui tendo das primeiras demos era tão bom que eu, pronto, não hesitei em ir em frente e lançar-me para um disco que, também, não quis que fosse herculeano, épico, ou uma epopeia. Quis, simplesmente, que fosse um respirar, que as pessoas se pudessem sentar e, ao mesmo tempo, aproveitarem o facto de poderem olhar pela janela e sentir que as coisas estão estranhas mas que há, sempre, um dia de amanhã. É preciso parar para aproveitar, para respirar e absorver as pequenas coisas — às vezes, coisas que estão bem ao pé de nós — para podermos viver. Viver ao máximo e, sempre, numa correria, pode provocar uma frustração contínua. Então, mais vale respirar, parar. Parecemos todos cegos ou com vendas e não sabemos muito bem o que havemos de fazer, então, o melhor, é parar. E esta, também, foi uma maneira de muita gente, se calhar, perceber muita coisa que passava despercebida. Para mim, olha, foi tocar piano. Mas sim, respondendo objetivamente à tua pergunta, o objectivo era sem qualquer outro instrumento e, a existirem outros instrumentos, teriam sempre de estar ligados à electrónica minimal e a esse bucólico que faz a ponte com os locais, as experiências solitárias que eu fui tendo aqui, onde vivo, em Braga.
Podemos, então, enquadrar este álbum no contexto da pandemia. É uma tentativa de fazer com que, no meio deste caos e na incerteza dos confinamentos, as pessoas possam olhar para elas próprias, para a sua própria solitude.
Sim, sempre digo que os lugares são as pessoas e acaba por ser interessante porque, se calhar, Santa Marta das Cortiças é um ponto de vista em Braga mas, se calhar, para as pessoas que conhecem ou para mim mesmo é, simplesmente, um sítio onde se consegue respirar, inspirar, olhar a cidade, os montes, e há quem diga olhar o mar. É, simplesmente, um local mas eu acho que nós podemos tornar com as nossas histórias, com as nossas vivências, esse local belo. O meu objectivo é que as pessoas, ao ouvir os temas, percebam que aquele lugar foi especial para mim. Dar a entender que as Santas Martas das Cortiças das pessoas existem e, como tal, é importante cada um aproveitar os seus lugares mais sossegados, os seus próprios lugares, vá, quando não se quer estar com ninguém ou quando queremos nos abstrair de tudo. Esses lugares podem não ser nada bucólicos ou belos para a maior parte das pessoas, mas para aquela pessoa é como uma injecção de tranquilidade. Esses locais todos de que o “Sete Fontes” fala são como injeções de tranquilidade para mim.
No “Viagem Interior” também falavas de espaços físicos e, consequentemente, as letras constituíam um alerta contra as assimetrias entre interior/litoral. Havia uma intenção, uma mensagem latente. Desta vez, tu dás a conhecer lugares de Braga ou em torno de Braga mas, apenas, pela música e por aquilo que o piano desperta. A pessoa, assim, consegue perceber de imediato o tipo de sentimento ou sensação despertada por aquele local. Mesmo que não conheça os locais consegue, ela própria, criar esse sentimento genuíno em relação ao local.
A música é a linguagem universal por excelência. Enquanto que no “Viagem Interior” existia um alerta social para a discrepância do interior face ao litoral — uma inspiração geográfica dos locais que me levava a escrever — aqui, eu levo o que eu escrevo aos locais. É muito mais emocional e muito menos social. É mais aquele segredo, aquele sítio que ninguém conhece mas que, para ti, é especial. Claro que pode haver esse paralelo, mas o interior da “Viagem” era muito mais geográfico, uma inspiração minha do interior. No “Sete Fontes”, o interior é mesmo de dentro, no sentido humano. É quando te privam de tu viajar, mas tu viajas por ti, viajas em ti. Tivemos aqueles condicionamentos mais severos de recolhimento obrigatório, mas a caminhada higiénica era uma opção. Cheguei a fazer quilómetros a pé porque, felizmente, no Minho ou em Braga andas 15 minutos para qualquer lado e tens montanha e natureza. Isso é uma coisa boa, sem dúvida. Braga acaba por não ser uma metrópole como Lisboa é, então acabas por teres a cidade, o barulho da cidade mas, em 15 minutos, consegues abstrair-te de tudo.
O “Sete Fontes” está, então, relacionado com o projecto “Trabalho da Casa”, de apoio à criação artística do “Gnration”. Podes falar um pouco sobre isso e como as coisas correram?
Já tinha tido algumas conversas com “Gnration” e existia uma vontade mútua, uma vez que eu resido em Braga, de participar ou de fazer um trabalho ao abrigo do “Trabalho da Casa”. Foi passando, entretanto surgiu a oportunidade, e eu já tinha uma ideia do que ía fazer. A nível de contexto, no entanto, a pandemia trocou as voltas todas. Acabou por originar um trabalho com algumas coisas que eu pensava fazer mas que, no entanto, nunca imaginei que iria sair um trabalho exclusivamente ao piano ou, então, que o piano fosse o centro estético do disco. O “Gnration” começou a ser muito importante para mim porque, felizmente, conheço algumas pessoas ligadas ao “Gnration”. Fomos partilhando ideias, as pessoas foram-me dando força para que as coisas acontecessem e, depois, quando comecei a trabalhar já, oficialmente, no âmbito do “Trabalho da Casa”, tive um apoio muito grande por parte deles. Se não fosse o “Gnration”, sem dúvida, este disco não existia e eu não teria gravado no piano que gravei — um piano vertical lindíssimo, incrível. Senti, muito, o lado humano das pessoas que diziam, em determinados aspectos, “não temos a certeza se conseguimos, mas vamos fazer os possíveis para conseguir”. Consegui o apoio, sobretudo, da parte criativa — sendo o piano um instrumento central do disco tive acesso a um instrumento com um som primordial, o que foi muito importante — e também tive apoio nas misturas e na co-produção que fiz com o Francisco Oliveira e o Budda Guedes. Depois, o disco estava a soar tão bem aos nossos ouvidos que foi um disco que nem foi sequer masterizado, é um trabalho lo-fi, que vale pelo seu minimalismo. Uma coisa que é simples, quanto mais quiseres adornar, mais estás a desvirtuar. Trata-se de um disco simples, tranquilo e especial. Parece-me um disco muito focado e o “Gnration” deu-me algumas ferramentas, nomeadamente o piano incrível que conseguiu.Tenho de agradecer ao Luís Fernandes, ao Ilídio Marques, que sempre estiveram comigo e sempre foram dando opiniões mas, sempre, de um forma encorajadora, “isto vai correr bem”. É o lado humano que eu acho mais importante nestes processos, sentires que as pessoas vão fazer de tudo para que o trabalho fique o melhor possível, na medida delas, e, às vezes, mais do que à partida conseguiriam fazer. Nesse sentido, acho que foi importante. Além de que o disco fala de Braga e, assim, fazia sentido ser um trabalho apoiado pelo “Gnration”.
Quanto à composição das músicas, as linhas melódicas do piano são completamente minimalistas mas, também, dá a impressão que giram em torno de uma repetição. Faz sentido para ti? Isso é completamente notório – e aí nota-se claramente a intenção – no “Pêndulo da Sé”.
Há uma coisa importante a referir neste disco. Em todos os locais abordados em todas as músicas, no seu registo áudio, há sons desses mesmos sítios. Ou seja, no “Pêndulo da Sé, o sino é uma uma forma mais esquelética, digamos, de tu tentares ligar a sonoscopia com a composição — há esse lado também. Nessa faixa, são mesmos os sinos a tocar e que foram, depois, trabalhados a nível de modelação pelo Francisco Oliveira. A ideia, no entanto, é tu ouvires mesmo um sino e, uma coisa super engraçada que eu, por acaso tenho para te contar, o tom do sino é do mesmo tom da composição que iniciei. Foi, então, incrível porque estava no mesmo tom. Depois os temas, em relação à repetição, concordo contigo porque ela é propositada no “Pêndulo da Sé”. Nos outros temas, no entanto, é mais uma questão de progressão, de ser progressivo e de não notares, de forma muito abrupta, que algo está a mudar ou a crescer. É devagarinho, sobretudo, quase que uma gota de água a escorrer. Se estiveres a fazer algo, nem dás por ela, já passou, mas se estiveres atenta, há qualquer coisa aqui a andar à volta, qualquer coisa aqui que já ouvi. Mas, por exemplo, no “Santa Marta das Cortiças” há uns ruídos que se ouvem no final, que são umas antenas no topo da montanha. Na “Rua do Souto Deserta” há uns som do vento, na rua deserta. No “Pastor da Serra dos Picos” há um pastor a falar com os animais; na “Nascente do Este”, a água que se ouve é mesmo da “Nascente do Este”; na “Valsa dos Biscainhos”, existem mesmo diálogos de pessoas que estão a trabalhar num museu. Todas elas têm um “Field Recording” [gravações de campo], e há uma associação do trabalho da composição com a recolha dos sons dos vários locais. É tudo de uma forma muito subtil. Digamos que este disco é muito tranquilo. Não é um disco triste, é um disco tranquilo.
Não concordas, então, se tentarem colar este álbum a uma certa tristeza ou melancolia.
Se me perguntares, não concordo. Isto é, concordo com as opiniões de toda a gente, no sentido em que todas as opiniões, de qualquer pessoa, são válidas, sendo isso mesmo, opiniões. Quanto a mim, sinceramente, acho que isto é mais bonito do que triste. Este disco não é para ser, na minha opinião, alegre ou triste. É para ser tranquilo ou não, e acho que é um disco tranquilo, um disco leve. Terá momentos tristes, a alegria não é sempre constante. Pode é ser, em alguns momentos, desconcertante, mais negro. O facto de tu saíres à rua e não veres ninguém, numa rua onde tinhas de te desviares das pessoas porque havia muita gente. Ou, então, num sítio onde havia muitos turistas e, agora, não existe nada — aí há aquela sensação estranha. Trata-se de um disco do primeiro confinamento. É o filho do primeiro confinamento quando as pessoas não faziam ideia de que isto iria durar tanto. Agora, as pessoas, têm saudades do caos e já se esqueceram que, se calhar, foi isso que levou a este tipo de situações. As pessoas não conseguem estar muito tempo sem o caos, sem os carros. Nesta sociedade, em 2021, as pessoas rapidamente perdem essa tranquilidade e acho que este disco acabou por registá-la, neste primeiro confinamento.
Há essa dificuldade em estarmos a sós connosco próprios. Precisamos daquele ruído constante.
Exactamente, é um bocado isso. Sendo um disco da primeira pandemia, é um disco para ser evocado numa noite em que nos apetece estar sós, estarmos connosco próprios, enquanto olhamos pela varanda fora, percebes? Acho que, sendo um filho da pandemia, pode continuar a coabitar connosco e, nesse aspecto, é por isso que eu gosto de fazer discos diferentes, para que eles sejam o mais atemporais possível. Se tu fizeres um disco sempre igual, aquilo vai ficar datado desde o primeiro que fizeste até ao último porque, depois, aquilo vai ficar sempre no mesmo registo. Gosto, simplesmente — e às vezes não é assim tão simples — de explorar. Há, sem dúvida, uma vontade propositada de explorar algumas coisas e, também, não dá para não arriscar quando queres explorar outras conceitos.
Talvez concordarás se te dissesse que nos pode transportar para uma certa nostalgia.
Sim, quer dizer, não considero que seja um disco triste, mas considero que seja um disco nostálgico e intenso. A palavra é essa, intenso. Ao mesmo tempo, não é aquele disco ao piano para se dizer“ah que bonito”. É assim algo mais sujo, mais visceral, parece que amarra no peito, parece que te abraça, parece que te aperta a mão, parece que há, ali, uma inconveniência de te dizer algo. Há ali uma tensão, reconheço que há uma tensão, sobretudo no tema “Rua do Souto Deserta”. Reconheço que é um tema bastante nocturno, eu diria que é o meu “Nocturno”. Há o “Nocturno” de Chopin e a “Rua do Souto Deserta” é o meu.
Há pouco falaste dos field recordings, há algumas experiências engraçadas que possas contar, no momento de captar esses sons?
Em geral, ter molhado os pés ou ter caído (risos). O ter molhado os pés na zona dos “Moinhos de Portuguediz” , que é um rio numa zona bastante desconhecida de Braga, uma zona rural entre Braga e Guimarães. Os “Field Recordings” e a sonoplastia constituem mesmo o mais básico, desde registar algo que ouves e que achas incrível no telefone e que também existe no disco, até a um lado mais trabalhado, mais da sendo do Francisco Oliveira, que também recolheu alguns sons e modelou, sobretudo. Acabou por potenciar muito as coisas que eu tinha feito, ora com micros mais específicos para a coisa, ora mesmo às vezes com telefone. Nós não nos sentámos e dizemos, “agora vamos fazer isto, agora vamos gravar uma música”. Isso, comigo, não existe. Simplesmente, a música é feita connosco e, às vezes, são três da manhã e a gente está a escrever uma música sem o saber. É um bocado como apanhares locais que não conheces, sentires aquele vento e, de repente, a rua está completamente deserta, pegas no telefone e registas isso. Acaba por ficar muito mais engraçado do que aquilo que esperavas. Às vezes, não se trata de fazeres algo incrível ou algo que é muito megalómano. Trata-se de fazeres algo incrível com o pouco que tens. Os “field recordings”, alguns deles, foram feitos ao telefone, outros foram feitos com o zoom, outros com mais capacidades técnicas, mas todos eles, no fundo, são o que eu gostaria, sinceramente.
Afonso, como é que te tens visto com a Covid e os confinamentos?
É uma altura ímpar da história humana, dos tempos mais recentes. É ímpar destes tempos mais recentes, mas a história humana já tinha vivido histórias situações similares, pelo menos há 100 anos, com a pneumónica. O que mais me preocupa é a saúde das pessoas. É o mais importante e é isso que tem de estar, sempre, em primeiro lugar. Mas a saúde não passa, só, por combater um vírus respiratório, passa, também, pela saúde mental. Penso que a saúde mental acaba por ser, sempre, bastante desvalorizada porque nós contabilizamos as pessoas que morrem de covid, e muito bem, porque estamos a atravessar uma pandemia. Mas ninguém contabiliza as pessoas. Fruto disso, igualmente, ou de um combate a esta pandemia a nível da transmissão do vírus, não fazemos ideia do número de pessoas que tiveram a vida destruída emocionalmente, mesmo a nível psicológico. É preciso olhar para esta situação como um todo e não sermos unidirecionais. É importante lutarmos contra este vírus, que é uma luta que não dura um mês nem um ano, dura mais. Mas é, sobretudo, importante as pessoas não pararem de viver porque, aí, não estão em camas de hospitais mas estão em precipícios dos quais as pessoas se lançam. Há vidas que nunca mais vão ter uma sanidade aceitável. Sem dúvida que vi muito trabalho adiado, muito trabalho cancelado. Seria um ano em que iria tocar mais em Espanha e foi uma das coisas que senti, que tão cedo não voltaria a tocar em Espanha. Talvez este ano volte mas, em 2020, não aconteceu em Espanha nem aconteceu em Portugal. Foi difícil lidar com isso. Depois, algumas datas que tinha, ou seja, quando estava programado eu voltar a tocar, calhou sempre nas alturas em que não se podia tocar. Depois, quando houve oportunidade, estava a escrever e não estava a tocar, e quando estava pronto para voltar a tocar, voltava a fechar. Foi o que aconteceu. Ía apresentar o trabalho em Fevereiro, não aconteceu, e houve um pré-apresentação. Tinha, agora, uma série de concertos em Abril, no início de Abril e, lá está, acabou por ser, novamente, adiado. O que podemos fazer é, sobretudo, ingerir. O que interessa é que estejamos todos bem e que comecemos a perceber que devemos ter muito respeito por esta situação, e cuidado, sobretudo, mas medo não. Se tivermos medo, estamos a matar muita coisa e uma delas é a cultura que tem sido, já, tão beliscada. Os apoios são anunciados em Janeiro e chegamos ao fim de Março e percebes que ainda não te apoiaram. Não é fácil de lidar, mas enquanto houver piano, uma guitarra, enquanto existirem pessoas que gostam daquilo que fazem, vale sempre a pena continuar e fazer com que as coisas aconteçam. Tenho tido alguns trabalhos, escrito para outras pessoas. Não tenho estado completamente parado, mas nem se compara, principalmente com “Homem em Catarse”, em que o mais importante é a estrada, o ser ao vivo e a verdadeira comunhão com as pessoas.